terça-feira, 6 de abril de 2021

Curare: dos tupinambás para os hospitais no Covid-19


Conta o meu médico, Virgílio Pereira, que no Einstein, hospital onde trabalha, utiliza-se o curare - um paralisante muscular - nos pacientes intubados de Covid-19, para evitar que rejeitem o equipamento, fisicamente intrusivo. Com isso, os pacientes não precisam ser amarrados, solução considerada agressiva ou desumana por muitos, como acontece em hospitais com menos recursos ou recursos esgotados.

Com isso, ganha um uso bem contemporâneo algo que já era conhecido pelos tupinambás quando no Brasil chegaram os europeus, tanto na caça quanto na guerra. Embido em flechas e lanças, o curare paralisava e deixava à mercê a presa e o inimigo, como vai contado em A Conquista do Brasil (1500-1600), hoje em sua quinta edição.

Mais um caso em que o passado se faz presente, parte porém de uma outra guerra, e dessa vez como instrumento da medicina. 

quinta-feira, 1 de abril de 2021

O romance para os 200 anos de Anita Garibaldi

 Este ano, completam-se 200 anos do nascimento de Anita Garibaldi, a grande heroína brasileira, feminista antes do feminismo, mãe, mulher, guerreira e paladina da liberdade. 


Personagem dos mais admiráveis da história, de fazer inveja ao próprio Garibaldi, César ou Napoleão, no Brasil pouca gente a conhece, ou sabe realmente quem foi. 

Essa é uma das razões pelas quais escrevi esta biografia romanceada, publicada pela editora Record. Faltam ainda filmes, séries e documentários sobre ela. Eis a grande oportunidade.

@tguaracy
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terça-feira, 30 de março de 2021

O homem que não entendia o amor


Contardo Calligaris era um um pensador interessante, versátil e muito popular. Levou as preocupações que fizeram dele um psicanalista a um grande público, seja por artigos em jornal, uma excelente série de streaming (Psi) e mesmo o romance. 

Ironia das ironias, o seu "O Conto do amor", publicado pela Companhia das Letras, revela que o homem que estudou o ser humano boa parte da sua vida não sabia o que era o amor - ou, ao menos, não o achava possível, como sugere o próprio título do livro. Calligaris vivia sozinho, mas fez dessa busca pelo amor, como condição necessária para a felicidade, seu interesse maior - e, assim, sua vocação.


Procuramos aquilo de que mais precisamos - e ele tentava ajudar os outros naquilo que não via para si. Morreu de câncer, aos 72 anos, e me deixa a impressão de uma vida plena, ao menos para quem acredita que a vida é sempre uma busca, na qual jamais alcançamos a plena realização.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Poesia e o fígado de bacalhau


 “Como está poético, você!”, me dizem. Na verdade, estive poético - no pretérito. Todos os poemas que andei postando aqui já estavam escritos e publicados. Mas, pra quem não leu, é novidade.

O que escrevemos no calor da hora, geralmente, ficou para trás. É um fotografia antiga. 

Quando publicamos o que escrevemos, muitas vezes, não é para celebrar o presente. Muito ao contrário. Reflete o passado. Frequentemente usamos isso para fechar uma porta. 

Poesia não é diferente. Como toda literatura, conserva a vida, as ideias, sentimentos. Mas também funciona para tirar algumas coisas de dentro da gente, bota aquilo para fora, que fica separado. Forma de despedida, que enterra ao desenterrar. 

Publicar poesia lembra o tempo em que ela existia. Quando essa alegria não existe mais, colocar fora é uma forma de resolver, fazer as pazes com a gente mesmo, esquecer. Se está ali, escrito, não precisamos mais lembrar, nem sentir. Ao entregar a poesia ao mundo, tirando sentimentos de dentro de nós mesmos, fazemos um rito de passagem. Traz alívio.

Fazer poesia é tomar mel. Publicar poesia, como último capítulo de uma história que passou, é óleo de fígado de bacalhau. Tem gosto ruim, mas faz bem pra saúde. 

Com sorte, deixa algo também para os outros e mantém os bons sentimentos num bom lugar. Onde talvez, um dia, alguém ainda vá aproveitar, ou, olhando para trás, já anestesiados pela distância, tenhamos saudade.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Pelé, Osmar Santos e o amor


Vejo o doc sobre Pelé no Netflix: bem editado, emocionante. O que mais chama minha atenção, porém, é Pelé de cadeira de rodas, com as pernas atrofiadas, recebendo os amigos.

