segunda-feira, 12 de agosto de 2024

O jornalismo e o vendedor de bombons


Dia dos pais, e estou num almoço com meu filho, 17 anos, meio incerto da profissão a escolher no vestibular deste final de ano, e meu pai, de 89, um bem sucedido aposentado.

- Sabe como eu escolhi minha profissão? - diz o avô ao neto. - Graças ao dono da bomboniere.

Conta a história meu pai, Alípio. Quando ele tinha pouco mais que a idade do meu filho, foi trabalhar no cinema do tio Amaral, que era padre e vigário da Igreja de Nossa Senhora das Dores, na Casa Verde. 

O cinema de bairro servia para trazer um dinheirinho a mais ao caixa da paróquia. Nas famílias tradicionais de origem mineira, geralmente o filho mais inepto para os negócios virava padre. No caso dos Amaral, família de minha avó, por algum erro vocacional, o tio padre era um grande negociante, que tinha vários empreendimentos, incluindo emprestar dinheiro a juros usurários. E o cinema.

Como alguém de confiança da família, papai virou o gerente. Cuidava do caixa e fazia a bilhetagem, conferida pelo fiscal da prefeitura, disfarçando algumas malandragens - por exemplo, deixava entrar de graça para ver os filmes uma moça na qual estava interessado, chamada Marlene, que depois seria sua mulher e a minha mãe. Quando passavam os filmes, ficava longo tempo ali, sem fazer nada. Batia papo com o vendedor de bombons, que alugava o balcão na sala de espera do cinema.

O homem da bomboniere tinha um segundo emprego: vendia anúncios para A Hora, um jornal sensacionalista, que dava sobretudo notícias policiais. Meu pai, que fazia Odontologia na Faculdade de Medicina da USP, para satisfazer minha avó, que queria um emprego seguro e tranquilo para o filho, achava maçante passar o resto da vida vendo pessoas de boca aberta numa cadeira odontológica.

- Será que você não arranja um emprego lá para mim? - perguntou papai.

- E o que você sabe de jornalismo?

- Eu sei ler - disse meu pai, lembrando que corria antes de todo mundo, quando menino, para pegar o jornal que o entregador deixava na casa do pai dele, meu avô.

O vendedor de bombons pensou, e disse:

- É o bastante.

Assim, meu pai conseguiu seu primeiro emprego, como repórter de A Hora. Diz que não gostava de cobrir a área criminal, assunto pesado, penoso, mas adorou o jornalismo. Praticou-o por setenta anos - e deu a meu filho seu único conselho para encontrar uma profissão:

- Experimente!


sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Jardim japonês

JARDIM JAPONÊS

 

 No castelo de Niho-jo o grande shogun reina:

entre a política e a guerra há um filho que nasce

cuidado a cada dia como o jardim

onde ele respira a beleza pura da vida

entre a política e a guerra


O shogun dorme ao lado da katana luzidia

porque quem repousa não é o homem

é o guerreiro


A lâmina reflete quem é

brilha no escuro

vela seu sono à noite


O alvorecer levanta da sombra dos muros ajardinados

o shogun se veste como um samurai

é um samurai


Somente o semblante altaneiro

diz que é o shogun:

senhor dos campos de arroz

na planície banhada pela água pelos rios

quem vêm das montanhas verdejantes

com suas responsabilidades

e sua coragem


O coração está abrigado

no relicário que é o palácio de madeira encaixilhada

paredes decoradas de pinturas em laca

cercada pelas muralhas de pedra perfeitamente engastada

e o fosso de água limpa e fresca ao redor da murada exterior


Pesa saber que dele tudo depende

mas há também leveza na brisa da manhã:

dá valor a cada dia

às coisas grandes e pequenas

(e então ele ouve as mulheres cantando ao longe

suave recompensa pelo seu trabalho duro)


