domingo, 16 de julho de 2023

A imprensa que todo mundo conhece

Era novembro de 1996 e eu trabalhava como editor da revista VIP, então ainda um suplemento de Exame, onde tinha uma coluna de assuntos "masculinos" - assim, me interessei pela capa da revista Esquire daquele mês, que falava sobre uma jovem, bela e fulgurante estrela em ascensão em Hollywood, chamada Allegra Coleman - "Dream girl", era a chamada de capa.

O exemplar que me chegou às mãos foi enviado numa assinatura em nome de Thomaz Souto Correa, vice-presidente da Abril (no selinho da remessa, está TS Correa), e encaminhado a mim pelo escritório da Abril em Nova York. Seria fácil apenas dar uma nota, reproduzindo a revista, mas, como eu sou jornalista da gema, mesmo num tempo em que chamada internacional era cara e difícil, liguei para o editor da revista, Edward Kosner, para checar informações e saber algo mais sobre a tal estrela.

Ele a princípio não me atendeu, mas, diante de uma certa insistência, na terceira ou quarta tentativa a secretária passou a ligação. Kosner então me explicou que Allegra simplesmente não existia: era uma invenção da revista, usando uma modelo, apenas para mostrar que Esquire era capaz de criar uma estrela, do nada, que todo mundo acreditaria. E realmente não dava para saber que aquilo era invenção, apesar do subtítulo malicioso da capa: "A Allegra Coleman que ninguém conhece".

Claro, a minha nota não foi sobre Allegra, mas sobre a história da capa inventada de Esquire. De fato, a suposta "brincadeira" acabou chamando a atenção. A modelo, Ali Larter, então com vinte anos, conheceu aí seu agente e fez alguns filmes de sucesso, começando por hits de terror até Legalmente Loira.

Ficou para mim, no entanto, a questão ética: até que ponto um órgão de imprensa mentir propositadamente tinha sido uma boa ideia? Em uma entrevista posterior, Larter disse que era muito jovem para avaliar essa questão na época e Kosner divertira-se com a "pegadinha". (Ver "Ali Larter on Her Secret Identity: Hollywood Starlet Allegra Coleman", Julia Black, Esquire, 11 de outubro de 2015)

Da nossa conversa ao telefone, porém, lembro que Kosner se mostrava um pouco constrangido em ter que esclarecer a situação a um outro jornalista. E dava sinais de que preferia encerrar aquele assunto e, com sorte, deixá-lo no passado.

A autora, Martha Sherrill, talvez para sustentar que não havia com que se embaraçar, ainda fez dois livros sobre "Allegra Coleman". Ainda tentou ganhar algum dinheiro extra sobre uma mentira.

Para mim, nestes tempos de fake news, essa historinha serve para lembrar que não são de hoje as invencionices de veiculos de imprensa, com prejuízo para sua credibilidade. Os factóides não se resumem à política, aventurando-se em atingir outras finalidades que, a meu ver, ferem a ética do jornalismo e são mau uso do "quarto poder", além de, no final, se tornarem contraproducentes.









quinta-feira, 13 de julho de 2023

O Céu de Kundera


Meu primeiro editor, Pedro Paulo Sena Madureira, fez também os primeiros livros no Brasil de Milan Kundera e tornou-se seu amigo. Contava de uma visita que lhe fizera, em sua casa, na França, quando ele já sofria de depressão aguda. Sentado na cozinha, Kundera  apontava os móveis, que ele mesmo tinha feito, usando a marcenaria como terapia ocupacional.

 - Já não me interessa a literatura - ironizava. - Meu negócio agora é o "bricolage".

Eu gostei muito de A Insustentável Leveza do Ser, quando li o romance pela primeira vez. A história do homem que levava a vida com leveza e da mulher que arrastava raízes pelo chão, ou de como o amor pode juntar gente tão diferente, me pareceu uma espécie de romance filosófico, que trazia o melhor de uma literatura existencialista do passado, mas sem a amargura de Camus, Sartre e Beauvoir.

O tempo passou, gostei menos do livro, cansativo na segunda vez em que o li, e achei o filme melhor que a obra literária, algo raro. Concluí que ela não era tão boa como eu acreditava, ficou datada - ou eu simplesmente fiquei mais velho.

