sábado, 17 de agosto de 2024
Uma tarde de bom futebol
segunda-feira, 12 de agosto de 2024
O jornalismo e o vendedor de bombons
Dia dos pais, e estou num almoço com meu filho, 17 anos, meio incerto da profissão a escolher no vestibular deste final de ano, e meu pai, de 89, um bem sucedido aposentado.
- Sabe como eu escolhi minha profissão? - diz o avô ao neto. - Graças ao dono da bomboniere.
Conta a história meu pai, Alípio. Quando ele tinha pouco mais que a idade do meu filho, foi trabalhar no cinema do tio Amaral, que era padre e vigário da Igreja de Nossa Senhora das Dores, na Casa Verde.
O cinema de bairro servia para trazer um dinheirinho a mais ao caixa da paróquia. Nas famílias tradicionais de origem mineira, geralmente o filho mais inepto para os negócios virava padre. No caso dos Amaral, família de minha avó, por algum erro vocacional, o tio padre era um grande negociante, que tinha vários empreendimentos, incluindo emprestar dinheiro a juros usurários. E o cinema.
Como alguém de confiança da família, papai virou o gerente. Cuidava do caixa e fazia a bilhetagem, conferida pelo fiscal da prefeitura, disfarçando algumas malandragens - por exemplo, deixava entrar de graça para ver os filmes uma moça na qual estava interessado, chamada Marlene, que depois seria sua mulher e a minha mãe. Quando passavam os filmes, ficava longo tempo ali, sem fazer nada. Batia papo com o vendedor de bombons, que alugava o balcão na sala de espera do cinema.
O homem da bomboniere tinha um segundo emprego: vendia anúncios para A Hora, um jornal sensacionalista, que dava sobretudo notícias policiais. Meu pai, que fazia Odontologia na Faculdade de Medicina da USP, para satisfazer minha avó, que queria um emprego seguro e tranquilo para o filho, achava maçante passar o resto da vida vendo pessoas de boca aberta numa cadeira odontológica.
- Será que você não arranja um emprego lá para mim? - perguntou papai.
- E o que você sabe de jornalismo?
- Eu sei ler - disse meu pai, lembrando que corria antes de todo mundo, quando menino, para pegar o jornal que o entregador deixava na casa do pai dele, meu avô.
O vendedor de bombons pensou, e disse:
- É o bastante.
Assim, meu pai conseguiu seu primeiro emprego, como repórter de A Hora. Diz que não gostava de cobrir a área criminal, assunto pesado, penoso, mas adorou o jornalismo. Praticou-o por setenta anos - e deu a meu filho seu único conselho para encontrar uma profissão:
- Experimente!
sexta-feira, 9 de agosto de 2024
Jardim japonês
JARDIM JAPONÊS
No castelo de Niho-jo o grande shogun reina:
entre a política e a guerra há um filho que nasce
cuidado a cada dia como o jardim
onde ele respira a beleza pura da vida
entre a política e a guerra
O shogun dorme ao lado da katana luzidia
porque quem repousa não é o homem
é o guerreiro
A lâmina reflete quem é
brilha no escuro
vela seu sono à noite
O alvorecer levanta da sombra dos muros ajardinados
o shogun se veste como um samurai
é um samurai
Somente o semblante altaneiro
diz que é o shogun:
senhor dos campos de arroz
na planície banhada pela água pelos rios
quem vêm das montanhas verdejantes
com suas responsabilidades
e sua coragem
O coração está abrigado
no relicário que é o palácio de madeira encaixilhada
paredes decoradas de pinturas em laca
cercada pelas muralhas de pedra perfeitamente engastada
e o fosso de água limpa e fresca ao redor da murada exterior
Pesa saber que dele tudo depende
mas há também leveza na brisa da manhã:
dá valor a cada dia
às coisas grandes e pequenas
(e então ele ouve as mulheres cantando ao longe
suave recompensa pelo seu trabalho duro)
Todos os entes têm dentro de si o kami:
o espírito divino está com ele quando caminha em silêncio
acompanhado dos kamis do sol, da luz, das árvores
e do lago de pedras pontiagudas e rudes ferindo agrestes
a harmonia do plácido cenário
onde as folhas das árvores sustentam o céu
Para que a guerra senão o inevitável equilíbrio
a harmonia
a paz como deveria ser
Para que o poder
senão para dividir
alimentar
cuidar
apenas viver
Para que a riqueza
senão para a saciedade
e a garantia do dia seguinte
Para que o sonho
senão dar mais valor
ao que de outra forma
se pode perder
desperdiçar
esquecer
Para que querer
o que é possível
se o impossível está diante de nós
e tudo temos em nós
para alcançar o horizonte
Magokoru: coração sincero
para o shogun não há medo
e não existe o amanhã
toda o esforço humano é nada diante da simplicidade
Para o shogun
a morte é continuidade da vida
e a única obra verdadeira
é o eterno
ser
sexta-feira, 2 de agosto de 2024
Um café em Akihabara
terça-feira, 16 de julho de 2024
O culto à vida e o desenvolvimento
Em 1920, o imperador Meiji cedeu ao fato de que era preciso modernizar o Japão. Como um rito de passagem, mandou construir um templo xintoísta no meio de uma floresta de 70 hectares dentro de Tóquio: o Meiji Jingu, onde hoje repousa seu espírito, com o da imperatriz Shoken.
