terça-feira, 31 de outubro de 2023

O homem mais importante que o presidente

Jeyne, atriz 24 horas por dia, certa vez encontrou Aécio Neves, na casa de um cineasta, quando ele era candidato à presidência da República.

- Você conhece o Danilo Miranda?

- Não.

- Então você nunca vai ser o presidente da República.

Por aí, dá para se ter uma ideia do que Danilo Miranda representava para os artistas. Para ela, se havia alguém que um presidente devia conhecer, ou era mais importante que o próprio presidente, era o Danilo.

Como se sabe, Aécio profeticamente perdeu a eleição - não foi presidente. Mas até ele passou a saber quem era Danilo Miranda.

O grande diretor do Sesc, falecido ontem, não apenas tinha uma verba maior que a dos poderes públicos para abrigar, promover e fazer prosperar a arte. Era um gestor exemplar, que, além de tudo, tratava a todos os artistas com respeito e, até mesmo, admiração. Não importava quem.

Danilo foi maior que o poder público não apenas na verba, como na conscientização. Abriu o Sesc, uma entidade de lazer para comerciários, ao público em geral, usando a verba de que dispunha para ampliar seu alcance - e seu benefício. Foi mais do que precisava ser, não só porque podia, mas porque queria e porque sabia.

Foi do erudito à arte popular. Criou centros culturais, promoveu o teatro, as artes plásticas, a música, o cinema, a literatura. De forma geral, fez mais pelas artes, pelo entretenimento e pela cultura que a maioria dos ministros e secretários que passaram pela área ao longo das décadas de seu trabalho.

A despedida meio tribal de Danilo, no Sesc Pompeia, com gente cantando e dançando ao redor de um caixão, serviu para mostrar que o trabalho com inteligência e amor à arte não morre, é festejado. Não devia sê-lo apenas pela tribo artística, mas por todos os brasileiros para quem não é preciso ser político, na pior acepção da palavra, para dirigir alguma coisa no Brasil. Ao menos da maneira como se deve, no esforço que parece às vezes inglório, de levar este país a um outro patamar.


terça-feira, 24 de outubro de 2023

O que há no fundo de nós

Lanço agora em novembro, pela Assírio & Alvim, Além da Memória - talvez o livro mais difícil que já escrevi,  por diversas razões. Primeiro, é extremamente íntimo, o que me fez retardar por muito tempo a sua publicação. Segundo, por ter sido parte de um esforço profundo de auto conhecimento - e de entendimento do ser humano, creio - literalmente desde o berço.

Comecei a escrevê-lo, de certa forma, quando meu filho nasceu, 17 anos atrás. Ao observá-lo, pude acompanhar de perto o desenvolvimento da vida em todas as suas fases - e isso trazia lembranças, evocações, da minha própria infância, além do que eu achava que era capaz de lembrar. 

Comecei a investigar obscuras memórias, o "tempo sem palavras", em que ainda nem aprendemos a falar - e, portanto, a racionalizar. É o período mais marcante da vida, e do qual menos lembramos ou conhecemos. Ainda mais no meu caso, porque, devido a um diagnóstico médico, o prognóstico era de que eu jamais poderia andar - um drama que afetou a vida da família e a minha mesmo, de um jeito que só hoje eu sei o quanto.

Com o nascimento do meu filho, descobri muitas  coisas, sobre ele, as crianças e sobre mim. Algumas delas, por conta do nascimento de seu primeiro neto, minha própria mãe me contou.

Uma dessas descobertas foi que ela jamais me amamentou. Quando me disse isso, pensava não em mim, mas na diferença entre as gerações, com certa pena dela mesma. Convalesceu um mês  no hospital, depois da cesariana, uma cirurgia que naquela época deixava um corte vertical na mulher e era bem mais tosca que hoje em dia. 

No primeiro dia em que se levantou,  teve ir para o trabalho. Professora primária, foi cuidar de outras crianças, para ganhar dinheiro e enfrentar o imprevisível sustento de um filho que saíra torto.