Penso nas crueldades de Deus, ou do destino, como preferirem. Foi assim com o locutor Osmar Santos, que, num acidente de carro, perdeu, justamente, a fala.

Há muitos casos. Agora há Pelé. Pelé, sem suas pernas.

Penso na Bíblia, livro de Jó. O homem que é em tudo obediente e tem como pago a ingratidão de Deus. E se pergunta: por que?

Não há resposta, creio. Ou, se há, é que sentimos mais por perder o que nos é mais caro e fizemos por merecer. Como o amor. Quem mais se dedica ao amor é aquele que mais perde, porque é justamente quem se dedica. E quando perde nem cabe perguntar por que.

A vida não é merecimento, nem reconhecimento. E só perde aquele que tem algo. É esse algo que deve ser lembrado, é o que importa, ainda que seja tirado: as pernas de Pelé, a voz de Osmar, o amor.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Nós e nossas obsessões


Olá Roberta, tudo bem?

Desculpe invadir o seu tempo, não sei nada da sua vida, nem como você apareceu aqui na timeline, deve ser coisa dos algoritmos. 

Você pode perfeitamente me ignorar, ou me bloquear se quiser, mas ainda assim eu vou escrever. É bom escrever, mesmo com a possibilidade de que você não leia, de que ninguém leia, ou de que alguns leiam, mas não compreendam. 

Acabei de ver The Pillow Book e queria te agradecer a involuntária indicação. E fazer alguns comentários, de qualquer maneira.

É preciso certo refinamento para apreciar desse filme, certamente: não é só uma só uma questão de gosto, ou de estética, como também de certos sentimentos e preocupações, que a meu ver pouca gente tem. 

Não é todo mundo que tem o prazer de ver a vida como ritual (algo que japoneses e chineses fazem tão bem). Para esses, certamente o filme  ajuda a gente a pensar e aceitar como a vida é feita de nossas obsessões, que influenciam tudo: o que fazemos, como amamos, enfim, como vivemos. E a vida, assim, certamente, é muito mais rica.

Para mim, que vivo de escrever, há esse interesse adicional, de quem procura dar a tudo algum significado. Somos todos tela em branco e nós mesmos vamos escrevendo o que nos interessa, beneficiários e ao mesmo tempo vítimas de nossas mais particulares obsessões.

A mulher (que linda mulher), o editor (também um obsessivo), o namorado (ah, como é possível sofrer por uma mulher). A atmosfera do filme, como naquela canção em francês (que perturbadora cena de amor).

Ficam as perguntas, que eu sempre me fiz. Será a infância dela, a relação com o pai, que a fez assim? Ou as obsessões vêm da natureza, nascemos dessa forma?

O que fazer com isso: tentar superar ou vencer as obsessões, ou deixar que elas nos levem a um mundo às vezes misterioso?

Para nós, que escrevemos, não importa aonde, sobre o que, ou em cima do quê, escrever se confunde com a vida. A vida acontece e todo o tempo refletimos sobre o que fazemos, escrevendo.

E nada mais bonito, especialmente no amor, que deixar isso marcado no próprio corpo, mesmo com a leveza das palavras que depois escorrem com a água do banho. Assim a matéria, de existência tão banal e efêmera, fica ainda mais bela, e chega a um estado superior.

Só quem transforma a vida em ritual, em símbolo, conhece a si mesmo melhor, e leva uma vida mais profunda e com significado. Temos uma vida só, não é? E são as nossas obsessões, algumas inobserváveis à flor da pele, que tornam essa passagem, para muitos tão sem sentido, em algo que realmente vale a pena.