Todos os entes têm dentro de si o kami:

o espírito divino está com ele quando caminha em silêncio

acompanhado dos kamis do sol, da luz, das árvores

e do lago de pedras pontiagudas e rudes ferindo agrestes

a harmonia do plácido cenário

onde as folhas  das árvores sustentam o céu


Para que a guerra senão o inevitável equilíbrio

a harmonia

a paz como deveria ser


Para que o poder

senão para dividir

alimentar

cuidar

apenas viver


Para que a riqueza

senão para a saciedade

e a garantia do dia seguinte


Para que o sonho

senão dar mais valor

ao que de outra forma

se pode perder

desperdiçar

esquecer


Para que querer

o que é possível

se o impossível está diante de nós

e tudo temos em nós

para alcançar o horizonte


Magokoru: coração sincero

para o shogun não há medo

e não existe o amanhã

toda o esforço humano é nada diante da simplicidade


Para o shogun

a morte é continuidade da vida

e a única obra verdadeira

é o eterno 

ser




sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Um café em Akihabara

Uma taça de chá gelado, três torradas, o chapéu panamá repousado no balcão de cedro. A atendente, de máscara contra a Covid-19, serve mais chá, este quente, num enorme bule, do outro lado do balcão. A trinta passos do Otsu Café, está desde 1616 o Kanda Myojin, templo xintoísta, conhecido pela pintura vermelha com ornamentos dourados, e por ter sido o preferido na cidade da Tóquio pelo shogun Tokugawa, conquistador de Osaka e articulador do império. Razão pela qual se tornou o templo favorito dos samurais - e, como guerreiro, o meu também.

Deixei ali os meus votos, entre as centenas de tabuinhas penduradas ao sol escorchante do verão japonês, para serem lidas pelos monges, que assim fazem os pedidos serem realizados. Agora, faço a parada no Café, na sua quase penumbra, tão acolhedor como um outro santuário. Há poucos e silenciosos clientes; a prateleira atrás do balcão é decorada com chávenas pintadas com motivos japonesas, e o frescor é um lenimento para o calor mórbido que faz lá fora, ou o esforço daqueles que aqui vêm descansar suas armas.

É um paradoxo essa paz em uma cidade com 37 milhões de habitantes, cujas esquinas onde os luminosos em profusão explodem em cores; os trens correm para todos os lados, cruzando uns por cima dos outros nas estações, como o sangue mecânico de um gigantesco organismo urbano. E no entanto os japoneses deixam suas bicicletas estacionadas na rua e cultivam aqueles espaços de tranquilidade, contemplação, humanidade.

Agradecem a tudo e são ritualmente reverentes em cada gesto, a cada momento, em respeito a todos os entes, que são divindades, ou parte da grande divindade da natureza, presente na figura do outro que está diante de nós.

Essa educação se espalha, cria um círculo virtuoso, faz acreditar de novo no bem, em meio a um mundo acidulado pela cizânia. A paz venceu o povo da guerra e os samurais contemporâneos, ou os ronins como eu, guerreiros sem um senhor, que agora também se curvam ao passar pelo torii, o portal do santuário. Ela está nas crianças, graciosas, polidas, educadas, nos seus uniformes impecavelmente arrumados, sinal da importância que se dá à educação, fundamento de tudo.

O uniforme é um sinal da importância do que se faz, e de respeito para quem se faz. Os motoristas de ônibus usam luvas brancas, como se dirigissem uma limusine: e a cada passageiro que passa o cartão para descer, agradecem. Não importa quantos são os passageiros, ou quantas vezes o motorista, ou a motorista, faça isso todo dia, por dias a fio: cada um, ao sair, ouve, arigatô gozaimasu, arigatô gozaimasu.

Para o oriental, como para os indígenas brasileiros, cada ser é um espírito divino, e como tal, deve ser ouvido, respeitado, reverenciado. O gesto simples de entregar um cartão de crédito é feito com as duas mãos, como uma cerimônia. Cada palavra, cada gesto tem valor, e o ritual é a forma pela qual a vida é valorizada.

