terça-feira, 8 de agosto de 2023

Amor e Tempestade e a picardia

Em Amor e Tempestade, escrevi  sobre um soldado que persegue a Coluna Prestes pelo Brasil, encontra personagens célebres país afora, numa guerra que nunca tem sequer uma batalha. Como na tradição clássica do romance picaresco brasileiro, meu personagem nasce e sai de Minas Gerais, o que talvez tenha a ver com o jeito mineiro de ser.

No cinema, o herói picaresco mais conhecido é Forrest Gump, um sujeito meio imbecilizado que corre o mundo, participa involuntariamente de grandes episódios históricos, dos quais acaba fazendo parte decisiva, embora sem querer. É a natureza do herói pícaro.

Em Amor e Tempestade, o meu Coracy - qualquer semelhança no nome deve ser coincidência - entra involuntariamente entre os 18 de Forte de Copacabana (que eram 19...), conhece o padre Cícero, Lampião, Rondon, Oswald de Andrade, e e por aí vai. Acaba sendo o personagem central da história brasileira. Infelizmente, ninguém o reconhece!

 A literatura pícara sempre teve poucos autores no Brasil, embora se apreste com perfeição ao nosso tropicalismo cultural. Para quem não conhece bem o gênero, recomendo algumas leituras.

O maior clássico da literatura picaresca brasileira é Manoel Antônio de Almeida, com seu Memórias de Um Sargento de Milícias. Temos também o Fernado Sabino de O Grande Mentecapto; Chico Buarque, cujos romances navegam todos nesse gênero, especialmente Estorvo; e José Roberto Torero, brilhante romancista histórico-picaresco, de quem recomendo o sardônico O Chalaça, o obscuro ajudante de D. Pedro I, de quem Torero faz o verdadeiro e insuspeitado patrono da independência brasileira.

O romance picaresco nasceu como o antípoda dos grandes heróis românticos dos folhetins medievais, ironizando-os. A grande obra que elevou o gênero aos maiores clássicos foi Dom Quixote. Na minha opinião, é a maior obra literária de todos os tempos, justamente por mostrar como vivemos sonhos de grandeza, na pequeneza do que somos: a grande contradição do ser humano.

Por muito tempo considerado literatura menor, o gênero picaresco, na tradição do Dom Quixote, talvez seja o maior, assim como seu personagem, porque o contrário também é verdadeiro: na nossa pequeneza, lutando contra a miséria humana, no fim, nós somos grandes.

Melhor ainda, trata disso com certa leveza, uma auto ironia, que não por acaso gerou esta palavra para mim tão cara: a picardia. Designa uma forma de enfrentar as dificuldades da vida, aceitar com naturalidade o erro, a derrota, o azar. Sobretudo, é uma forma de lidar com as pequenas e grandes traições da vida, como a indiferença, a ingratidão e o desamor, que não merecem de nós mais que a ironia.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

A heroína sem direção

“Perla Stuart, a ex-mulher”, do autor, ator e produtor teatral Dionisio Neto, é um roman à clef, ou “romance à chave”, expressão francesa para obras que tratam de pessoas de verdade, apenas com nomes inventados. Explica-se a discrição com as identidades, pois assim Dionisio aproveita a possibilidade de escrever mais livremente. É a função da  literatura. Como ficção, nos permitimos falar com franqueza da realidade. Na mentira, estão as maiores verdades.

A forma também se adequa às pessoas que Dionisio procura descrever. Deliberadamente, ele segue uma tradição literária, cujo vértice é o Dom Quixote, de Cervantes. "Perla Stuart" é um romance picaresco, isto é, que mostra a vida de gente com grandes propósitos, ou em busca de feitos heroicos, porém sempre de forma meio desastrada.

O herói pícaro, um espertalhão sempre metido em enrascadas, é a síntese e o centro desse gênero. Como um Dom Quixote moderno, e cheia de desejos femininos, Perla é uma anti-heroína, assim como seu amigo Adônis – nome fictício, referência ao efebo que era o modelo de beleza masculina na mitologia grega, e que só suporia vaidade maior se fosse Narciso.

Fiel ao romance picaresco na sua concepção e na forma, com títulos de capítulos que lembram os do antigo folhetim, Dionisio apenas quebra um pouco a tradição por transportar a história para São Paulo, nos dias que chegam até hoje, e não Minas Gerais, como na vertente clássica da literatura picaresca brasileira.