Na entrada, após os Torii (portais), duas estranhas galerias ladeiam a alameda que leva ao templo. Como marco da mudança, do lado direito, estão barris de saquê, que o Japão exportava; do lado esquerdo, barris de carvalho com vinhos da Borgonha, trazidos da França. Um espécie de símbolo da abertura ao comércio internacional, celebrado com a bebida.
O shintoísmo é uma religião antiga, de origem incerta, sem livro, profeta, batismo, conversão. Baseia-se no princípio de que todos os seres são espíritos a serem respeitados, uma forma de harmonia com toda a natureza. Essa ideia fundamental está por trás de toda a cultura japonesa.
Meu filho, que sempre foi sábio desde pequeno, definiu o xintoísmo como "um culto à vida". E é isso mesmo: enquanto outras religiões buscam a conexão com o além, o mistério, o insondável, o shintoismo venera a natureza, isto é, o que existe, a vida.
O templo do imperador revela a conexão entre essa filosofia e a forma encontrada para que essa sociedade tradicionalista e ritualista se adaptasse e permitisse o desenvolvimento. Respeitar a tradição usando-a em favor, e não contra o progresso, é a verdadeira semente do Japão contemporâneo. Um país onde há muito trabalho duro, mas que ocupou um lugar importante na economia mundial, realizando o projeto do imperador cujo legado aqui se encontra vivo, embalado por uma paz sobre a qual se caminha de coração tranquilo.
segunda-feira, 15 de julho de 2024
A volta aonde nunca fui
Por isso, para mim é também um tanto mágico conhecer o Japão. Sempre me aproximei dos japoneses por algo que para mim é uma identidade: a gentileza, a polidez, o recolhimento, a contemplação, o respeito pelos outros e pela natureza, o perfeccionismo nos mínimos detalhes - da maneira como se corta o peixe a como se faz um carro.
Essa cultura, como conjunto, e cada um de seus elementos, fizeram um país ir muito além do país. Ela é carregada por seus produtos, sua comida, sua literatura, seu cinema e cada um de seus filhos. Como Portugal, o Japão é um exemplo de como a cultura faz uma nação ser muito maior do que aquilo que cabe no seu território. É tão forte, que prova como um povo com um estilo de vida e uma tradição milenares pode ser capaz de se adaptar a tudo - à guerra, à tecnologia, enfim, ao tempo - e preservar e projetar sua essência, onde está o seu melhor.
É isso o que eu penso, olhando o motorista que conduz o trem em Tóquio. Um desses homens simples, mas que para mim eram heróis, nos meus tempos de menino na Liberdade, quando olhava os lixeiros que passavam na rua, viajando pendurados no caminhão, e sonhava um dia ser como eles. Sigo no trem, levado por esta felicidade infantil, que divido com minhas eternas companhias, dizendo, à vida: arigato gozaimasu!
quinta-feira, 11 de julho de 2024
O deserto do futuro
Burj Khalifa, mais alto prédio do mundo |
Mais que escala para o outro lado do mundo, Dubai foi planejada para ser uma bem acabada amostra do futuro de todo o planeta, tecnologicamente desenvolvida para a vida humana habitar um ecossistema desertificado. Dentro do vidro e do aço refrigerados, circula gente de toda parte, carregando culturas diferentes, num ambiente em todos os sentidos controlado.