Naquele tempo, e eu falo de 1964, não havia licença-maternidade nas empresas. A indústria fazia muita propaganda do leite em pó, especialmente o Ninho, que diziam ser muito melhor – além de mais prático – do que o leite materno. Bobagem, como se sabe hoje, mas é o que se acreditava naquela época.

Fazia-se muitas outras coisas estúpidas com as crianças, então muito normais, como embrulhá-las em cueiros. Naquele tempo não havia ainda a fralda descartável. Os nenês usavam a fralda de pano e depois eram enrolados naquele algodão mais grosso, até virar um charuto. 

A função do cueiro era tolher os movimentos, conforme a antiga crença de que isso ajudava a conformar as pernas. Só pude andar depois dos dois anos de idade.

Quando meu próprio filho saiu andando, da mesinha de centro até o sofá, uma distância de meio metro metro, aos oitos meses de idade, chorei - e ninguém entendeu. Nem eu.

Quarenta e quatro anos depois do meu nascimento, quando minha mãe morreu e revirei sua caixa de fotografias, vi que ela me tomava no colo com aqueles olhos de amor da mãe. Lamentei não lembrar daquilo.

Somente quando meu filho nasceu, pude saber melhor como é esse amor, por vê-lo nos olhos da mãe dele. Pensei em quantas coisas não me lembrava a respeito de mim mesmo, porque pertencem ao tempo do qual realmente não nos lembramos. Ou melhor, não sabemos como lembrar.

Com um mês de vida, estou certo de que meu filho já me reconhecia, bem como à mãe, e sabia quem dele cuidava. É a fase humana do maior aprendizado, porque saímos do zero para um mundo imenso e ainda essencialmente emocional, não verbal, como forma de cognição.

Eu me perguntava onde paravam as lembranças desse primeiro contato com o mundo, a memória dessa fase que, mesmo sem ser traduzida em palavras, não deixa de ser a base da nossa personalidade, e da inteligência, eminentemente intuitiva.

O que chamamos de memória é a memória racional, construída com imagens e palavras. Os psicanalistas que consultei consideram que a memória, entendida como tal, começa a partir das primeiras palavras. Estou certo, porém, de que existe uma memória anterior, do tempo em que não falávamos, mas sentíamos e tomávamos contato com o mundo desta maneira sensorial.

Para descrever isto, primeiro tentei a prosa, mas não estava satisfeito. Compreendi que a única linguagem que mais se aproxima desse mundo sensorial da criança é a do poema. A poesia, que fala mais pelo que deixa entre as palavras, mais sugere do que descreve, flertando com o sentimento mais puro, ou a "não-palavra", é o que achei para usar.

Essa memória feita de luz e de sombra, de toque, de cheiros e estímulos como dor, incômodo, carinho e  tudo o que podemos reconhecer sensorialmente, incluindo o amor, é ainda mais importante porque não a compreendemos direito. Nos acostumamos a usar para isto o instrumento de reconhecimento errado, que é o verbal e racional. Porém, essa inteligência sensorial e indefinível só porque ser compreendida no seu próprio campo, e vive por trás do que somos, não apenas na infância, como no resto da vida - ou, como digo no poema, no adulto "artificialmente construído". 

Não compreendemos as mensagens desse aprendizado primordial porque elas estão no campo do sentimento puro, do aprendizado não verbal, intuitivo, quase instintivo. Às vezes, agimos sem saber por quê, ou reagimos  a algo, sem saber a razão, ou até mesmo contra ela, por algum impulso aparentemente inexplicável. Acredito hoje que se trata da manifestação dessa memória afetiva, que nos faz reagir segundo um aprendizado anterior à memória racional.

Algo mais antigo ou profundo e que não somos capazes de compreender e resolver bem porque nos acostumamos a traduzir nossos sentimentos em palavras.