"Pelo seu trabalho duro", eu havia visto os japoneses dizerem, ao servir a alguém a comida no restaurante, no filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders. Em Tóquio, os banheiros públicos que o personagem limpa no filme existem, estão em toda parte, são impecáveis, cuidados por gente igualmente diligente. O banheiro é gratuito, assim como a água, na entrada dos templos, onde se deve enxaguar a mão e a boca, antes da prece, e nos bares e restaurantes. Não, por água não se cobra, a um transeunte sedento.

Tomo um pouco de chá, com essa sensação de gratidão pelas pequenas coisas: por beber no calor, por estar aqui, neste ambiente de comunhão com os seres da vida, por fazer parte deste grande concerto, e por trazer comigo meu filho, que é a melhor parte de mim. Para ele e outros são os meus pedidos, neste círculo virtuoso onde a humanidade se une à natureza, contra as dificuldades, os medos, as impossibilidades.

No templo, as deidades cujo espírito está guardado no escrínio do altar, desde quando reverenciadas pelo shogun Tokugawa, são fonte de uma força invísivel. A água da bica na entrada sai da boca de um dragão de metal. Duas moedas caem tilintando pela grade de madeira diante do altar, onde todos se despedem ao fim da prece batendo palmas duas vezes, e com uma leve inclinação. Há na humildade um misterioso poder: abrindo mão da nossa importância, sendo apenas gratos, podemos tudo.

Há nessa humildade, tanto quanto força, uma fragilidade. Talvez o rigor de uma sociedade que valoriza tanto o outro leve também à dificuldade de cruzar a ponte que separa as pessoas. Imagino que seja isso a fazer de muitos japoneses seres retraídos, carentes, de alguma forma amedrontados. Sobretudo o homem, diante da figura da mulher.

Suponho que seja essa a atração que há nas gueixas, que vi andando pelo Guion em Kyoto, ou sua versão mais barata e pop, nos maid cafés. Neles, os japoneses pagam para conversar com garçonetes, vestidas de colegiais como nos animes - os desenhos japoneses, baseados em graphic novels, uma indústria que o Japão internacionalizou. 

A algumas quadras de distância, aqui em Akihabara, elas estão nas calçadas, chamando os clientes para dentro, com cartazes de papelão na mão, sobre botas com salto plataforma, maria-chiquinha, minissaia, coloridas à noite pela luz dos neons em profusão. Desci uma escadaria até um desses bares, no subsolo: um recinto pequeno, e, para quem não está acostumado, um pouco sinistro, ou constrangedor.

"Thales San", escreve uma delas, depois de perguntar meu nome, para abrir minha conta. Há um grupo de rapazes numa mesa e dois japoneses sozinhos, em duas outras. Há pouca bebida, quase nenhuma comida, e não há sugestão de sexo, exceto pelo uniforme fetichista das recepcionistas.

Há somente a garantia de um bom tratamento, que oferece a possibilidade de simplesmente conversar com uma mulher, transpor aquele abismo invisível, com a certeza de ser bem tratado, ainda que por algum dinheiro. No Japão,  conversar com alguém pode ser mais importante ou excitante que o sexo. Na cidade de 37 milhões de pessoas, onde tudo funciona tão bem, os dois maiores problemas são o alcoolismo e a solidão. 

Essa timidez pessoal nem parece vir do Japão que não conhece limites. Enquanto eu pago a conta, e saio depois de tomar uma Coca-Cola, o Shinkansen, trem bala japonês, viaja a 350 quilômetros por hora, cruzando como raio as estações onde não faz parada. Fábricas com operários e robôs funcionam 24 horas por dia para vender produtos no mundo inteiro. E a baía de Tóquio - cenário de onde saíam aqueles monstros marinhos da minha infância e que ainda povoam a minha imaginação - dorme silenciosa e negra sob pontes luminosas monumentais.