Thales

PS. Queria te contar, Roberta, que já escrevi nas costas de uma mulher. Saiu este poema, e gostei dele tanto que depois quis copiar:

Quero escrever um poema

Não em uma folha qualquer

Mas na tua pele morena

Poema em forma de mulher


Quero gravar no teu rosto

A certeza de um sorriso

Que espanta todo o desgosto

A luz de que eu tanto preciso


Nos teus seios atrevidos

Desenharei os desejos

Nunca mais reprimidos

Libertados por muitos beijos


Nas tuas pernas indecorosas

Estendidas no nosso leito

Desenharei muitas rosas

O caminho por onde me deito


Nos teus pés retesados

Ao se torcer de prazer

Deixarei registrados

Os extremos que podemos ser


No teu dorso de bailarina

Pousado contra o meu peito

Escreverei a uma menina

Que o torto pode ser o direito


No teu ventre liso e fecundo

Farei versos do mais puro amor

Onde eu deixo o meu mundo

E as sementes do meu ardor


Quero escrever-te em poema

Não para fazer mais um livro

Será, meu amor, um sistema

Capaz de manter-me mais vivo


Gosto, Roberta,  do cinema japonês, como de outras coisas do Japão. Especialmente o Kurosawa. Quero um dia aprender o shodo, que é essa escrita artesanal. E quem sabe escrever na pessoa certa. Porque só tem sentido escrever na carne de alguém que não escorra da vida com a água do banho.


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

A natureza dos relacionamentos


Sento no chão da pérgola da casa do meu pai, Alípio: conversamos ao ar livre, porque ele tomou só a primeira dose da vacina contra o vírus e eu ainda não. Volto e meia venho vê-lo, a certa distância: sinto falta das conversas pessoais, das quais eu sempre tiro alguma coisa. É como visitar um velho oráculo, o único talvez capaz de me entender - e aceitar.

Não falo muito, imerso em reflexões inconfessáveis, mas ele dá um jeito de entrar nos assuntos importantes, à sua maneira, como quem não quer nada. Dessa vez, me diz que está lendo sobre os elétrons, como sempre um pretexto, às vezes surpreendente, para falar de algo mais.

- Descobri que é impossível estudar os elétrons - disse ele. - Porque quando olhamos para o elétron, o comportamento dele muda.

Partindo dessa constatação científica, passamos a discutir a ideia de que pessoas são matéria, no fim das contas, e, como tal, sujeitas às mesmas propriedades físicas.

Dessa forma, deduzimos que uma pessoa que vive conosco nunca é exatamente aquela pessoa, tal qual existe por si mesma. É a pessoa como a vemos, e não só. A pessoa muda, sob a influência da nossa presença e do nosso olhar.

Chega Cláudia, mulher dele há trinta anos, período em que casei e me separei várias vezes. Traz uma cadeira de plástico para mim e uma mesinha, onde me serve o café. Esperamos um pouco, até ela se afastar.

Papai não é adivinho, ou pelo contrário, deve ser, porque de todo modo tenho pensado ultimamente em como aquelas pessoas com quem vivemos tanto tempo possam ser tão diferentes, sozinhas, do que são quando estão ao nosso lado. Às vezes, se tornam, mesmo, deploráveis.

Se elas são mesmo isso, me pergunto por que nos aproximamos delas, em primeiro lugar.

- Existe o papel e a persona - lembra meu pai. - Os atores sabem disso muito bem. O papel é aquilo que está escrito. A persona é como o interpretamos. Quem vê o outro, vê a persona, construída para aquele papel. E que não funciona fora dele.

Penso que então escolhemos alguém menos pelo que a pessoa é, e mais por como ela se mostra para nós. Depois, ela passa a ser aquilo que queremos, desejamos ou precisamos que ela seja.

Quando duas pessoas estão juntas, sob influência mútua, aquilo funciona. Tem gente com sorte de que isso dure a vida inteira. Para outros, funciona por algum tempo, até que a persona cansa, tendendo a voltar à sua própria natureza.

Então, aquela pessoa com você dividia a vida e os sonhos, sem a influência da nossa presença e do nosso olhar, de repente deixa de existir. Às vezes, ela quer mesmo desaparecer do seu olhar, para poder ser o que ela é, de novo. E é preciso entender.

Penso que por vezes podemos ser muito bom juntos, enquanto isso dura. E que aquela pessoa jamais foi, nem será a mesma. Ninguém mais terá alguém que só existiu a seu lado - e jamais será igual.

Para mim a vida ainda é inexplicável e não plenamente observável, como a matéria pura. Porém, me tranquiliza pensar que o passado ao menos existiu, de alguma forma, enquanto durou. Que não foi tudo mentira, não foi engano. Foi algo real, ainda que por algum tempo, sob a influência mútua de duas presenças que se completavam. Acreditar que foi tudo um grande erro é duro demais.