Ao ver meu filho, tão pequeno e já com personalidade tão definida, capaz de reagir a estímulos como um beijo e um carinho, um barulho, um grito ou a música clássica, entendi que essa memória sensorial e afetiva só pode ser compreendida e manifestada também sensorial e emocionalmente. Colocada em segundo plano quando se usa apenas a razão, está por trás de muito do nosso comportamento e muitas vezes aflora e tomas as rédeas da vida, sem sabermos por que.

A maior influência na vida do ser humano não é percebida, pois é em grande parte inata. Na maternidade, a enfermeira que trouxe meu filho de madrugada, para mamar pela primeira vez, disse: “Ele é muito calmo, mas quando fica bravo, fica muito bravo”. 

Em uma frase, com poucas horas de observação, acabou de defini-lo como ele é hoje, dezesseis anos depois, e provavelmente como será a vida inteira.

A personalidade inata de cada criança faz com que ela reaja de maneira própria aos primeiros estímulos externos. Uma criança pode receber uma reprimenda com indiferença ou compreensão, enquanto outra, diante da mesma severidade, pode ficar magoada ou abalada pela vida inteira. Cada indivíduo se molda de forma diferente a como o mundo nos trata, quando caímos dentro dele.

Por meu filho, observando como ele tomava conhecimento da vida, e criando com ele nosso relacionamento mudo, mas cheio de afeto e significado, imaginei que eu poderia penetrar nessa caixa preta emocional, entender muito do que sou, fazer uma investigação da memória afetiva até encontrar não apenas essa conexão com ele, como a minha própria personalidade essencial.

Poderia entender a raiz do meu comportamento e também de alguns dos meus problemas - enfim, daquilo que me levou a ser o que eu sou, para o bem e para o mal.

Uma investigação ao começo, ou ao fundo de mim mesmo, algo em que penso cada vez mais, estranhamente na medida em que vou ficando mais velho, como se o tempo nos levasse de volta a nós mesmos - nós que estamos lá, ainda, naquela criança.

Isto é, acredite, Além da Memória - um onírico mergulho no universo interior e, talvez, de umas vidas passadas.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

A mais VIP das revistas

 Na década de 1990, dirigi durante seis anos a revista VIP, então chamada de VIP Exame, quando era ainda um suplemento de EXAME, publicado mensalmente - EXAME era quinzenal, e VIP alternava as quinzenas com Informática EXAMe, que também mais tarde se tornaria independente, com o nome de Info. Primeiro, sob a supervisão do jornalista Antonio Machado, então diretor de EXAME, e depois de José Roberto Guzzo, que me dava completa liberdade para trabalhar (conversávamos apenas sobre as capas, a única coisa que ele queria ver quando eu fechava).


Foi uma experiência rica para mim e significativa para um mercado então emergente, que seguia na esteira da abertura das importações promovida por Fernando Collor. Depois de três décadas de ditadura e xenofobia econômica, num país onde antes somente se saía com um punhado de dólares enfiados no bolso porque nem havia cartão de crédito internacional, o Brasil começava a se integrar ao resto do mundo - e a elite estava na ponta desse processo.


VIP era um suplemento, mas fazia um grande esforço de jornalismo. Algumas de suas capas se tornaram célebres. Foi VIP quem primeiro fez um perfil de Paulo Coelho, quando ele apenas começava a se tornar o "mago" (ainda antes da minha gestão, quando a revista era dirgida pelo jornalista José Ruy Gandra). Ali Coelho firmou seu marketing, dizendo que podia voar e fazia chover, entre outras mágicas literárias.

Foi também a primeira a entrevistar e perfilar um então jovem empresário chamado Eike Batista. Pela primeira vez, uma publicação contava a história de como Eike fizera fortuna nos garimpos da Amazônia, abria empresas a passos rápidos e causava furor ao se casar com a bomshell do momento, Luma de Oliveira, num rumoroso caso de abandono duplo dos ex-noivos de ambos, que fervia nas colunas sociais.

Eike, que me recebeu da primeira vez com uma pistola sobre a mesa num escritório no Flamengo, queria mostrar como havia se tornado campeão em competições de superlanchas nos Estados Unidos, com um barco na época invencível - o "Espírito do Amazonas". Mais tarde, me receberia com Luma no iate clube e passou uma tarde fotografando para a capa da revista em um de seus barcos de corrida. E desapareceria da mídia por mais de uma década.