O café em Akihabara, ao lado do templo dos guerreiros, é alguma saúde em meio a todas as loucuras. Reconforta, protege, acalma. Há no rito do chá algum mistério e arte, escritos no ar, em fina espiral de fumaça, com a desenhada caligrafia japonesa, que inspira os telhados das casas e o desenho dos templos. Ou é por eles inspirada - a arquitetura da palavra.

O silêncio é amigo, uma trégua, uma solidariedade, e diante das xícaras imóveis, enfileiradas nas prateleiras, que fazem lembrar minha avó, eu me sinto, do outro lado do mundo, estranhamente em casa.



terça-feira, 16 de julho de 2024

O culto à vida e o desenvolvimento


Em 1920, o imperador Meiji cedeu ao fato de que era preciso modernizar o Japão. Como um rito de passagem, mandou construir um templo xintoísta no meio de uma floresta de 70 hectares dentro de Tóquio: o Meiji Jingu, onde hoje repousa seu espírito,  com o da imperatriz Shoken.

Na entrada, após os Torii (portais), duas estranhas galerias ladeiam a alameda que leva ao templo. Como marco da mudança, do lado direito, estão barris de saquê, que o Japão exportava; do lado esquerdo, barris de carvalho com vinhos da Borgonha, trazidos da França. Um espécie de símbolo da abertura ao comércio internacional, celebrado com a bebida.

O shintoísmo é uma religião antiga, de origem incerta, sem livro, profeta, batismo, conversão. Baseia-se no princípio de que todos os seres são espíritos a serem respeitados, uma forma de harmonia com toda a natureza. Essa ideia fundamental está por trás de toda a cultura japonesa.

Meu filho, que sempre foi sábio desde pequeno, definiu o xintoísmo como "um culto à vida". E é isso mesmo: enquanto outras religiões buscam a conexão com o além, o mistério,  o insondável, o shintoismo venera a natureza, isto é, o que existe, a vida.

O templo do imperador revela a conexão entre essa filosofia e a forma encontrada para que essa sociedade tradicionalista e ritualista se adaptasse e permitisse o desenvolvimento. Respeitar a tradição usando-a em favor, e não contra o progresso, é a verdadeira semente do Japão contemporâneo. Um país onde há muito trabalho duro, mas que ocupou um lugar importante na economia mundial, realizando o projeto do imperador cujo legado aqui se encontra vivo, embalado por uma paz sobre a qual se caminha de coração tranquilo.











segunda-feira, 15 de julho de 2024

A volta aonde nunca fui

Eu nasci no bairro da Liberdade, como bem sabe muita gente, ou quem leu Além da Memória,  meu poema sobre a primeira infância, esse período mágico da vida da gente. Meus primeiros grandes amigos eram descendentes de japoneses. Meu herói de infância foi o Nacional Kid. Sou faixa roxa do judô. Cresci e vivi imerso no imaginário japonês,  com seus desenhos, produtos e, sobretudo, o que me transmitiu a amizade com muitos japoneses e seus descendentes no Brasil.

Por isso, para mim é também um tanto mágico conhecer o Japão. Sempre me aproximei dos japoneses por algo que para mim é uma identidade: a gentileza, a polidez, o recolhimento, a contemplação,  o respeito pelos outros e pela natureza, o perfeccionismo nos mínimos detalhes - da maneira como se corta o peixe a como se faz um carro.

Essa cultura, como conjunto, e cada um de seus elementos, fizeram um país ir muito além do país. Ela é carregada por seus produtos, sua comida, sua literatura, seu cinema e cada um de seus filhos. Como Portugal, o Japão é um exemplo de como a cultura faz uma nação ser muito maior do que aquilo que cabe no seu território. É tão forte, que prova como um povo com um estilo de vida e uma tradição milenares pode ser capaz de se adaptar a tudo - à guerra,  à tecnologia, enfim, ao tempo - e preservar e projetar sua essência, onde está o seu melhor.