A história de Kundera na cozinha reforçou minha impressão de que sonhamos e queremos muito escrever livros e, quando o fazemos, isso deixa de ter a antiga importância. Nesse momento, há algo na vida que desaba sobre nós, como um pesado céu.

Chamo a este efeito de "Céu de Kundera", e penso nele toda vez que me dá vontade de fazer outra coisa, qualquer coisa, como virar pescador, plantador de cebolas, estivador, ou quem sabe guia do deserto.

Mas um dia chega o descanso, e o Céu de Kundera agora é de paz.

sábado, 1 de julho de 2023

A morte de um livro

Como pessoas, os livros nascem - e também morrem, cumprido seu tempo e papel. É o caso de meu primeiro livro, Liberdade para Todos, publicado pela primeira vez pela Moderna em 1996, cuja vida chega ao fim, 27 anos depois, com mais de 200 mil exemplares vendidos ao longo do tempo.

Vai aqui seu breve obituário, cheio de alegrias. Quando escrevi essa história, como sempre, tentava ajeitar sentimentos que eram meus. Com o livro - sobre um pai, um filho e um passarinho -, não imaginei fazer tantos leitores, tocando em assuntos delicados com crianças: responsabilidade,  liberdade  e, sobretudo, como lidar com a morte.










O melhor foi na época em que ainda se enviavam cartas. Vinham quilos, de lugares tão diversos como Canoas, no Rio Grande do Sul, e Parintins, no Amazonas. Eram de professores, mães e crianças, entre 8 a 9 anos. Vinham fotos, desenhos, convites, beijos impressos, poemas, histórias, palavras carinhosas, de agradecimento,  de incentivo - um adorável turbilhão de amor.

Houve também incidentes. Certa vez, o pai de um aluno do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, tentou proibir a adoção do livro pelos professores. Alegou que trabalhava no IBAMA e achava inapropriada uma obra que falava de um passarinho preso na gaiola. A editora me ligou, perguntando que justificativa eu teria a dar a esse pai. Respondi que ele lesse do livro pelo menos o título, que já indicava do que a obra era a favor.

Esse foi, no entanto,  um prenúncio do fim. Já não há passarinhos em gaiolas, ou pelo menos não é algo próximo da realidade da maioria das crianças hoje. O livro envelheceu. E agora, depois dessa longa vida, concluímos, eu e a Editora, que seu ciclo está terminando e a atual será sua última reimpressão.

Aqui fica meu obrigado a Walcyr Carrasco, que me indicou a Maristela Petrili, e a Maristela, editora que acreditou na obra e sempre me tratou com a correção, a gentileza e a elegância que me fizeram seu admirador.

Agradeço também a todos meus milhares de pequenos leitores, hoje a maioria já adultos, que me deram a maior recompensa destinada a um autor: um lugar, por algum tempo, na sua vida.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Desencontos -2: um quarto de hotel em Paris

 A longa escadaria em espiral, até o último andar, uma só porta e o quarto. Ocupava, inteiro, um grande sótão: a cama de casal num mezanino baixo, uma cozinha com um balcão, uma sala de estar com uma escrivaninha de trabalho; à esquerda, a passagem para o segundo quarto, amplo, com uma banheira ao centro; a cama de madeira escura, diante da grande lareira de granito branco.

Teresa achou graça na porta de masmorra, baixa e pesada, que dava acesso ao banheiro, de teto inclinado pela meia água. Passeou os olhos pelos móveis antigos: o baú do tempo das diligências, o mobiliário Luis XV, a cama pesada de cabeceira alta, cenário de vidas e horas inconfessáveis.

As malas nem foram desfeitas: Teresa e Marcel mergulharam nos lençóis flutuantes, entre os travesseiros de penas, a pele morena dela na tela de branco alvíssimo, os cabelos de graúna  espalhados, ondulando sobre as dobras do algodão indiano.

O cheiro dos corpos misturados, a vontade primitiva, a matrioska dos desejos, desvelados um atrás do outro. Mesmo cansado de viagem, Marcel não dormiu: preferiu ver Teresa na penumbra, adormecida ao seu lado, enfim serena e apaziguada, joia viva sobre o colchão.