Em VIP, mostramos quem eram os novos donos do dinheiro - não mais os antigos pioneiros, e sim jovens empresários advindos da classe média, que tinham curso superior, e criavam novas fortunas rapidamente. E que davam valor não apenas ao trabalho suado, código dos velhos pioneiros do empreendedorismo, como a um outro tipo de bem que dava mais status do que a simples demonstração de riqueza: a educação e o refinamento.

Provocadora, a revista promovia encontros impossíveis. Alguns eram divertidos, como o bate papo transcrito do encontro entre o maestro Eleazar de Carvalho e o roqueiro Supla. Alguns desses encontros, no entanto, chegaram a ser realmente importantes, como o que promovemos entre o então presidente da Fiesp, Mario Amato, e o líder sindical Vicentinho, que recebeu uma menção honrosa dos jurados do prêmio Abril daquele ano.

O mais importante é que VIP foi uma revista antenada com seu tempo. Ao promover um concurso de receitas, com o patrocínio do empresário Otávio Piva, importador de vinhos e da marca italiana Barilla, VIP descortinou uma novidade comportamental da época. Ao descobrir que os homens cozinhavam, e as pessoas de forma geral procuravam se sofisticar, alinhou-se com o crescimento do mercado do luxo no Brasil. O concurso, que teve como vencedor Fernando Altério, então dono do Palace, a maior casa de espetáculos de São Paulo, com o prato "farfalle impazzite", foi o início de uma nova era.

VIP mostrou que os homens, em especial os qualificados leitores de EXAME, se organizavam em confrarias gastronômicas e enológicas. A chamada "Confraria de Babette", homenagem ao filme que celebrava os prazeres da mesa, tornou-se então famosa.

Graças aos concurso, Piva firmou Barilla, um macarrão popular na Itália, como um produto de primeira classe no Brasil. E não apenas catapultou suas vendas de vinhos importados como abriu o Emporio Santa Maria, um supermercado onde o destaque eram os produtos importados, e mostrou o caminho a sua irmã, Eliana Tranchesi, fundadora da Daslu, outro ícone do luxo nessa fase.

Não se falava em VIP apenas de comida e viagens. Havia cinema, arte, litratura. Como um guia de São Paulo, falávamos de artes plásticas. Tínhamos grandes colaboradores, em especial jornalistas consagrados, como Ruy Castro, que entre outras coisas escreveu sobre a história da caneta Parker, e nomes como Casimiro Xavier de Mendonça e João Candido Galvão (artes plásgticas) e Leo Gilson Ribeiro (literatura), que tiveram colunas em VIP até o final da vida.

Havia, também, escritores consagrados. Lembro com carinho de uma série especial da seção "Viagem Inteligente", com o relato de escritores sobre seus lugares favoritos no mundo. Lygia Fagundes Telles escreveu sobre Gotemburgo; Antonio Callado, sobre Roma; Nélida Piñon, sobre Barcelona; Luís Fernando Veríssimo, sobre Paris.

Os empresários do setor de luxo tornaram-se ao mesmo tempo personagens e parceiros: despontou toda uma nova geraão para o mundo dos negócios que tinha na revista seu espelho, como André Brett, na moda, e Rogério Fasano (restaurantes e hotelaria). E passaram pela capa de VIP gete tão diferente quanto a então bela hstess do Plaza em Nova York, a brasileira Celita Jackson, quanto os entãos reis da festa Rcardo Amaral e José Victor Oliva, o cardiologista Adib Jatene, o escritor José Saramago e Tom Jobim.

Alguns personagens em VIP foram furos de reportagem, como a capa sobre Chico Buarque, explicando por que ele passara a escrever romances - uma entrevista inédita na Editora Abril, com quem Chico tinha uma velha rixa, por suas aversão à principal publicação da casa, a revista Veja. E o perfil com entrevista então inéditos de um magnata da fé, o então ascendente bispo da Universal Edir Macedo, que jamais tinha recebido antes alguém da imprensa - tive a oportunidade de entrevistá-lo pessoalmente.  