No metrô, mulheres e crianças vão em vagões exclusivos, no final da composição, uma espécie de apartheid resultante da influência religiosa no Estado. Meu filho diz que é preciso entender a cultura e isso pode mostrar "gentileza". Ele tem, felizmente, uma alma gentil - e procura ver as coisas pelo seu ângulo melhor. Eu estou mais velho e aprendi a ver o ruim mesmo no bom.
As mulheres de burca podem gostar do seu lugar e de ir no vagão exclusivo. Mas eu penso que o direito de usar burca só é bom quando não é coercitivo, socialmente, assim como a gentileza só é realmente gentileza quando é exercida num ambiente de igualdade.
Você tem direito a um lugar, onde todos podem estar, e então o cede em favor de alguém, ou recebe esse favor de alguém. Só há virtude quando você cede um direito que é seu, e não quando o tomam de você e fazem generosidade em seu nome. Essa generosidade. Para mim, é apenas discriminação.
Em Dubai, todos são bem vindos, no ecumenismo magnético do dinheiro, mas está clara a preferência estatal. Todos os estalecimentos públicos, como o Dubai Mall, considerado o maior shopping do mundo, têm salas para o culto muçulmano ao lado dos banheiros, numa aproximação entre diferentes necessidades diárias.
Embora admirável, como empreendimento humano em local inóspito, a cidade é mais ou menos como viver em Marte, que um dia já foi também mais parecido com a Terra. Dado isto, os antigos povos do deserto, que agora andam de kandura de seda entre Dolce & Gabanna e a Montblanc, e com o declínio do petróleo agora investem em turismo e futebol, talvez sejam de fato os mais preparados e interessados nesse futuro artificialmente construído, com suas tendas de vidro no areal.
sexta-feira, 21 de junho de 2024
Borges e o paradoxo do amor perfeito
A mãe de Borges lia para o filho. Quando ela se cansava, precisava que alguém mais o fizesse: podiam ser jornalistas, visitantes ou qualquer pessoa que encontrasse pela frente. Assim, Alberto passou a frequentar sua casa, à noite. Na época, Borges procurava voltar à prosa, que abandonara por julgá-la menos praticável na cegueira. Interessava-se pelos grandes épicos. Foi assim que Alberto leu para ele Henry James, Stevenson e Chersterton.
Às vezes, Borges comentava a leitura: concentrava-se em estudar a narrativa, seu ritmo, a maneira como aqueles autores tinham feito suas histórias funcionarem. Buscava o segredo da sua eternidade.
Borges morreu aos 86 anos em 1986. Telefonei para Mangel, que morava numa vila com apenas seis casas, nas proximidades de Poitiers, na França, onde encontrou abrigo para sua biblioteca de 35 mil volumes, labirinto de conhecimento digno de um conto borgiano. Intelectual no sentido puro da palavra, autor de romances e ensaios que versavam sobre pintura, literatura e sua vida – incluindo seu tempo ao lado de Borges.
Comentei sobre uma passagem de sua obra então recém publicada no Brasil, Os Livros e os Dias, uma espécie de diário em que reúne anotações sobre seu dia a dia e romances clássicos enquanto os vai lendo. Em “A Ilha do Dr. Moreau”, rumo a Londres a bordo do trem Eurostar, Alberto prestava atenção em uma conversa inaudível entre duas senhoritas, até pescar uma única e misteriosa frase: “Ele se enrolou até se tornar uma pequena bola e morreu”. Jamais soube o que seria “ele”, ou porque “ele morreu”: peças tiradas ao acaso de um quebra-cabeça.
- Bem poderia ser um conto de Borges, não? – digo eu.
- Bem – disse ele – De certa forma, Borges está em todo lugar.
O tempo passado desde a morte de Borges mostra cada vez mais sua influência vital na literatura contemporânea – e sobre nós, mesmo de maneira inconsciente. “Ele é a figura-chave da literatura no Século XX, mais do que Kafka, Joyce ou Beckett”, me disse Alberto.
Por trás desse mistério está a habilidade de Borges de subverter o tempo, ou conceitos, ou a maneira como passamos a ver a literatura depois dele. “Borges mostrou que não importa como o autor quer parecer a seus leitores, mas como o leitor o vê”, acrescentou Alberto. “Ele mudou a maneira como usamos os livros. Se você vê algo em um romance, ele passa a ser aquilo que você vê.”