É isso o que eu penso, olhando o motorista que conduz o trem em Tóquio. Um desses homens simples, mas que para mim eram heróis, nos meus tempos de menino na Liberdade, quando olhava os lixeiros que passavam na rua, viajando pendurados no caminhão, e sonhava um dia ser como eles.  Sigo no trem, levado por esta felicidade infantil, que divido com minhas eternas companhias, dizendo,  à vida: arigato gozaimasu!

quinta-feira, 11 de julho de 2024

O deserto do futuro

Burj Khalifa, mais alto prédio do mundo

Mais que escala para o outro lado do mundo, Dubai foi planejada para ser uma bem acabada amostra do futuro de todo o planeta, tecnologicamente desenvolvida para a vida humana habitar um ecossistema desertificado. Dentro do vidro e do aço refrigerados, circula gente de toda parte, carregando culturas diferentes, num ambiente em todos os sentidos controlado.

Para mim, que prefiro preservar a natureza e a democracia, é interessante ver, mas difícil de aceitar. Dentro do Museu do Futuro, engenhoso anel arquitetônico com pinceladas da cultura árabe, essa visão se expressa na construção de uma estação espacial para produzir energia solar, abastecendo um país onde se abriga uma "biblioteca do DNA" dos seres vivos e o laboratório de "cura da Terra". Serviria, entre outras coisas, para o repovoamento ou reconstrução do ecossistema da floresta tropical, após sua destruição. Nesse cenário,  desenvolvem-se novas espécies, capazes por exemplo de se regenerar mais facilmente após as queimadas.

É um cenário de pesadelo, não apenas ambiental. Na Dubai de hoje, há paradisíacas ilhas artificiais e edifícios monumentais, por onde se imagina que um dia passarão carros voadores, mas é gente de carne e osso que lava os corredores dos hotéis, usando um tradicionalíssimo esfregão. Do milhão de pessoas residentes de forma permanente, 900 mil são imigrantes paquistaneses, que fazem todas as tarefas indesejadas pelos ricos e para os ricos. A fonte dançante do Dubai Mall baila com a voz de Edith Piaf, mas só evoca um tempo vivo e vibrante: ali, a França está mais viva na loja Louis Vuitton.

A riqueza e os privilégios são garantidos por uma sociedade bastante restritiva que, desconhecendo a democracia, parece dispensar  a liberdade e aceita viver sob um governo que dirige o país como ele é: ali, o Estado é uma propriedade e um empreendimento privados, onde a lei e os costumes estabelecidos garantem o lugar de cada casta.

No metrô, mulheres e crianças vão em vagões exclusivos, no final da composição, uma espécie de apartheid resultante da influência religiosa no Estado. Meu filho diz que é preciso entender a cultura e isso pode mostrar "gentileza". Ele tem, felizmente, uma alma gentil -  e procura ver as coisas pelo seu ângulo melhor. Eu estou mais velho e aprendi a ver o ruim mesmo no bom.

As mulheres de burca podem gostar do seu lugar e de ir no vagão exclusivo. Mas eu penso que o direito de usar burca só é bom quando não é coercitivo, socialmente, assim como a gentileza só é realmente gentileza quando é  exercida num ambiente de igualdade.


Você tem direito a um lugar, onde todos podem estar, e então o cede em favor de alguém, ou recebe esse favor de alguém. Só há virtude quando você cede um direito que é seu, e não quando o tomam de você e fazem generosidade em seu nome. Essa generosidade. Para mim, é apenas discriminação.

Em Dubai, todos são bem vindos, no ecumenismo magnético do dinheiro, mas está clara a preferência estatal. Todos os estalecimentos públicos, como o Dubai Mall, considerado o maior shopping do mundo, têm salas para o culto muçulmano ao lado dos banheiros, numa aproximação entre diferentes necessidades diárias.