Com o crescimento da revista, VIP se tornou uma publicação independente de EXAME, em 1997. Reestilizou o seu antigo logo, esguio e sofisticado: ficou um logo mais pesado, destinado a causar impacto, criado pelo então diretor de arte de EXAME, Píndaro Camarinha. E passou a colocar mulheres na capa, de modo a aumentar sua venda em bancas, da qual passou a depender com a saída da nave-mãe. Porém, mantém desde então seu espírito de servir ao bem estar masculino e ser um guia de sofisticação e bem viver.

























O concurso Barilla: marco no comportamento masculino

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Amor e Tempestade e a picardia

Em Amor e Tempestade, escrevi  sobre um soldado que persegue a Coluna Prestes pelo Brasil, encontra personagens célebres país afora, numa guerra que nunca tem sequer uma batalha. Como na tradição clássica do romance picaresco brasileiro, meu personagem nasce e sai de Minas Gerais, o que talvez tenha a ver com o jeito mineiro de ser.

No cinema, o herói picaresco mais conhecido é Forrest Gump, um sujeito meio imbecilizado que corre o mundo, participa involuntariamente de grandes episódios históricos, dos quais acaba fazendo parte decisiva, embora sem querer. É a natureza do herói pícaro.

Em Amor e Tempestade, o meu Coracy - qualquer semelhança no nome deve ser coincidência - entra involuntariamente entre os 18 de Forte de Copacabana (que eram 19...), conhece o padre Cícero, Lampião, Rondon, Oswald de Andrade, e e por aí vai. Acaba sendo o personagem central da história brasileira. Infelizmente, ninguém o reconhece!

 A literatura pícara sempre teve poucos autores no Brasil, embora se apreste com perfeição ao nosso tropicalismo cultural. Para quem não conhece bem o gênero, recomendo algumas leituras.

O maior clássico da literatura picaresca brasileira é Manoel Antônio de Almeida, com seu Memórias de Um Sargento de Milícias. Temos também o Fernado Sabino de O Grande Mentecapto; Chico Buarque, cujos romances navegam todos nesse gênero, especialmente Estorvo; e José Roberto Torero, brilhante romancista histórico-picaresco, de quem recomendo o sardônico O Chalaça, o obscuro ajudante de D. Pedro I, de quem Torero faz o verdadeiro e insuspeitado patrono da independência brasileira.

O romance picaresco nasceu como o antípoda dos grandes heróis românticos dos folhetins medievais, ironizando-os. A grande obra que elevou o gênero aos maiores clássicos foi Dom Quixote. Na minha opinião, é a maior obra literária de todos os tempos, justamente por mostrar como vivemos sonhos de grandeza, na pequeneza do que somos: a grande contradição do ser humano.

Por muito tempo considerado literatura menor, o gênero picaresco, na tradição do Dom Quixote, talvez seja o maior, assim como seu personagem, porque o contrário também é verdadeiro: na nossa pequeneza, lutando contra a miséria humana, no fim, nós somos grandes.

Melhor ainda, trata disso com certa leveza, uma auto ironia, que não por acaso gerou esta palavra para mim tão cara: a picardia. Designa uma forma de enfrentar as dificuldades da vida, aceitar com naturalidade o erro, a derrota, o azar. Sobretudo, é uma forma de lidar com as pequenas e grandes traições da vida, como a indiferença, a ingratidão e o desamor, que não merecem de nós mais que a ironia.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

A heroína sem direção

“Perla Stuart, a ex-mulher”, do autor, ator e produtor teatral Dionisio Neto, é um roman à clef, ou “romance à chave”, expressão francesa para obras que tratam de pessoas de verdade, apenas com nomes inventados. Explica-se a discrição com as identidades, pois assim Dionisio aproveita a possibilidade de escrever mais livremente. É a função da  literatura. Como ficção, nos permitimos falar com franqueza da realidade. Na mentira, estão as maiores verdades.