Cai a noite, e saio da casa do meu pai para a rua. Penso que eu sempre fiz isso, transformar a vida ao meu redor, vivendo no mundo das ideias, das pessoas, dos sentimentos, do interesse por tudo, e atraindo outros para isso. Trazendo as pessoas queridas para perto, dividindo a mesa, celebrando a vida.

Penso que não quero qualquer coisa de volta, porque a resposta não está no passado, está em mim. É de mim, do meu olhar, da minha física influência, que surge tudo, sempre. Quero apenas seguir em frente, sendo eu mesmo, fazendo o que sempre fiz.

E nada mais.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Nunca fomos tão felizes

Foram mulheres, amantes, meretrizes

Namoradas de tantos dias de luz iridescente
Foram sonho, paixões incandescentes
E, juntos, nunca – nunca! – fomos tão felizes

Foram amigas, amparo, companheiras
Dos dias difíceis como dos risonhos e floridos
Deram-se a mim em tudo e tão inteiras
Em favores e amores nunca esquecidos

Hoje eu sinto aqueles dias ainda vivos
E se pudesse daria uma vida a cada uma
Amo a todas guardando-as nos livros
Como as mãos no mar juntam a espuma

(São Paulo, fevereiro de 2017)

domingo, 31 de janeiro de 2021

Abel x Cuca: temos muito a aprender

A final de Palmeiras e Santos para mim foi decidida pelas lideranças. E foi uma aula de liderança.

Ambos os técnicos entendem de futebol e armaram bem o jogo para a final, que assim foi equilibrada, quase sem emoção, como um jogo de xadrez, até o final. O que decidiu o resultado foi a postura de cada treinador.

De um lado, o português Abel Ferreira. Com o uniforme do time, mais profissional, ele se coloca como um orientador dos jogadores, amigo, racional e ao mesmo tempo afetivo.

Do outro, Cuca. Usa uma camiseta de Nossa Senhora, como se o jogo dependesse de algum milagre. Parece mais um pai de santo que um técnico de futebol.

Ao esconder a bola que saiu para a lateral, tentando retardar o jogo aos 53 minutos do segundo tempo, foi punido pela malandragem com o cartão vermelho.

Na saída do tumulto, o Palmeiras, o time do técnico que não catimba o jogo, mais concentrado, conseguiu um lance perfeito. Fez o gol na hora H e foi campeão.

O esperado milagre mudou de lado? Creio que não. A postura favorece a ação.

Cuca é um grande técnico, um ser humano caloroso e uma pessoa de boas intenções. Mas sua postura na final prejudicou o time e a ele mesmo.

Nesses detalhes, dentro de uma competição tão equilibrada, se decide o destino. O técnico mais experiente foi o que mais teve a aprender com essa lição.

Já Abel é uma grata surpresa para o futebol brasileiro, assim como os jovens promovidos da base palmeirense, que, além de qualidade, mostraram ter estrela de campeões.

O jovem treinador português articula muito bem, é inteligente, aplicado, e se permite também ser emocional. Tem todos os ingredientes de uma liderança construtiva.

E ainda é humilde e realista. Ao chegar, admitiu que não tinha grande experiência e não fugia do fato de nunca ter ganhado um título.

Pois agora tem um. O mais fera, por sinal. 

Abel disse que no Brasil se tornou um treinador melhor e que aprendeu muito no confronto com o técnico do River, a quem dedicou seu novo estágio. 

Enfim, mostra a postura de alguém cuja principal qualidade é não fugir dos problemas, e sim encará-los e melhorar. Sem jogar responsabilidade para outros nem desmerecer ninguém.

Um bom exemplo do tipo de gente que produz um país onde há educação - mãe da sobriedade, do equilíbrio e do profissionalismo. Com quem nós, brasileiros, temos também muito a aprender.

sábado, 9 de janeiro de 2021

Conversa de adulto sobre crianças

Antigamente os pais não dividiam seus problemas com os filhos, especialmente assuntos de relacionamento. Era "conversa de adulto".

Mesmo a geração libertarista dos anos 1960, que fez uma grande revolução nos costumes, não mudou isso. Só fiquei sabendo de uma série de problemas de meus pais, por exemplo, quando já era, eu também, adulto.


Havia nisso um sentido de proteção, de preservar as crianças e a família. Hoje, penso que esse isolamento em relação aos problemas dos adultos deu à minha geração uma certa inocência. E não nos protegeu de nada. Ao contrário.