Em "Perla Stuart", desfia as aventuras de sua personagem principal, recheadas de sexo e filosofia barata. A Perla de Dionísio conhece e frequenta a cama e a conta bancária de gente rica e famosa, mas ela mesma não tem nada.

Circula por todos os lugares, apanha, rala o joelho, transa com mendigos, toma drogas, experimenta da vida tudo o que ela oferece, sem pensar duas vezes, e de imediato. Mesmo com toda essa intensidade desesperada, não deixa de viver no mais profundo vazio. Ele se resume na constatação da personagem de que viver é “acordar, comer e dormir” até um dia parar “no caixão”.

"Perla" anda por todos os lugares, com todo tipo de gente, mas parece não ter, ela mesma, direção. É promíscua, leviana e inconsequente, no que diz respeito à sua vida e dos outros também. Passa como um terremoto pela vida alheia, incluindo a de um marido, que a certa altura, com um filho, faz com que passe a sustentá-la depois da separação.

Assim, todas as aventuras de Perla para ser alguém extraordinário no final se resumem a isso: uma mulher vivendo da pensão do ex-marido, como muitas outras. Ela, enfim, encontra-se como atriz de uma única personagem: a da ex-mulher. E, como o romance sardonicamente expressa, “ex é para sempre”. É Dom Quixote, fora do seu delírio.

Pode-se pensar que o livro, como seu personagem, não tem também um caminho, um ensinamento, uma solução. Porém, é também de se pensar se a vida não é mesmo isto, um passeio preferível com festas, drogas, bebedeiras e esquecimento. Aqueles que acham estar fazendo alguma coisa construtiva, nesse caso, apenas estariam perdendo seu tempo, ou uma certa diversão.

Gostoso de ler, “Perla Stuart – a ex mulher”, no final, dá um certo medo. Para quem entra no seu mundo, como quem lê o Livro da Sabedoria - a história de Salomão, na Bíblia -, fica a sensação de começar a acreditar, com “Perla”, que tudo é apenas vaidade.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Poetas em flagrante delitro

Nos últimos tempos, tenho me dedicado a reunir poemas e construir toda uma nova obra para mim, o que consome boa parte do meu tempo. Não fossem as exigências práticas, possivelmente eu não faria outra coisa. Isso me faz entender perfeitamente a obsessão que tomou conta de Fernando Pessoa, contribuindo, creio eu, para lhe apressar o fim da vida. Ou foi o fim da vida que apressou a obsessão pela poesia.

A história é boa. Um dia, Carlos Queirós mostrou a sua tia, Ofélia, uma fotografia enviada a ele por Fernando. Estava tomando uma taça de vinho no bar de Abel Pereira da Fonseca, em Lisboa. Ofélia era o único amor conhecido de Fernando, mas estavam afastados já algum tempo. Aquela fotografia, contudo, os reaproximou.

Ela pediu uma cópia da imagem, que Fernando lhe mandou, com uma espirituosa dedicatória: "Fernando Pessoa, em flagrante delitro". Era 1929. Eles voltaram a se relacionar, mas ele a advertiu que já não era "o mesmo". Estava tão concentrado no trabalho, que receava agora ter pouco tempo para dedicar a uma mulher.

"Recomeçamos então o namoro", lembrou Ofélia. "O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente, na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes dizia que tinha medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra."

Disse a Ofélia, certo dia: "Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado."

Bebé era ela, Ofélia, para quem ele receava não poder dar o nível de vida ao qual ela estava habituada.

"Ele não queria ir trabalhar todos os dias, porque queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra", escreveu Ofélia. "Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal. Dizia-me: 'Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.' "

A certa altura, de fato, sobretudo quando sabemos o que importa para nós, todo o resto parece tomar um precioso tempo. Ficamos somente no que interessa. É a obsessão poética, que Fernando conheceu e aproveitou o quanto pôde.









domingo, 16 de julho de 2023

A imprensa que todo mundo conhece

Era novembro de 1996 e eu trabalhava como editor da revista VIP, então ainda um suplemento de Exame, onde tinha uma coluna de assuntos "masculinos" - assim, me interessei pela capa da revista Esquire daquele mês, que falava sobre uma jovem, bela e fulgurante estrela em ascensão em Hollywood, chamada Allegra Coleman - "Dream girl", era a chamada de capa.