A forma também se adequa às pessoas que Dionisio procura descrever. Deliberadamente, ele segue uma tradição literária, cujo vértice é o Dom Quixote, de Cervantes. "Perla Stuart" é um romance picaresco, isto é, que mostra a vida de gente com grandes propósitos, ou em busca de feitos heroicos, porém sempre de forma meio desastrada.

O herói pícaro, um espertalhão sempre metido em enrascadas, é a síntese e o centro desse gênero. Como um Dom Quixote moderno, e cheia de desejos femininos, Perla é uma anti-heroína, assim como seu amigo Adônis – nome fictício, referência ao efebo que era o modelo de beleza masculina na mitologia grega, e que só suporia vaidade maior se fosse Narciso.

Fiel ao romance picaresco na sua concepção e na forma, com títulos de capítulos que lembram os do antigo folhetim, Dionisio apenas quebra um pouco a tradição por transportar a história para São Paulo, nos dias que chegam até hoje, e não Minas Gerais, como na vertente clássica da literatura picaresca brasileira.

Em "Perla Stuart", desfia as aventuras de sua personagem principal, recheadas de sexo e filosofia barata. A Perla de Dionísio conhece e frequenta a cama e a conta bancária de gente rica e famosa, mas ela mesma não tem nada.

Circula por todos os lugares, apanha, rala o joelho, transa com mendigos, toma drogas, experimenta da vida tudo o que ela oferece, sem pensar duas vezes, e de imediato. Mesmo com toda essa intensidade desesperada, não deixa de viver no mais profundo vazio. Ele se resume na constatação da personagem de que viver é “acordar, comer e dormir” até um dia parar “no caixão”.

"Perla" anda por todos os lugares, com todo tipo de gente, mas parece não ter, ela mesma, direção. É promíscua, leviana e inconsequente, no que diz respeito à sua vida e dos outros também. Passa como um terremoto pela vida alheia, incluindo a de um marido, que a certa altura, com um filho, faz com que passe a sustentá-la depois da separação.

Assim, todas as aventuras de Perla para ser alguém extraordinário no final se resumem a isso: uma mulher vivendo da pensão do ex-marido, como muitas outras. Ela, enfim, encontra-se como atriz de uma única personagem: a da ex-mulher. E, como o romance sardonicamente expressa, “ex é para sempre”. É Dom Quixote, fora do seu delírio.

Pode-se pensar que o livro, como seu personagem, não tem também um caminho, um ensinamento, uma solução. Porém, é também de se pensar se a vida não é mesmo isto, um passeio preferível com festas, drogas, bebedeiras e esquecimento. Aqueles que acham estar fazendo alguma coisa construtiva, nesse caso, apenas estariam perdendo seu tempo, ou uma certa diversão.

Gostoso de ler, “Perla Stuart – a ex mulher”, no final, dá um certo medo. Para quem entra no seu mundo, como quem lê o Livro da Sabedoria - a história de Salomão, na Bíblia -, fica a sensação de começar a acreditar, com “Perla”, que tudo é apenas vaidade.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Poetas em flagrante delitro

Nos últimos tempos, tenho me dedicado a reunir poemas e construir toda uma nova obra para mim, o que consome boa parte do meu tempo. Não fossem as exigências práticas, possivelmente eu não faria outra coisa. Isso me faz entender perfeitamente a obsessão que tomou conta de Fernando Pessoa, contribuindo, creio eu, para lhe apressar o fim da vida. Ou foi o fim da vida que apressou a obsessão pela poesia.

A história é boa. Um dia, Carlos Queirós mostrou a sua tia, Ofélia, uma fotografia enviada a ele por Fernando. Estava tomando uma taça de vinho no bar de Abel Pereira da Fonseca, em Lisboa. Ofélia era o único amor conhecido de Fernando, mas estavam afastados já algum tempo. Aquela fotografia, contudo, os reaproximou.