Acabamos descobrindo os problemas por conta própria, aprendendo com nossos erros. Pior, quando nos tornamos pais, ficamos também sem saber como lidar com essas coisas diante dos nossos filhos.

Concluo hoje, depois de muita ruminação, que começamos - eu e muitos da minha geração - a pensar sobre relacionamentos muito tarde, talvez tarde demais. E que isolar demais as crianças da realidade dos adultos não as protege, apenas ajuda a mantê-las mais despreparadas para o futuro.

Nunca fui muito a favor de tratar crianças de forma protetiva ou condescendente. Creio que nunca conversei muito com meu filho como se fosse criança, desde pequeno. Nunca fui de falar com ele feito bebê (papá casa agora, dã...). Nem me furto a discutir agora assuntos de adulto, da forma como penso, sem inventar uma "linguagem" ou um discurso para crianças, agora adolescentes, quando ele pergunta. 

Às vezes me questiono se isso está certo, mesmo. Ensinando é que a gente mais aprende. Mas escolhi esse caminho.

Estudamos e somos educados desde crianças para ter as ferramentas de trabalho. Porém, somos pouco educados para a vida afetiva, ou pelo menos para enfrentar seus problemas. Faltam as ferramentas.

Acho que uma criança merece o melhor do nosso entendimento, não o silêncio, nem uma resposta hermética, ou infantilizada. Crianças merecem respostas afetivas, tanto quanto racionais, que sejam sinceras e as coloquem no mundo real.

As crianças merecem entender as coisas como são. Isso não é ser contra o amor, nem contra a família. Entendo que elas precisam descobrir que é possível haver problemas mesmo quando há amor e afeto. E que problemas não eliminam amor e afeto. Ao contrário, é pelo amor que muitas coisas se resolvem.

Não podemos ter medo dos problemas nem de preparar crianças para enfrentá-los, quando forem adultos. Mas isso é o que eu acho. Gostaria muito de ouvir a opinião de psicólogos e outros profissionais dedicados ao assunto.

Sou apenas romancista, um investigador da alma humana, e não um cientista. Faço perguntas, sem sugerir respostas. Na minha própria vida, por vezes sigo mais a intuição que qualquer coisa que tenha lido ou aprendido. E vivo errando. Sei apenas que não posso deixar o coração insatisfeito.

Pensando bem, talvez eu seja romancista justamente por me sentir ainda inocente e despreparado para muito da malícia humana e das encrencas que a vida adulta nos apresenta. Não sei lidar ou lido mal com as imperfeições afetivas. Se o amor não é perfeito, parece que não há amor.

Francamente, essa é a fonte de muitos desastres. Gostaria de ter sido mais maduro para errar menos. E viver de coração satisfeito, mas não somente por lhe dar toda a liberdade, e sim tendo menos sofrimentos. É isso o que queremos para os filhos: que sejam felizes, que sofram menos. Mas resolvendo os problemas, e não se escondendo, como vítimas.

É possível aprender por conta própria, a experiência humana ensina, mas pode ser melhor quando temos um bom diálogo com os pais, o que depois de adulto pode ser feito com os filhos. Para mim, não há nada melhor que a verdade e a sinceridade, incluindo com as crianças. Elas são crianças, futuros adultos, e não bichinhos de estimação.

E, se queremos que sejam afetivamente seguras, é preciso que tenham estrutura emocional para lidar com a imperfeição do mundo real, onde se encontram, para grande tumulto, os corações.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Clarice: não há glória depois da morte

A escritora Clarice Lispector está na moda: suas frases profundas, reflexivas, quase haikais, viraram memes, espalharam-se pelas redes sociais, e fizeram dela, quem diria, a escritora mais quente do Brasil na era digital.

Ótimo. Contudo, chama a atenção que ela, em vida, nunca tenha sido tão conhecida, nem reconhecida. A meu ver, esse sucesso póstumo nos devia fazer pensar sobre como tratamos os escritores brasileiros, para não dizer os artistas em geral, quando eles ainda não são um nome no cemitério.

Clarice morreu na miséria e menosprezada pela crítica. No seu tempo, diziam que seus textos estavam no meio do caminho. Não se desenvolviam como romances ou contos, portanto não eram bons contos, nem se reduziam a poesia, portanto não era boa poesia. Nem uma coisa, nem outra, Clarice não era nada.