Pela janela medieval se avistava os telhados do casario, mas para eles Paris estava ali dentro, à luz de do abajur art déco: languidez e lassidão. Dormiam e acordavam enlaçados, amantes num refúgio, esconderijo de tudo: da vida lá fora, do passado, deles mesmos, da luz e da escuridão.

Tinham saído do Rio de Janeiro, sem dizer a ninguém onde iam, com quem iam, nem a razão. Eles mesmos não sabiam ao certo o que os movia, exceto que, fosse como fosse, a vida levava um para o outro. E só.

Teresa embarcou no aeroporto sem malas, livre de tudo, o avião apenas como ponte para ele, que já a esperava. O momento de um para o outro, única coisa de que precisavam, única destinação.

Deixaram para trás a vida anterior, os filhos, o medo. Não, o medo, não. Pairava a sombra do exame de Teresa, um indicador que não podia dar mais que 20, e dava 1000. Eles não sabiam o quão grave podia ser, qual era o tumor, nada, só aquele número: na volta, com mais exames, saberiam melhor. 

A dúvida pode ser o inferno da alma e eles sabiam que o passado pesava: a vida anterior os minara. A tristeza é somática, domina o ânimo, depois penetra nas células, corrói os tecidos. Contra ela o corpo sofrido se rebela, avisa, ordena a revolta.

O futuro ninguém sabia, mas eles se refugiavam na certeza dos braços um do outro, sem outros pensamentos, sem outro sentido, sem outra razão. Passavam o dia enlaçados, imersos em sussurros e planos, as coisas em comum: o amor à palavra,  a necessidade de leitura, não dos livros, mas dos sentimentos, penúria de que tinha vivido no deserto dos outros, o mundo onde você sempre serve à vaidade de alguém e sempre acaba sozinho.

As conversas sussurradas traziam o amor de volta, brigado, mordido, suado, até que tinham de trocar de cama, tão molhados ficavam os lençóis. Depois ele lavava os cabelos dela, um ritual lento, longo e solene, teatro de amor, na banheira feita de palco.

Ela secava as melenas no espelho antigo, usando ao mesmo tempo dois secadores, uma dança mágica de cabelos ao vento; ele ria e admirava a destreza, cada movimento de Teresa era graça, beleza e arte.

Saíram do quarto pela primeira vez no dia seguinte, depois das quatro da tarde, e só porque precisavam comer.

Paris no Natal estava frio, Paris chovia, e a melhor hora era voltar, subir aquela escadaria, esconder-se  no sótão, sua nova casa. Moravam agora dentro de um quarto e, naquele quarto, um dentro do outro.

No dia seguinte, fim de tarde,  breve interlúdio: atravessaram a ponte Solferino, dos cadeados, onde tanta gente deixava sua promessa de amor, e seguiram pela quai da Rive Droite. Ele a fotografava, usando a boina dele e calça xadrez - musa de uma belle époque que ele mesmo inventou. 

Passaram pelo mendigo adormecido sob a Pont du Carrousel; saíram da margem e entraram nas Tulherias, pisando o cascalho entre os esqueletos das árvores invernais. 

O sol súbito caiu sobre a água da Grand Bassin Ronde, a piscina que separa o palácio do Louvre de seu imenso jardim. Momento iluminado, ou mensagem divina, Teresa despertou de repente - que bonito, onde estamos, perguntou.

As luzes da Saint Chapelle, pausa para uma oração. A noite para sair: o restaurante japonês, invenções sobre um prato; cruzaram o canal sobre o Sena e centenas de pessoas foram se juntando a eles pelo caminho, passos ressoando na calçada, em meio ao frio da noite.

Da passarela em arco, avistavam ao longe a tenda iluminada do Cirque du Soleil, nave  esplendorosa brilhando branca na noite, ao lado do rio.

Corteo: espetáculo da vida assistindo a morte, ou da morte assistindo a vida. Algo tão igual ao momento deles, tristeza e alegria, esperança e medo, misturados em turbilhão. Era isto, a vida: uma bicicleta sobre a corda, rumando ao céu; a beleza de viver até o fim, seja quando e onde for, arriscando tudo. 