Embora admirável, como empreendimento humano em local inóspito,  a cidade é mais ou menos como viver em Marte, que um dia já foi também mais parecido com a Terra. Dado isto, os antigos povos do deserto, que agora andam de kandura de seda entre Dolce & Gabanna e a Montblanc, e com o  declínio do petróleo agora investem em turismo e futebol, talvez sejam de fato os mais preparados e interessados nesse futuro artificialmente construído, com suas tendas de vidro no areal.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Borges e o paradoxo do amor perfeito

O argentino naturalizado canadense Alberto Mangel tinha 16 anos de idade quando conheceu, na sua Buenos Aires natal, o escritor Jorge Luis Borges. Na época, Borges já era cego: ia acompanhado de sua mãe, então com 90 anos, a uma livraria onde Alberto trabalhava, depois de sair do colégio.

A mãe de Borges lia para o filho. Quando ela se cansava, precisava que alguém mais o fizesse: podiam ser jornalistas, visitantes ou qualquer pessoa que encontrasse pela frente. Assim, Alberto passou a frequentar sua casa, à noite. Na época, Borges procurava voltar à prosa, que abandonara por julgá-la menos praticável na cegueira. Interessava-se pelos grandes épicos. Foi assim que Alberto leu para ele Henry James, Stevenson e Chersterton.

Às vezes, Borges comentava a leitura: concentrava-se em estudar a narrativa, seu ritmo, a maneira como aqueles autores tinham feito suas histórias funcionarem. Buscava o segredo da sua eternidade.

Borges morreu aos 86 anos em 1986. Telefonei para  Mangel, que morava numa vila com apenas seis casas, nas proximidades de Poitiers, na França, onde encontrou abrigo para sua biblioteca de 35 mil volumes, labirinto de conhecimento digno de um conto borgiano. Intelectual no sentido puro da palavra, autor de romances e ensaios que versavam sobre pintura, literatura e sua vida – incluindo seu tempo ao lado de Borges.

Comentei sobre uma passagem de sua obra então recém publicada no Brasil, Os Livros e os Dias, uma espécie de diário em que reúne anotações sobre seu dia a dia e romances clássicos enquanto os vai lendo. Em “A Ilha do Dr. Moreau”, rumo a Londres a bordo do trem Eurostar, Alberto prestava atenção em uma conversa inaudível entre duas senhoritas, até pescar uma única e misteriosa frase: “Ele se enrolou até se tornar uma pequena bola e morreu”. Jamais soube o que seria “ele”, ou porque “ele morreu”: peças tiradas ao acaso de um quebra-cabeça.

- Bem poderia ser um conto de Borges, não? – digo eu.

- Bem – disse ele – De certa forma, Borges está em todo lugar.

O tempo passado desde a morte de Borges mostra cada vez mais sua influência vital na literatura contemporânea – e sobre nós, mesmo de maneira inconsciente. “Ele é a figura-chave da literatura no Século XX, mais do que Kafka, Joyce ou Beckett”, me disse Alberto. 

De certa forma, eu sou a prova do que ele diz. Depois de Borges, passamos a vê-lo em todo lugar, razão pela qual ele mesmo dizia que podemos descobrir a influência literária de um autor não só em seus sucessores, como também nos seus antecessores. “Pode-se ver Borges em Machado de Assis, em Stevenson, em Cervantes”, disse Mangel.

Por trás desse mistério está a habilidade de Borges de subverter o tempo, ou conceitos, ou a maneira como passamos a ver a literatura depois dele. “Borges mostrou que não importa como o autor quer parecer a seus leitores, mas como o leitor o vê”, acrescentou Alberto. “Ele mudou a maneira como usamos os livros. Se você vê algo em um romance, ele passa a ser aquilo que você vê.”

Eu vejo Borges em Cortázar, especialmente em um conto de “Os gatos”, no qual ele narra, com minudências de um técnico, a descoberta de uma população que vive nos subterrâneos do metrô de Buenos Aires, sem nunca emergir.

Vejo a enigmática biblioteca borgiana no seu congênere que arde em chamas no best seller O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Vejo Borges ainda no cotidiano quase irreal de Robinson Crusoe, o clássico de Daniel Defoe. 