Ela não foi a única que sofreu. Para dar mais só um exemplo, Mario Quintana viveu de favor na velhice - habitava um quarto no hotel do jogador de futebol Paulo Roberto Falcão, que era seu admirador, e assim livrou o poeta gaúcho, literalmente, de ir para a sarjeta, em Porto Alegre. Clarice, nem esse suporte chegou a ter.

De forma geral, o brasileiro fala mal do brasileiro, mais ainda na literatura. Quais são os grandes escritores brasileiros vivos? Faça essa pergunta e você verá todo mundo engasgar. Será que entre 200 milhões de concidadãos não existe nenhum, ou isso é porque ninguém lê, nem fica sabendo?

Esse preconceito começa no próprio meio. Escritores não dão suporte e não promovem outros escritores. A crítica nunca vê o que há de bom na produção nacional - só faz criticar, talvez sugestionada pela própria palavra. Quem publica livro, como eu, ou faz música, do Zé da Esquina ao Caetano, já experimentou desse fel.

Fala-se do negro, do índio, do pobre, do gay, mas a maior discriminação no Brasil é contra a inteligência.

Não faz muito tempo que escrever, sobretudo ficção, se tornou uma atividade profissional, especialmente no Brasil. O romancista Guimarães Rosa era médico. Vinícius de Morais, diplomata. Antes, escrever era uma atividade diletante, que se fazia nas horas vagas.

Escrever no Brasil só se tornou uma atividade profissional e suficientemente remunerada nos anos 1970. Porém, aos poucos, a fase supostamente romântica em que aqueles que só escrevem estão condenados a passar fome está voltando.

A chegada do livro digital, facilmente copiável, vai destruindo toda a indústria do livro. Hoje há também acesso fácil a um universo de conteúdo, o que faz a disputa pelo leitor se tornar mais acirrada.

Há ainda uma proliferação de amadores que polui as estantes virtuais. Assim como na fotografia, todo mundo virou escritor, da noite para o dia. E qualquer um pode se "autopublicar".

E, pasmem, é justo nessa era de declínio da literatura como arte que se redescobre Clarice. Como ela já morreu, recebe agora uma chancela que aos vivos não se dá.

Pena que ela não tenha vivido para desfrutar do seu sucesso. Mas a realidade é essa. O brasileiro só dá valor ao brasileiro quando é tarde demais.

Nosso hábito de rebaixar a cultura brasileira é parte do nosso complexo de inferioridade geral. Adoramos qualquer porcaria que vem de fora e, assim, a cultura nacional enfrenta o descaso do mercado.

Há também pouquíssimos autores brasileiros vendidos no exterior, assim como há poucos filmes brasileiros com carreira internacional. E mesmo esses, como Paulo Coelho, são vilipendiados.

A cultura é a vanguarda de um povo. Coloca o país em todo o mundo, abre portas, caminhos, fronteiras. Mas, para que seja disseminada pelo planeta, precisa ser valorizada primeiro dentro do próprio país. Nada vai adiante com um povo que só fala mal de si mesmo e de seus intérpretes. Ou que só lhes dá valor quando é tarde demais.

A indústria cultural brasileira é de uma mediocridade explanatória sobre a nossa mediocridade geral. Para fazer filmes, ou séries baseadas em romances brasileiros, por exemplo, só ouço gente reclamando que o governo não dá dinheiro, como se a arte dependesse de governo.

A arte é independente, se for patrocinada pelo governo, chapa branca, deixa de ser crítica, deixa de ser arte. Existe um mercado global a ser explorado, mas para isso temos de ter outra mentalidade, sem paternalismo, com mais vontade, mais ambição.

Para expandir a literatura e a arte brasileiras, é preciso lhes dar o devido valor. Como fazem, como exceção nacional, os baianos, que têm uma bem azeitada e positiva indústria cultural, onde um ajuda o outro e se fazem sucessos como linha de série, especialmente na música. Os baianos são um exemplo a seguir, como não se vê em São Paulo, no Rio de Janeiro ou qualquer outro lugar do país.

É necessário que se promova o autor, e que o reconhecimento não venha depois que morrer. Para o bem da cultura brasileira, da valorização do país, e do nosso progresso como civilização. E dos autores e artistas, claro, porque a glória, na morte, deve ser algo muito chato.