Por fim chegou a véspera do Natal, o dia receado, que ambos passariam longe das famílias: receio da opressão da saudade, de ter estragado tudo; a carga do sofrimento próprio e dos outros; o abismo entre onde estavam e o que ficou para trás. Porém, o futuro eles iam construir juntos, para viver não como outros queriam, mas como eles mesmos, do jeito que eram, em estado verdadeiro e puro e claro.

Enquanto pelo mundo crianças recebiam os presentes de Natal, famílias estalavam copos e talheres em festa, eles anestesiavam a alma na plateia da Opera de Paris. O balé Onéguine: uma tragédia de amor. 

Todo grande amor tem algo de trágico: assim era também o amor deles, grande, feito de dor por muitos lados, mas era também o que os unia. Transmutariam a tristeza em felicidade, contagiaram a todos com aquele amor, que transbordava para ser dividido, dando a todos esperança, sonho de final feliz.

No intervalo do espetáculo, uma taça de champanhe na sacada, o brinde de Natal, feito como juramento: nós dois consertaremos tudo; mesmo contra tudo, tudo podemos juntos, esta é a força maior.

Saíram caminhando abraçados pela ruas enfeitadas de luzes vermelhas; entraram no Café del' Opera, para uma taça de vinho, entre as mesas vazias da meia noite natalina. A cidade estava suspensa, mas eles sorriam, mais leves. Passara o mais difícil e eles se deixavam embalar pelo mel de um dia inteiro de cumplicidades.

Breves impressões da vida lá fora: O Pensador, no Museu Rodin ("já vi isto aqui", disse Teresa); madeleines num café acolhedor; o silêncio sagrado do velho templo de Saint-Germain-des-Prés. Por fim subir de novo a escada, a sensação de voltar ao abrigo do quarto, a eles mesmos, sua primeira casa, das muitas que teriam depois. 

O frio ficava do lado de fora, de fora ficava até mesmo o medo, com o passado de desilusão. Eles não precisavam de mais nada, Paris era ali, mas seria em qualquer lugar: viveriam, sobreviveriam, Marcel salvaria Teresa do câncer, da tristeza, do abandono, que também era seu. 

Teriam a felicidade mais pura, reunindo novamente a todos, para outros natais, contagiados por aquela Paris que eles levariam para sempre, onde fossem, transbordantes de amor.

*

Marcel olha as fotos antigas, abre o navegador e pesquisa: Hotel del' Université. 

Há um passeio virtual; ele sobe a escadaria, usando o dedo indicador sobre o laptop, e chega ao último andar.

O antigo sótão, onde ficava o quarto Saint Germain, foi dividido em quartos diferentes, com paredes brancas e mobiliário contemporâneo. Ainda há janelas para o casario de Paris, mas a grande lareira de mármore, a banheira, a história, tudo desapareceu.

O texto informa que o hotel passou por uma renovação. Remexendo lembranças, ele se dá conta de ter estado ali uma vez anterior, muito tempo antes daquela semana de Natal em Paris.

Tinha pouco mais de vinte anos quando, passando ao acaso na rua, entrou no hotel, para conhecer. Queria ser escritor e soube que Hemingway, quando estava na cidade, se hospedava ali. Subiu ao quarto do último andar, levado por um camareiro, com a chave na mão, para ver onde ele se hospedara. 

Olhou o grande sótão, com jeito de casa no céu; parou diante da janela, e pensou: um dia vou publicar livros, terei dinheiro e trarei para cá alguém especial, para a minha melhor história de amor.

Depois, esqueceu tudo, ou quase: escolheu aquele hotel por lembrar vagamente que um dia quisera hospedar-se ali. Uma mensagem no tempo, para o dia em que, amadurecido, cumprisse a antiga promessa, sem saber.

Marcel faz uma busca pelo site. Não há mais qualquer referência  a Hemingway. Teresa vive, mas não está com ele. Depois de tantas casas, nas buscas de quem nunca achou algo o bastante, nunca parou: espelho na impermanência, na inquietação. Os carentes de um amor que não existe, ou sempre muda de lugar: destruidores de corações.