O exemplar que me chegou às mãos foi enviado numa assinatura em nome de Thomaz Souto Correa, vice-presidente da Abril (no selinho da remessa, está TS Correa), e encaminhado a mim pelo escritório da Abril em Nova York. Seria fácil apenas dar uma nota, reproduzindo a revista, mas, como eu sou jornalista da gema, mesmo num tempo em que chamada internacional era cara e difícil, liguei para o editor da revista, Edward Kosner, para checar informações e saber algo mais sobre a tal estrela.

Ele a princípio não me atendeu, mas, diante de uma certa insistência, na terceira ou quarta tentativa a secretária passou a ligação. Kosner então me explicou que Allegra simplesmente não existia: era uma invenção da revista, usando uma modelo, apenas para mostrar que Esquire era capaz de criar uma estrela, do nada, que todo mundo acreditaria. E realmente não dava para saber que aquilo era invenção, apesar do subtítulo malicioso da capa: "A Allegra Coleman que ninguém conhece".

Claro, a minha nota não foi sobre Allegra, mas sobre a história da capa inventada de Esquire. De fato, a suposta "brincadeira" acabou chamando a atenção. A modelo, Ali Larter, então com vinte anos, conheceu aí seu agente e fez alguns filmes de sucesso, começando por hits de terror até Legalmente Loira.

Ficou para mim, no entanto, a questão ética: até que ponto um órgão de imprensa mentir propositadamente tinha sido uma boa ideia? Em uma entrevista posterior, Larter disse que era muito jovem para avaliar essa questão na época e Kosner divertira-se com a "pegadinha". (Ver "Ali Larter on Her Secret Identity: Hollywood Starlet Allegra Coleman", Julia Black, Esquire, 11 de outubro de 2015)

Da nossa conversa ao telefone, porém, lembro que Kosner se mostrava um pouco constrangido em ter que esclarecer a situação a um outro jornalista. E dava sinais de que preferia encerrar aquele assunto e, com sorte, deixá-lo no passado.

A autora, Martha Sherrill, talvez para sustentar que não havia com que se embaraçar, ainda fez dois livros sobre "Allegra Coleman". Ainda tentou ganhar algum dinheiro extra sobre uma mentira.

Para mim, nestes tempos de fake news, essa historinha serve para lembrar que não são de hoje as invencionices de veiculos de imprensa, com prejuízo para sua credibilidade. Os factóides não se resumem à política, aventurando-se em atingir outras finalidades que, a meu ver, ferem a ética do jornalismo e são mau uso do "quarto poder", além de, no final, se tornarem contraproducentes.









quinta-feira, 13 de julho de 2023

O Céu de Kundera


Meu primeiro editor, Pedro Paulo Sena Madureira, fez também os primeiros livros no Brasil de Milan Kundera e tornou-se seu amigo. Contava de uma visita que lhe fizera, em sua casa, na França, quando ele já sofria de depressão aguda. Sentado na cozinha, Kundera  apontava os móveis, que ele mesmo tinha feito, usando a marcenaria como terapia ocupacional.

 - Já não me interessa a literatura - ironizava. - Meu negócio agora é o "bricolage".

Eu gostei muito de A Insustentável Leveza do Ser, quando li o romance pela primeira vez. A história do homem que levava a vida com leveza e da mulher que arrastava raízes pelo chão, ou de como o amor pode juntar gente tão diferente, me pareceu uma espécie de romance filosófico, que trazia o melhor de uma literatura existencialista do passado, mas sem a amargura de Camus, Sartre e Beauvoir.

O tempo passou, gostei menos do livro, cansativo na segunda vez em que o li, e achei o filme melhor que a obra literária, algo raro. Concluí que ela não era tão boa como eu acreditava, ficou datada - ou eu simplesmente fiquei mais velho.

A história de Kundera na cozinha reforçou minha impressão de que sonhamos e queremos muito escrever livros e, quando o fazemos, isso deixa de ter a antiga importância. Nesse momento, há algo na vida que desaba sobre nós, como um pesado céu.