Eu vejo Borges em Cortázar, especialmente em um conto de “Os gatos”, no qual ele narra, com minudências de um técnico, a descoberta de uma população que vive nos subterrâneos do metrô de Buenos Aires, sem nunca emergir.
Ele nunca foi nem será um best seller como Gabriel Garcia Márquez, mas seu papel é muito importante para a literatura mundial. “Borges é menos lido porque exige um esforço intelectual maior”, disse Alberto. “Isso faz uma diferença grande sobretudo nos Estados Unidos, onde o mercado se voltou para a literatura de consumo fácil, criando uma sociedade estúpida.”
Diferente de Garcia Marquez, cujo “realismo fantástico” é transformar a realidade em algo que parece inventado, a marca de Borges é fazer o contrário: fazer o inventado parecer real, por meio de uma narrativa tão minuciosa e precisa que transforma o impossível em verdade - vertendo-a em uma espécie de incomprovável erudição.
“Borges olha para a realidade de tal ponto de vista que às vezes ela parece inacreditável”, diz Alberto. “O possível fica próximo do impossível. E a fronteira entre ambas as coisas se torna indistinguível.”
Borges é também complexo na forma, pois sua arte se desenvolve da mesma maneira na poesia e na prosa, entre as quais Alberto não faz diferença. Por isso, em nossa conversa, lamentou a ideia de um editor americano de publicar sua obra dividida em três volumes: ficção, poesia e não ficção, onde são compilados seus ensaios.
Assim como eu, e talvez mais gente, Alberto lamentava que muito dessa capacidade inventiva e instigadora tenha se perdido na era da literatura de massa. Contudo, ela serve ainda a inspirar muitos leitores e autores, que têm Borges como poderosa referência, na literatura e na vida.
Alberto continuou a conviver com Borges até sua morte, em junho de 1986. Quando ia à França, o já octagenário escritor argentino sempre o visitava. Alberto diz que Borges era inteligente, bem humorado, malvado (quando desejava) e um tanto tristonho, resultado de uma certa solidão. Pela maior parte de sua vida, procurou uma companheira. As pessoas o admiravam, mas não o amavam, como ele mesmo afirmou, certa vez.
Acredito que o próprio Borges tinha um noção do amor que só se realiza plenamente quando não se realiza. Como no ensaio que escreveu sobre Dante e Beatrice. “Dante escreveu a Divina Comédia para a mulher que amava, mas, segundo Borges, para a literatura era necessário que Beatrice fosse embora quando eles se encontram no céu.” É o paradoxo do amor perfeito: ele só chega à perfeição na separação.
Essa visão trágica, que torce a vida dos personagens para aproximá-la do sublime, era de certa forma o modo com que Borges encarava a própria vida. Ou era a imagem da sua vida, que ele transferia para a literatura.
terça-feira, 18 de junho de 2024
Ricardo Castilho: tintin
- Gostaria que você viesse trabalhar aqui.
Castilho, que eu conhecia dos meus próprios tempos de Abril, deu risada. A Abril era quinhentas vezes maior que a editora onde eu trabalhava. Gula ser a maior revista de gastronomia do país não queria dizer grande coisa. Vendia 6 mil exemplares em banca e lutava para ter outro tanto de assinantes. Playboy chegava em certas edições a vender 1 milhão de exemplares. Ele tinha um emprego sólido, estável, num dos melhores lugares para se trabalhar, não apenas da imprensa, como do país, quem sabe do mundo. Gostava do que fazia, e de onde estava. E muito.
- Eu estou na Playboy! - ele disse.
- Eu sei. Mas vou pedir pra você pensar.
- E como você pretende me convencer?
- Só vou te fazer uma pergunta: quando aquilo que você faz vai sair na capa da tua revista?
Duas semanas depois, Castilho estava comigo, em Gula.
Saí da editora quando ela estava sendo fundida com a editora Peixes e ele, insatisfeito com a nova configuração, logo depois saiu também. Conosco, Gula tinha mudado. Rejuvenescera, criara novos serviços, vinha crescendo - tinha 16 mil assinantes. Na Peixes, queriam que voltasse ao que era antes. Castilho resolveu continuar a revista que fazíamos, mas sozinho, em outro lugar.