Nao a reconheceria se a visse na rua: aprendera que se pode sentir luto por alguem ainda vivo, mas que nao erea quem se pensava, como se tivesse morrido, ou ainda pior, nunca existido. Já não existe o quarto, não mais existe Teresa de Marcel, mas ele é o mesmo. Não só o homem daquele Natal em Paris. É o rapaz magro e imberbe que andava no inverno parisiense de capa de chuva, sem dinheiro para comprar um casaco de verdade, passando fome e frio, sonhando com a vida de Hemingway.  

Sim, isso ficou: sonho. A entrega sem receio, a vontade de amar, de sempre experimentar a vida intensamente, e escrever. 

Ainda.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Desencontos - 1: "Radiografia de um instante"

Eram três horas da tarde e Tirso estranhava o silêncio, parecia que ninguém pegava o metrô em Washington, a plataforma estava deserta, tão deserta que ao caminhar seus passos ecoavam pela estação.

Encostou-se na parede, à espera do trem. Gostava, queria, precisava daquela solidão. Meia hora antes, estava com a mulher, Silvia, em um apartamento de classe média na capital americana, aquilo que ela achava perfeito. Sandra, melhor amiga de sua mulher, casada com George, militar americano, os recebera e fizera um belo almoço; os dois maridos, que se viam pela primeira vez, esforçavam-se para ser simpáticos um com o outro.

Elas se conheciam desde a adolescência, eles há pouco minutos; Sandra se esmerou na comida, Mark em abrir uma garrafa de vinho premiada; contou-lhes do barco que tinha ancorado no Potomac, na primavera ele o tirava para passear, gostavam de velejar no rio, especialmente aos domingos.

Esforçava-se em querer mostrar que os americanos não eram tão aborrecidos para brasileiros como se pensava: a vida ali era boa, eles eram felizes, a melhor amiga de Silvia estava feliz e satisfeita, mesmo longe da família, do país, do feijão com arroz.

As duas mulheres tagarelavam, tirando o atraso da conversa naquele reencontro, proporcionado por uma esticada de Nova York a Washington que Tirso concordara em fazer só para aquilo.

Faziam planos para mais tarde. Tirso e Silvia estavam hospedados em um hotel em Cristal City, com seus prédios envidraçados e aquelas galerias internas que permitiam caminhar longas distâncias fugindo do frio congelante do inverno na rua. George e Sandra poderiam mais tarde buscá-los de carro. Iriam a um lugar para dançar, havia um que ficava no edifício de um antigo banco, a pista era dentro de um cofre, com aquelas portas de chumbo, uma grande roda girando sobre pesados gonzos.

Estava tudo perfeito, a comida, o vinho, as promessas de diversão, mas Tirso olhava para George já sem escutar, distante e imerso, peixe num aquário. Disse que achava melhor deixarem as mulheres conversar, matar a saudade, colocar a conversa em dia; não queria atrapalhar, poderia aproveitar a hora. Tinha curiosidade de visitar a biblioteca do Congresso, algo que Silvia não gostaria de fazer; aproveitaria que ela estava em boa companhia para dar uma volta e conhecer o Capitólio.

George também achou boa ideia; sugeriu que visitassem outro dia, com as  mulheres, o Smithsonian Museum, o Lincoln Memorial e o que mais quisessem.

Silvia adorou tudo, na verdade não se importava, queria apenas estar com a amiga, acenou com a cabeça e assim ele saiu, com breves despedidas. George disse que na esquina havia uma estação do metrô, por ele chegaria ao Capitólio, era simples e rápido.

Quando a porta do lar americano bateu às suas costas, Tirso sentiu-se repentinamente livre,  ou aliviado: ao descer o elevador, passar o hall de entrada e ver-se na calçada ensolarada, era como se tomasse sol pela primeira vez na vida.

Não foi difícil achar a estação, comprou o bilhete, desceu a escadaria até a plataforma: vazia, aquele silêncio, tudo confortador, como se tivesse escapado de uma guerra para um esconderijo seguro.