Chamo a este efeito de "Céu de Kundera", e penso nele toda vez que me dá vontade de fazer outra coisa, qualquer coisa, como virar pescador, plantador de cebolas, estivador, ou quem sabe guia do deserto.

Mas um dia chega o descanso, e o Céu de Kundera agora é de paz.

sábado, 1 de julho de 2023

A morte de um livro

Como pessoas, os livros nascem - e também morrem, cumprido seu tempo e papel. É o caso de meu primeiro livro, Liberdade para Todos, publicado pela primeira vez pela Moderna em 1996, cuja vida chega ao fim, 27 anos depois, com mais de 200 mil exemplares vendidos ao longo do tempo.

Vai aqui seu breve obituário, cheio de alegrias. Quando escrevi essa história, como sempre, tentava ajeitar sentimentos que eram meus. Com o livro - sobre um pai, um filho e um passarinho -, não imaginei fazer tantos leitores, tocando em assuntos delicados com crianças: responsabilidade,  liberdade  e, sobretudo, como lidar com a morte.










O melhor foi na época em que ainda se enviavam cartas. Vinham quilos, de lugares tão diversos como Canoas, no Rio Grande do Sul, e Parintins, no Amazonas. Eram de professores, mães e crianças, entre 8 a 9 anos. Vinham fotos, desenhos, convites, beijos impressos, poemas, histórias, palavras carinhosas, de agradecimento,  de incentivo - um adorável turbilhão de amor.

Houve também incidentes. Certa vez, o pai de um aluno do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, tentou proibir a adoção do livro pelos professores. Alegou que trabalhava no IBAMA e achava inapropriada uma obra que falava de um passarinho preso na gaiola. A editora me ligou, perguntando que justificativa eu teria a dar a esse pai. Respondi que ele lesse do livro pelo menos o título, que já indicava do que a obra era a favor.

Esse foi, no entanto,  um prenúncio do fim. Já não há passarinhos em gaiolas, ou pelo menos não é algo próximo da realidade da maioria das crianças hoje. O livro envelheceu. E agora, depois dessa longa vida, concluímos, eu e a Editora, que seu ciclo está terminando e a atual será sua última reimpressão.

Aqui fica meu obrigado a Walcyr Carrasco, que me indicou a Maristela Petrili, e a Maristela, editora que acreditou na obra e sempre me tratou com a correção, a gentileza e a elegância que me fizeram seu admirador.

Agradeço também a todos meus milhares de pequenos leitores, hoje a maioria já adultos, que me deram a maior recompensa destinada a um autor: um lugar, por algum tempo, na sua vida.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Desencontos -2: um quarto de hotel em Paris

 A longa escadaria em espiral, até o último andar, uma só porta e o quarto. Ocupava, inteiro, um grande sótão: a cama de casal num mezanino baixo, uma cozinha com um balcão, uma sala de estar com uma escrivaninha de trabalho; à esquerda, a passagem para o segundo quarto, amplo, com uma banheira ao centro; a cama de madeira escura, diante da grande lareira de granito branco.

Teresa achou graça na porta de masmorra, baixa e pesada, que dava acesso ao banheiro, de teto inclinado pela meia água. Passeou os olhos pelos móveis antigos: o baú do tempo das diligências, o mobiliário Luis XV, a cama pesada de cabeceira alta, cenário de vidas e horas inconfessáveis.

As malas nem foram desfeitas: Teresa e Marcel mergulharam nos lençóis flutuantes, entre os travesseiros de penas, a pele morena dela na tela de branco alvíssimo, os cabelos de graúna  espalhados, ondulando sobre as dobras do algodão indiano.

O cheiro dos corpos misturados, a vontade primitiva, a matrioska dos desejos, desvelados um atrás do outro. Mesmo cansado de viagem, Marcel não dormiu: preferiu ver Teresa na penumbra, adormecida ao seu lado, enfim serena e apaziguada, joia viva sobre o colchão.

Pela janela medieval se avistava os telhados do casario, mas para eles Paris estava ali dentro, à luz de do abajur art déco: languidez e lassidão. Dormiam e acordavam enlaçados, amantes num refúgio, esconderijo de tudo: da vida lá fora, do passado, deles mesmos, da luz e da escuridão.