Juntou-se a dois outros corajosos amigos - a jornalista Mariella Lazaretti e seu marido, brilhante empreendedor, Georges Schnyder -, e eles botaram na revista que Castilho fazia, do jeito que fazíamos, o nome de Prazeres da Mesa.
Agregaram ao negócio o que já vínhamos fazendo em Gula - uma parceria com eventos que, no caso de Gula, na época se chamava Boa Mesa, evento gastronômico iniciado por Josimar Melo. E, corajosamente, Castilho e seus parceiros seguiram em frente, saindo do zero.
Vinte anos depois, posso dizer que Castilho se tornou um de meus maiores orgulhos. Gula e Playboy acabaram. Prazeres da Mesa ainda existe - e como. Ainda publicada em papel, tem hoje 361 mil seguidores no Instagram, um número que jamais imaginaríamos, quando fazíamos Gula.
Com seus parceiros, Castilho tornou-se indiscutivelmente o maior editor de gastronomia do país. O que ele fazia nunca mais deixou de ser capa.
Ele foi isso, e muito mais que isso. Era dual, risonho mas às vezes meio rabugento. Porém sempre ético e trabalhador ao extremo - disposto a colaborar, a resolver, a qualquer custo. Amava o que fazia. E tínhamos algo mais em comum: a paixão atávica pelo Palmeiras, nosso time do coração.
A notícia de que Castilho faleceu de repente esta manhã é dessas coisas que beiram o inacreditável. Esta foto que eu coloquei aí deve ser do Ricardo D'Angelo, que começou a trabalhar conosco lá atrás, em Gula, e colocou em prática o estilo e a qualidade visual que queríamos em Gula e também na revista de Castilho.
Contei uma história profissional do nascimento de um negócio no qual penso como se fosse também quase meu. Mas Castilho que fez, e fez muito mais que isso: era um grande homem, honesto e amoroso, e , para mim, um amigo indispensável. O que ele fez fica, mas sua falta me deixa indignado com a atrocidade do destino.
Prefiro pensar nele como se estivesse ainda ali, com taças a tilintar, num memorável jantar em minha casa, com um grupo de confrades, em que bebemos uma inesquecível garrafa de Montrachet e consumimos mais de um quilo de sobremesa cada um.
Ricardo: tintin.
segunda-feira, 3 de junho de 2024
Kafka 100 anos depois
terça-feira, 14 de maio de 2024
Para onde vai o mundo
A ordem social, como se sabe, depende de códigos em comum, respeitados por todos. A democracia contemporânea pressupõe, nesse concerto, a igualdade de direitos e deveres para todos. Ocorre que essa igualdade sempre esteve longe de ser perfeita e interesses de grupo, prejudicados no passado ou no presente, ganharam força - especialmente em função da comunicação digital, que empoderou grupos de interesse, abrindo divergências de pontos de vista dos antes oprimidos ou simplesmente ignorados.
Como empoderar minorias e extirpar práticas e comportamentos do passado, como descolonizar nações, sem retirar a ordem que mantinha a sociedade unida, e ao mesmo tempo evitar que a discórdia e as disputas causem uma profunda fragmentação e joguem o mundo no caos político-social?
O ser humano é o único animal paradoxal: ao mesmo tempo em que precisa da sociedade, quer exercer sua individualidade por meio da liberdade. Sua realização se dá tanto pelas suas aspirações individuais como coletivas.
Diz Habermas que fracassou o projeto Iluminista, cujo grande resultado são os regimes democráticos da era contemporânea, instaurando a cidadania e o direito individual. A democracia atual, adaptada da antiga Grécia com um sistema representativo mais sofisticado para uma sociedade mais numerosa e complexa, não deu conta de promover a igualdade, muito menos riqueza para todos.
Pode parecer fracasso, mas, como digo no livro A Era da Intolerância (editora Matrix), os males da democracia contemporânea são resultado do sucesso. O resultado do Iluminismo e da democracia dele frutificada foi proporcionar grandes avanços para a sociedade - como a redução da mortalidade, o aumento da expectativa de vida, o aperfeiçoamento da tecnologia numa escala jamais vista e, por fim, uma série de mudanças sociais.
Caem estruturas, como a relação entre "patrão e empregado", da mesma forma que no passdo caiu a escravidão. Questiona-se todo tipo de situação desigual, movimento que levou ao fim patriarcados ou matriarcados e vem criando um "empoderamento do oprimido", seja por sexo, cor, raça, cultura: a mulher, o gay, o negro, o indígena.