Não sabia direito o que havia de errado com o que deixara para trás. Talvez a resposta estivesse à frente: a biblioteca, os livros, o mundo interior onde ele navegava, e que Sílvia via com certo desdém. "Você pensa demais", ela dizia.

Agora ela ficava para trás e ele ia em direção a uma biblioteca, uma das maiores bibliotecas do mundo, no Congresso americano, sede do Iluminismo ocidental, onde a república tinha sido proclamada antes mesmo da revolução francesa, berço das ideias e dos ideais contemporâneos de liberdade, igualdade e tolerância.

Havia um certo efeito analgésico naquele túnel deserto, uma estação em silêncio, toda para ele; nesse instante, ouviu o barulho do trem chegando, a luz se insinuando na penumbra, até que ele passou, aquele borrão horizontal, na plataforma contrária ao sentido em que ele ia; viu a composição brecar aos poucos, com um guincho estertorante, até a imobilidade total.

Assim como a plataforma, o trem estava vazio: era tarde, ou era um momento mágico, Tirso não sabia, mas olhava os vagões desertos como num sonho. Foi então que viu a mulher, sentada à janela, sozinha no vagão inteiro, no trem inteiro. Olhava para baixo, debruçada sobre um livro. Um livro.

Por um instante ele pensou que poderia estar ali a mulher da sua vida, e o que aconteceria se ela olhasse para ele, os dois sozinhos naquela estação. Olhava para a mulher distraída, com o livro na mão, só os dois naquela estação, e não precisava saber mais nada sobre ela.

Lembrou-se de Silvia; pedira para a mulher ler o livro que tentava escrever, mas ela, cansada, deixara o calhamaço torturado de folhas na cabeceira, dia após dia; qualquer hora veria aquilo, daria opinião. Tirso passou a ter aquela vontade, então, de ir a algum lugar. Não era Washington, não era Nova York, era um lugar de encontro com ele mesmo, onde havia estantes, livros, e uma mulher, com um livro na mão.

Na plataforma oposta, as portas da composição se abriram, para ninguém; houve um instante de expectativa, Tirso não sabia por que, já que ninguém ia entrar. A mulher com o livro continuava a leitura, imóvel; pensou se ela sabia que ele estava ali, pressentia que ele olhava para ela. Imaginava agora outra vida, que não era a dele, ou melhor, era a dele, mas uma vida que não tinha com ninguém. As portas do trem se fecharam; o cheiro de metal queimado passou pelas narinas de Tirso, quando a máquina acordou, as engrenagens lentamente se moveram, e a composição começou a andar.

Nesse momento, a mulher do livro levantou a cabeça. Era uma bela mulher. Viu Tirso encostado na parede, olhando o trem ir embora, distanciando-se em velocidade cada vez maior. Apenas um momento, e, enquanto se afastava, com o livro aberto nas mãos, enquanto o trem a levava para nunca mais, pela janela ela sorriu.

"Menino": um trecho de A Quinta Estação

"Desceram em Klosters; ali esquiava a família real da Inglaterra, as ruas estavam brancas como num filme de Natal. Uma súbita nevasca escureceu o tempo; Vitor sentiu o frio cortante secar-lhe a boca, escorreu o nariz. Andaram abraçados pela rua; Vitor tirou as luvas para pôr as mãos na neve pela primeira vez na vida. Andaram até que o frio os congelou, suas roupas não eram suficientes, no Brasil tinham comprado aquelas capas impermeáveis para chuva, ali não serviam sequer para os mendigos, correram de volta para a estação, chegaram ofegantes, esfregando as mãos, o rosto, como se estivessem fugindo de uma avalanche, mas felizes como crianças que fazem seu primeiro boneco de neve.