Tinham saído do Rio de Janeiro, sem dizer a ninguém onde iam, com quem iam, nem a razão. Eles mesmos não sabiam ao certo o que os movia, exceto que, fosse como fosse, a vida levava um para o outro. E só.

Teresa embarcou no aeroporto sem malas, livre de tudo, o avião apenas como ponte para ele, que já a esperava. O momento de um para o outro, única coisa de que precisavam, única destinação.

Deixaram para trás a vida anterior, os filhos, o medo. Não, o medo, não. Pairava a sombra do exame de Teresa, um indicador que não podia dar mais que 20, e dava 1000. Eles não sabiam o quão grave podia ser, qual era o tumor, nada, só aquele número: na volta, com mais exames, saberiam melhor. 

A dúvida pode ser o inferno da alma e eles sabiam que o passado pesava: a vida anterior os minara. A tristeza é somática, domina o ânimo, depois penetra nas células, corrói os tecidos. Contra ela o corpo sofrido se rebela, avisa, ordena a revolta.

O futuro ninguém sabia, mas eles se refugiavam na certeza dos braços um do outro, sem outros pensamentos, sem outro sentido, sem outra razão. Passavam o dia enlaçados, imersos em sussurros e planos, as coisas em comum: o amor à palavra,  a necessidade de leitura, não dos livros, mas dos sentimentos, penúria de que tinha vivido no deserto dos outros, o mundo onde você sempre serve à vaidade de alguém e sempre acaba sozinho.

As conversas sussurradas traziam o amor de volta, brigado, mordido, suado, até que tinham de trocar de cama, tão molhados ficavam os lençóis. Depois ele lavava os cabelos dela, um ritual lento, longo e solene, teatro de amor, na banheira feita de palco.

Ela secava as melenas no espelho antigo, usando ao mesmo tempo dois secadores, uma dança mágica de cabelos ao vento; ele ria e admirava a destreza, cada movimento de Teresa era graça, beleza e arte.

Saíram do quarto pela primeira vez no dia seguinte, depois das quatro da tarde, e só porque precisavam comer.

Paris no Natal estava frio, Paris chovia, e a melhor hora era voltar, subir aquela escadaria, esconder-se  no sótão, sua nova casa. Moravam agora dentro de um quarto e, naquele quarto, um dentro do outro.

No dia seguinte, fim de tarde,  breve interlúdio: atravessaram a ponte Solferino, dos cadeados, onde tanta gente deixava sua promessa de amor, e seguiram pela quai da Rive Droite. Ele a fotografava, usando a boina dele e calça xadrez - musa de uma belle époque que ele mesmo inventou. 

Passaram pelo mendigo adormecido sob a Pont du Carrousel; saíram da margem e entraram nas Tulherias, pisando o cascalho entre os esqueletos das árvores invernais. 

O sol súbito caiu sobre a água da Grand Bassin Ronde, a piscina que separa o palácio do Louvre de seu imenso jardim. Momento iluminado, ou mensagem divina, Teresa despertou de repente - que bonito, onde estamos, perguntou.

As luzes da Saint Chapelle, pausa para uma oração. A noite para sair: o restaurante japonês, invenções sobre um prato; cruzaram o canal sobre o Sena e centenas de pessoas foram se juntando a eles pelo caminho, passos ressoando na calçada, em meio ao frio da noite.

Da passarela em arco, avistavam ao longe a tenda iluminada do Cirque du Soleil, nave  esplendorosa brilhando branca na noite, ao lado do rio.

Corteo: espetáculo da vida assistindo a morte, ou da morte assistindo a vida. Algo tão igual ao momento deles, tristeza e alegria, esperança e medo, misturados em turbilhão. Era isto, a vida: uma bicicleta sobre a corda, rumando ao céu; a beleza de viver até o fim, seja quando e onde for, arriscando tudo. 

Por fim chegou a véspera do Natal, o dia receado, que ambos passariam longe das famílias: receio da opressão da saudade, de ter estragado tudo; a carga do sofrimento próprio e dos outros; o abismo entre onde estavam e o que ficou para trás. Porém, o futuro eles iam construir juntos, para viver não como outros queriam, mas como eles mesmos, do jeito que eram, em estado verdadeiro e puro e claro.