Como acomodar interesses numa sociedade que vem de diferentes vértices da história e da cultura e conciliar "identidades individuais e coletivas"? A valorização do pluralismo cultural, com o respeito à perspectiva de diferentes povos ou grupos, torna-se também um desafio para a manutenção da agregação social, ameaçada pelo sentimento de submissão de uns a outros.
"Devemos então procurar saber como cada um dos demais participantes procuraria, a partir do seu próprio ponto de vista, proceder à universalização de todos os interesses envolvidos", diz Habermas. Daí a necessidade do diálogo construtivo que ele propõe.
A ideia iluminista de que "uma pessoa só é livre quando outros são livres igualmente" vem sendo atacada pelas correntes sócio-políticas para as quais é preciso restaurar a ordem por meio de alguma forma de autoritarismo. Há uma crítica da democracia pela própria democracia e um movimento de ressurgimento do conservadorismo, entendido no sentido que lhe deu Schopenhauer, de busca pela restauração da ordem.
O Iluminismo não é um fracasso, ou o fracasso da razão. Ao contrário, gerou grandes avanços. Estes, porém, por sua vez, criaram novos e maiores problemas. Num mundo que prosperou muito e gerou grandes riquezas, surigiram também grandes distorções, especialmente uma concentração de riqueza semprecedentes, com equivalente desigualdade social.
Habermas propõe uma "ética da discussão", com o objetivo de "nos proporcionar uma nova formulação do projeto kantiano de estabelecer um fundamento objetivo de normas práticas". Creio, que, em 2001, o filósofo não imaginava que, na era da informação, a discussão poderia ser utilizada também para fomentar o ódio, disseminar mentiras e manipular a opinião pública, como meio de desestruturar a confiança na democracia e criar condições para golpes de fundo totalitarista, em países como o Brasil.
No entanto, ele já apontava para a substituição do "paradigma kantiano da subjetividade" (um comportamento em comum a todas as pessoas, que aceitam normas às vezes não explícitas sem discuti-las, e para o filósofo Immanuel Kant seriam a base da socialização) pelo "paradigma da comunicação" como elemento essencial para a formação dessa consciência coletiva comum - e o concerto entre os interesses de grupo e os interesses gerais.
A preocupação de Habermas, que é o grande dilema do pensamento contemporâneo, é como preservar o Estado, e a gestão dos interesses em comum, criando um equilíbrio que permita ao governo funcionar. E tem de funcionar, já que todos, seja qual for sua cultura, cor, credo ou posição social, dependem de água potável, pavimentação nas ruas, segurança e outras atividades que, para serem mantidas e geridas com equidade, dependem de um consenso social mínimo.
O entrechoque de interesses, com a disputa pelo controle do Estado por um grupo específico, em vez de representar e pesar as diefrenças da sociedade, sempre existiu. No limite, ele leva aos caos. Em alguns países, especialmente o Oriente, como a China, a agregação social foi mantida por regimes de opressão, que, na virada do Século XX para o XXI, tiveram no entanto de se permitir alguma distensão, face às crises internas criadas pelo dirigismo estatal e face ao progresso do mundo livre ocidental.
Porém, chegou a vez da democracia contemporânea ser desafiada a evoluir para uma sociedade que aumentou sua complexidade e desenvolveu novos mecanismos de participação, organização e manifestação, numa velocidade muito maior do que a do antigo sistema representativo, que assim perdeu muito da sua legitimidade.
Habermas observa que a democracia do mundo novo deve promover as condições "econômicas, sociais e culturais que garantam uma participação abrangente e competente de todos os que podem ter algum interesse no discurso prático; e, em segundo lugar, a condição de que cada parte disposta a aceitar as normas intersubjetivamente reconhecidas possa contar com que todas as demais partes interessadas se comportem da mesma maneira".
A "intersubjetividade" de Kant, ou a "metamoral" de Habermas, que formam esse corpo psicossocial onde estão regras não ditas e que agregam a sociedade, são justamente a área em que os ideólogos da comunicação de massa na era digital trabalham, de forma a mobilizar as massas em torno de projetos antidemocráticos. A repetição de bandeiras pela disseminação do ódio e a desestabilização da sociedade organizada vigente, que visam o golpe e a instalação de grupos de interesse no poder, procura modelar justamente essa consciência coletiva invisível, com instrumentos de comunicação que não existiam ao tempo da propaganda nazifascista, muito eficiente para sua época.