Tomaram o trem seguinte; passaram por Saint Moritz, contornaram o imponente Pitz Bernina, com sua ponta escarpada que feria o céu. Adriana passava os dedos pelos cabelos de Vitor, sob o boné em cujo forro escrevera “Juízo!!!”, assim, com uma tríplice exclamação. Tinha algo de maternal, ele se acostumara a ouvir Adriana chamá-lo de “menino” quando estavam na cama, depois de fazer amor, ele fazia uma segunda universidade, ela lhe ensinava coisas da vida, mostrava como lidar com os outros, em especial nos meandros do mundo do trabalho, tirava Vitor do mundo da inocência do qual viera, um pouco para abreviar-lhe dissabores do aprendizado por conta própria, muito para diminuir a distância que havia entre os dois. Tinha prazer em lhe passar sua experiência, como numa transfusão de sangue, queria fazê-lo mais velho rapidamente, afinal ele compreendeu a razão para Adriana querer vê-lo com rugas, nesse tempo eles seriam menos desiguais, ficariam mais próximos, seria mais possível aquele amor quando a realidade sobreviesse à paixão que os levava pelos desfiladeiros alpinos."

Na Amazon: A Quinta Estação

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Amis e o Valhala dos escritores

Eu tinha 16 anos de idade e viajava de mochila nas costas ao lado de meu pai, Alípio, numa jornada até Machu Picchu, no Peru.  

Estávamos parados, conversando, na borda da cidade perdida, de onde se avistava majestosamente o Huayna Picchu, batido pelo vento  que dá uma misteriosa atmosfera às construções de pedra nos píncaros da selva. Então, um sujeito ao lado, com chapéu de Indiana Jones, nos abordou, em inglês.

- Que língua vocês estão falando? - perguntou.

Explicamos que era português.

- Que língua forte -, disse ele.

- O que você está fazendo aqui? - perguntei, observando que se encontrava sozinho.

- Estou trabalhando - disse ele, para minha surpresa.

- E o que você faz?

- Sou escritor.

Fiquei, claro, imediatamente entusiasmado.

- E que livros você escreveu? - perguntei.

- Ainda nenhum - disse ele. - Estou fazendo o primeiro.

Murchei de desapontamento. Achei estranho alguém se dizer "escritor", sem ter um livro publicado, embora ele parecesse bastante convencido.

- E o que você está escrevendo? Algum romance de aventura, ambientado na selva peruana?

- Não - disse ele - Estou escrevendo sobre Londres.

Eu e meu pai nos entreolhamos: devia ser maluco. Conversamos mais um pouco e nos despedimos, dizendo , meio incrédulos, que aguardaríamos notícias da publicação da obra.

Passaram-se alguns anos e eu já tinha quase esquecido daquilo. Um dia, lendo o jornal (ainda impresso), dou com o lançamento de Campos de Londres, de Martin Amis. Olhei a foto do autor. Espanto: eu estava certo de que era o escritor da selva peruana. 

Mostrei-o a meu pai, eufórico com o achado.

- Será? - disse ele, ainda duvidando.

Era ele, sem o chapéu, claro. E um romance sobre... Londres? Só podia ser.

Passaram-se mais trinta anos. Martim Amis morreu no último dia 19 de maio, vitimado por um câncer esofágico. Para mim, porém, mais do que os livros, ficou uma estranha influência daquele episódio.

Primeiro, ele me ensinou que o escritor não é o que publica livros, mas aquele que acredita que está escrevendo e faz disso sua vida, não importa o que os outros pensem - ainda que jamais venha a publicar um único livro. É um estilo e um propósito de vida, não um resultado.

Ser um escritor não se trata de ter um editor, de vender livros ou ser conhecido. É uma convicção. Escritores não desistem e continuam sendo escritores, não importa onde estejam, ou o que tenham publicado.

Essa ideia me ajudou a escrever o meu primeiro romance, publicado dez anos depois de Campos de Londres. Naquela época, me parecia algo impossível. Mas não desisti.

Amis fez uma carreira de sucesso, com outros livros importantes, muito embora o único que realmente me interessou tenha sido  aquele romance sobre uma das mais cosmopolitas cidades do planeta, para o qual ele buscava inspiração numa aventura muito longe dali.

Tenho por ele um certo sentido de agradecimento, por entender daquela história que escrever não depende de mais nada nem ninguém, a não ser de nós mesmos.

Ao rapaz de chapéu naquele momento improvável, devo muito: mudou minha vida. Para mim, ele está vivo, talvez escrevendo em algum lugar, no Valhala da literatura, ao vento das paragens aventurescas onde nós, escritores, devemos ter nosso lugar, não sei se no céu ou no inferno.