Vejo Borges em mim mesmo, sobretudo nos meus primeiros romances. Vejo Borges em toda parte, embora ele ainda permaneça um escritor pouco conhecido, influente mas não popular. Talvez por ser leitura difícil, que obriga a gente a pensar.

Ele nunca foi nem será um best seller como Gabriel Garcia Márquez, mas seu papel é muito importante para a literatura mundial. “Borges é menos lido porque exige um esforço intelectual maior”, disse Alberto. “Isso faz uma diferença grande sobretudo nos Estados Unidos, onde o mercado se voltou para a literatura de consumo fácil, criando uma sociedade estúpida.”

Diferente de Garcia Marquez, cujo “realismo fantástico” é transformar a realidade em algo que parece inventado, a marca de Borges é fazer o contrário: fazer o inventado parecer real, por meio de uma narrativa tão minuciosa e precisa que transforma o impossível em verdade - vertendo-a em uma espécie de incomprovável erudição.

Ou, pensando de outro jeito, Borges mostra a realidade de ângulos tão novos e inesperados que ela se confunde com a fantasia, até um ponto em que não se sabe mais qual a diferença entre uma e outra. Assim, por exemplo,  ganha vida o país imaginário de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, supostamente descoberto por Borges numa velha enciclopédia, ou os cenários e personagens do seu livro de que pessoalmente mais gosto: O Aleph.

“Borges olha para a realidade de tal ponto de vista que às vezes ela parece inacreditável”, diz Alberto. “O possível fica próximo do impossível. E a fronteira entre ambas as coisas se torna indistinguível.”

Borges é também complexo na forma, pois sua arte se desenvolve da mesma maneira na poesia e na prosa, entre as quais Alberto não faz diferença. Por isso, em nossa conversa, lamentou a ideia de um editor americano de publicar sua obra dividida em três volumes: ficção, poesia e não ficção, onde são compilados seus ensaios. 

“Para Borges, um poema pode ser apresentado como ficção e vice-versa, assim como há poemas que são ensaios”, disse-me ele. “Borges fazia isso deliberadamente para desorientar o leitor, de modo a demolir preconceitos, mudar valores e a nossa maneira de ver as coisas.”

Assim como eu, e talvez mais gente, Alberto lamentava que muito dessa capacidade inventiva e instigadora tenha se perdido na era da literatura de massa. Contudo, ela serve ainda a inspirar muitos leitores e autores, que têm Borges como poderosa referência, na literatura e na vida.

Alberto continuou a conviver com Borges até sua morte, em junho de 1986. Quando ia à França, o já octagenário escritor argentino sempre o visitava. Alberto diz que Borges era inteligente, bem humorado, malvado (quando desejava) e um tanto tristonho, resultado de uma certa solidão. Pela maior parte de sua vida, procurou uma companheira. As pessoas o admiravam, mas não o amavam, como ele mesmo afirmou, certa vez.

Acredito que o próprio Borges tinha um noção do amor que só se realiza plenamente quando não se realiza. Como no ensaio que escreveu sobre Dante e Beatrice. “Dante escreveu a Divina Comédia para a mulher que amava, mas, segundo Borges, para a literatura era necessário que Beatrice fosse embora quando eles se encontram no céu.” É o paradoxo do amor perfeito: ele só chega à perfeição na separação.

Essa visão trágica, que torce a vida dos personagens para aproximá-la do sublime, era de certa forma o modo com que Borges encarava a própria vida. Ou era a imagem da sua vida, que ele transferia para a literatura.

Um ano antes de falecer, Borges casou-se com sua secretária, Maria Kodama, uma nissei que se aproximara dele como freqüentadora de suas conferências. Pode-se dizer que afinal Borges ao menos teve, senão o amor, o único substitutivo que considerava à altura do maior sentimento humano: uma voz para, em meio à escuridão, iluminá-lo por meio da leitura.

(Texto atualizado de uma conversa publicada originalmente na revista Cult, "Borges em todo lugar")