Ela pediu uma cópia da imagem, que Fernando lhe mandou, com uma espirituosa dedicatória: "Fernando Pessoa, em flagrante delitro". Era 1929. Eles voltaram a se relacionar, mas ele a advertiu que já não era "o mesmo". Estava tão concentrado no trabalho, que receava agora ter pouco tempo para dedicar a uma mulher.

"Recomeçamos então o namoro", lembrou Ofélia. "O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente, na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes dizia que tinha medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra."

Disse a Ofélia, certo dia: "Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado."

Bebé era ela, Ofélia, para quem ele receava não poder dar o nível de vida ao qual ela estava habituada.

"Ele não queria ir trabalhar todos os dias, porque queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra", escreveu Ofélia. "Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal. Dizia-me: 'Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.' "

A certa altura, de fato, sobretudo quando sabemos o que importa para nós, todo o resto parece tomar um precioso tempo. Ficamos somente no que interessa. É a obsessão poética, que Fernando conheceu e aproveitou o quanto pôde.









domingo, 16 de julho de 2023

A imprensa que todo mundo conhece

Era novembro de 1996 e eu trabalhava como editor da revista VIP, então ainda um suplemento de Exame, onde tinha uma coluna de assuntos "masculinos" - assim, me interessei pela capa da revista Esquire daquele mês, que falava sobre uma jovem, bela e fulgurante estrela em ascensão em Hollywood, chamada Allegra Coleman - "Dream girl", era a chamada de capa.

O exemplar que me chegou às mãos foi enviado numa assinatura em nome de Thomaz Souto Correa, vice-presidente da Abril (no selinho da remessa, está TS Correa), e encaminhado a mim pelo escritório da Abril em Nova York. Seria fácil apenas dar uma nota, reproduzindo a revista, mas, como eu sou jornalista da gema, mesmo num tempo em que chamada internacional era cara e difícil, liguei para o editor da revista, Edward Kosner, para checar informações e saber algo mais sobre a tal estrela.

Ele a princípio não me atendeu, mas, diante de uma certa insistência, na terceira ou quarta tentativa a secretária passou a ligação. Kosner então me explicou que Allegra simplesmente não existia: era uma invenção da revista, usando uma modelo, apenas para mostrar que Esquire era capaz de criar uma estrela, do nada, que todo mundo acreditaria. E realmente não dava para saber que aquilo era invenção, apesar do subtítulo malicioso da capa: "A Allegra Coleman que ninguém conhece".

Claro, a minha nota não foi sobre Allegra, mas sobre a história da capa inventada de Esquire. De fato, a suposta "brincadeira" acabou chamando a atenção. A modelo, Ali Larter, então com vinte anos, conheceu aí seu agente e fez alguns filmes de sucesso, começando por hits de terror até Legalmente Loira.

Ficou para mim, no entanto, a questão ética: até que ponto um órgão de imprensa mentir propositadamente tinha sido uma boa ideia? Em uma entrevista posterior, Larter disse que era muito jovem para avaliar essa questão na época e Kosner divertira-se com a "pegadinha". (Ver "Ali Larter on Her Secret Identity: Hollywood Starlet Allegra Coleman", Julia Black, Esquire, 11 de outubro de 2015)

Da nossa conversa ao telefone, porém, lembro que Kosner se mostrava um pouco constrangido em ter que esclarecer a situação a um outro jornalista. E dava sinais de que preferia encerrar aquele assunto e, com sorte, deixá-lo no passado.

A autora, Martha Sherrill, talvez para sustentar que não havia com que se embaraçar, ainda fez dois livros sobre "Allegra Coleman". Ainda tentou ganhar algum dinheiro extra sobre uma mentira.

Para mim, nestes tempos de fake news, essa historinha serve para lembrar que não são de hoje as invencionices de veiculos de imprensa, com prejuízo para sua credibilidade. Os factóides não se resumem à política, aventurando-se em atingir outras finalidades que, a meu ver, ferem a ética do jornalismo e são mau uso do "quarto poder", além de, no final, se tornarem contraproducentes.