Enquanto pelo mundo crianças recebiam os presentes de Natal, famílias estalavam copos e talheres em festa, eles anestesiavam a alma na plateia da Opera de Paris. O balé Onéguine: uma tragédia de amor. 

Todo grande amor tem algo de trágico: assim era também o amor deles, grande, feito de dor por muitos lados, mas era também o que os unia. Transmutariam a tristeza em felicidade, contagiaram a todos com aquele amor, que transbordava para ser dividido, dando a todos esperança, sonho de final feliz.

No intervalo do espetáculo, uma taça de champanhe na sacada, o brinde de Natal, feito como juramento: nós dois consertaremos tudo; mesmo contra tudo, tudo podemos juntos, esta é a força maior.

Saíram caminhando abraçados pela ruas enfeitadas de luzes vermelhas; entraram no Café del' Opera, para uma taça de vinho, entre as mesas vazias da meia noite natalina. A cidade estava suspensa, mas eles sorriam, mais leves. Passara o mais difícil e eles se deixavam embalar pelo mel de um dia inteiro de cumplicidades.

Breves impressões da vida lá fora: O Pensador, no Museu Rodin ("já vi isto aqui", disse Teresa); madeleines num café acolhedor; o silêncio sagrado do velho templo de Saint-Germain-des-Prés. Por fim subir de novo a escada, a sensação de voltar ao abrigo do quarto, a eles mesmos, sua primeira casa, das muitas que teriam depois. 

O frio ficava do lado de fora, de fora ficava até mesmo o medo, com o passado de desilusão. Eles não precisavam de mais nada, Paris era ali, mas seria em qualquer lugar: viveriam, sobreviveriam, Marcel salvaria Teresa do câncer, da tristeza, do abandono, que também era seu. 

Teriam a felicidade mais pura, reunindo novamente a todos, para outros natais, contagiados por aquela Paris que eles levariam para sempre, onde fossem, transbordantes de amor.

*

Marcel olha as fotos antigas, abre o navegador e pesquisa: Hotel del' Université. 

Há um passeio virtual; ele sobe a escadaria, usando o dedo indicador sobre o laptop, e chega ao último andar.

O antigo sótão, onde ficava o quarto Saint Germain, foi dividido em quartos diferentes, com paredes brancas e mobiliário contemporâneo. Ainda há janelas para o casario de Paris, mas a grande lareira de mármore, a banheira, a história, tudo desapareceu.

O texto informa que o hotel passou por uma renovação. Remexendo lembranças, ele se dá conta de ter estado ali uma vez anterior, muito tempo antes daquela semana de Natal em Paris.

Tinha pouco mais de vinte anos quando, passando ao acaso na rua, entrou no hotel, para conhecer. Queria ser escritor e soube que Hemingway, quando estava na cidade, se hospedava ali. Subiu ao quarto do último andar, levado por um camareiro, com a chave na mão, para ver onde ele se hospedara. 

Olhou o grande sótão, com jeito de casa no céu; parou diante da janela, e pensou: um dia vou publicar livros, terei dinheiro e trarei para cá alguém especial, para a minha melhor história de amor.

Depois, esqueceu tudo, ou quase: escolheu aquele hotel por lembrar vagamente que um dia quisera hospedar-se ali. Uma mensagem no tempo, para o dia em que, amadurecido, cumprisse a antiga promessa, sem saber.

Marcel faz uma busca pelo site. Não há mais qualquer referência  a Hemingway. Teresa vive, mas não está com ele. Depois de tantas casas, nas buscas de quem nunca achou algo o bastante, nunca parou: espelho na impermanência, na inquietação. Os carentes de um amor que não existe, ou sempre muda de lugar: destruidores de corações.

Nao a reconheceria se a visse na rua: aprendera que se pode sentir luto por alguem ainda vivo, mas que nao erea quem se pensava, como se tivesse morrido, ou ainda pior, nunca existido. Já não existe o quarto, não mais existe Teresa de Marcel, mas ele é o mesmo. Não só o homem daquele Natal em Paris. É o rapaz magro e imberbe que andava no inverno parisiense de capa de chuva, sem dinheiro para comprar um casaco de verdade, passando fome e frio, sonhando com a vida de Hemingway.  

Sim, isso ficou: sonho. A entrega sem receio, a vontade de amar, de sempre experimentar a vida intensamente, e escrever. 

Ainda.