Muitos teóricos hoje falam em "plasticidade neural", isto é, na mudança do próprio cérebro humano, como uma máquina que se adapta às influências externas, passando a funcionar de uma forma diferente; o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis menciona em sua palestras o que chama de uma "rede neural", que conecta os seres humanos e pode provocar movimentos coletivos, da mesma forma que as formigas se orientam para uma mesma tarefa ao mesmo tempo, sem nem mesmo comunicação.
Para Habermas, o espaço onde as diferenças são resolvidas ainda deve ser o da democracia constitucional, e não no âmbito da "teoria moral". Contra os profetas da "terra plana", da anti-razão e do ati-Estado de Direito, é preciso uma defesa da razão, para que as questões possam ser sanadas de forma pacífica dentro de "um Estado constitucional em que o reformismo democrático é institucionalizado como parte normal da política".
*
Pode-se dizer que esta é a visão otimista do problema, uma saída dentro do que Habermas chama de "padrão evolutivo da modernização social e cultural". Ele defende a criação de uma"teoria da ação comunicativa" para o aprofundamento do estudo da crise, bem como de uma "teoria da racionalidade" e uma "teoria moral".
Vê uma convivência possível entre as diferentes culturas que pedem espaço e afirmação na sociedade contemporânea, ao mesmo tempo em que se mantém uma"cultura política geral", que "deve ser comum a todos os cidadãos para que a sociedade possa conservar-se".
Habermas nota que o Estado tem falhado inclusive no estabelecimento de um "Estado incolor", como promotor da igualdade racial, modelo que vem sofrendo uma "revisão". Cita Will Kymlicka pelo desenvolvimento da noção de "cidadania multicultural".
Nesse sentido, propões incluir dentro dos direitos civis também "direitos culturais", que "garantem o acesso a uma tradição e à participação nas comunidades culturais de sua escolha, para que possam estabelecer sua identidade".
Não é uma tarefa simples, sobretudo pelo fato de que, para a implantação de qualquer mudança, é preciso passar justamente pelas dificuldades da "ética da discussão". "Esse modelo, como é óbvio, leva em si o perigo intrínseco da fragmentação", afirma Habermas. "Uma comunidade não pode se fragmentar na multiplicidade de suas subculturas, e penso que isso so pode ser permitido sob a condição de que todos os cidadãos possam se reconhecer numa única cultura política que transcenda as fronteiras de sua diversas subculturas".
Tal disposição é ainda mais importante nas sociedades onde as culturas reconhecidas como"minoritárias" estão em conflito com as majoritárias. "Do ponto de vista histórico, é evidente que a cultura da maioria sempre determinou (refiro-me à França) a cultura política em geral", afirma o filósofo. "A partir do momento em que as subculturas reprimidas tomam consciência de suas tradições específicas e uma cultura supostamente homogênea dá lugar a uma sociedade cada vez mais 'multicultural' (no sentido atual do termo), as pressões de adaptação tendem ao menos a uma certa separação entre a cultura política e a cultura majoritária".
Não é nada fácil, porém, a tarefa de agregar a sociedade digital, sobretudo em função da ação da guerrilha que procura minar as condições da sua própria discussão, que é a racionalidade e a sua base, a noção de verdade.
Para minar a democracia, os grupos de interesse têm atacado a noção de verdade e a própria razão, que é base da igualdade, pois não há motivo para se acreditar que alguém tenha mais direitos que os outros, como aponto em A Era da Intolerância. Ainda não há nenhum sistema melhor que a democracia como campo para solução pacífica de conflitos, e o reformismo onde a convivência entre o multiculturalismo e a "cultura única" (representada pelo Estado democrático) proposta por Habermas me parece uma boa saída.
Quem disse, porém, que a humanidade resolve suas grandes questões de forma pacífica? Receio que tenhamos, nós da geração da liberdade, criado e desfrutado de um período relativamente pacífico e próspero, mas que tenha sido apenas um breve parênteses na história. E que este animal bípede, terrível espécie dominadora da terra, movido por uma "metaconsciência" que dispara comportamentos coletivos violentos, no limite brutais, jamais vá perder sua dose de selvageria ancestral.