A história da última entrevista de Paulo Francis
Eram cinco horas da manhã de uma quarta-feira de março de 1996, Nova York passara por uma das maiores nevascas de todos os tempos e o avião descia no aeroporto J.F. Kennedy numa escuridão tão completa que só percebi a aterrissagem quando o aparelho tocou o solo.
Embrulhado em meu cobertor, espiando pela janelinha como num submarino em grande profundidade, eu só via a luz da asa direita, transformada num halo difuso e pálido em meio à neblina. Tentei imaginar como o piloto chegara ali e taxiava sem enxergar a pista. Quem dera jornalistas tivessem pilotos automáticos para fazer o seu serviço, pensei, grogue de sono. Infelizmente, eu andava como aquele avião: praticamente às cegas.
Aos 32 anos, eu era editor executivo da revista Exame VIP, dirigida a um público com capacidade financeira para tomar vinhos, comer bem e aproveitar as recomendações de uma publicação empenhada em elevar seu estilo de vida.
Para mim, isso significava um emprego com um bom salário, alguns desfrutes e um regime de trabalho que me permitia, das seis até as dez e meia da manhã, quando partia para a redação, escrever secretamente meu primeiro romance, Filhos da Terra, que seria publicado dali a dois anos. Porém, gostava da revista; lá, além de vinhos, viagens e outros importantes supérfluos, tinha oportunidade de escrever sobre o que mais gostava – gente, suas idéias e a maneira com que levavam a vida.
Daquela feita, minha missão era produzir uma reportagem sobre três mosqueteiros do jornalismo brasileiro que viviam em Nova York: Paulo Francis, Lucas Mendes e Nelson Motta, personagens quase lendários que vinham dando brilho a um recente sucesso da televisão.
O Manhattan Connection, da GNT, era o primeiro programa a se destacar em cabo no Brasil, num tempo em que a audiência da TV por assinatura ainda engatinhava. Não era difícil entender as razões pelas quais atraíra a simpatia de um público crescente. Primeiro, tinha sido concebido como uma mesa-redonda, que provocava o debate acalorado entre seus participantes, como as tertúlias sobre futebol nas noites de domingo, tão ao gosto dos brasileiros.
Tratava de notícias do Brasil e do mundo a partir da Nova York, com novidades sobre a cidade e reflexões de ambição internacional, numa fase em que os brasileiros conheciam o mundo, estimulados pela abertura política e econômica que lhes permitia viajar para o exterior, usar finalmente cartões de crédito em viagens internacionais e conquistar um novo tipo de status.
Para completar, o programa atraía pela qualidade de seus participantes, cuja personalidade lhe dava o condimento. Com sua língua ferina e cultura enciclopédica, Paulo Francis era o polemista visceral. Fiel a si mesmo, e ao que escrevia nas suas colunas para o Estado de S. Paulo, O Globo e a TV Globo, disparava seus comentários sobre tudo e todos com a soda cáustica produzida por seu cérebro monumental.
Nelson Motta, com sua contagiante alegria de embaixador da música popular brasileira, era a figura ligeira e bem humorada que contribuía com sua visão cultural.
No papel de moderador da mesa, encarregado de trazer o fato puro e objetivo, com o talento que fazia dele o melhor texto da TV brasileira, Lucas Mendes tinha a tarefa adicional de colocar ordem nos companheiros de mesa.
Por fim, como um D’ Artagnan entre os três mosqueteiros, Caio Blinder - ex-editor da seção de internacional do jornal Folha de São Paulo - tentava fazer no meio daqueles astros da imprensa o difícil papel de sujeito normal.
Escrever sobre aquele pessoal não seria fácil: entrevistar gente de imprensa, dentro dos órgãos de imprensa, é sempre encarado como missão delicada, pois qualquer ferimento a suscetibilidades pode se transformar em retaliação. Além disso, havia um desafio adicional.
Meu chefe à época, Antonio Machado, alçado à direção do grupo Exame, responsável pelo lançamento de VIP como revista independente, era partidário das iniciativas ciclópicas. Queria uma reportagem de bastidores sobre o programa, a biografia completa daqueles jornalistas, e mais: uma foto de capa, com os três mosqueteiros abraçados diante de um táxi amarelo, que para ele simbolizava a vida na Big Apple.
Eu não gostara muito daquela ideia, que achava redundante; além disso, imaginava dificuldades para convencer os personagens, sobretudo Paulo Francis, que por temperamento provavelmente não se prestaria a encenações. No entanto, com Machado ninguém discutia. Quando ele tinha uma grande ideia, era uma grande ideia – qualquer manifestação contrária era insubordinação. E ponto.
Não foi difícil convencer Nelson Motta e Lucas Mendes ao telefone de que aquela matéria seria excelente para todos. Lucas, que além de apresentador do Manhattan Connection era seu produtor, buscava consolidar o prestígio do programa. Garantiu que daria toda ajuda possível. Nelsinho, o brasileiro cordial em pessoa, mostrou-se disposto a colaborar com alegria. Chegou, então, a vez de falar com Paulo Francis.
Somente telefonar para o velho monstro do jornalismo, implicando nessa expressão o tamanho do personagem e também o medo que eu sentia dele, representava para mim uma enormidade. A terrível verdade sobre o jornalismo é que o repórter sempre depende da boa vontade do entrevistado. E eu, rezando a missa para o Papa, receava ser demolido pela mesma agressividade com que Francis devastava seus adversários, espicaçava governantes e fazia inimigos em tal profusão que somente a vida no exílio em Nova York garantia sua integridade física.
Do alto dos seus 66 anos, Francis desfrutava como alguns personagens mitológicos de uma certa imunidade para dizer o que pensava a torto e a direito – especialmente, como eu temia, a palavra “não”. Mesmo assim, enchi-me de coragem e pedi a Helppy, apelido de Maria do Socorro, a secretária da redação, para fazer a chamada.
– O Paulo – me avisou ela, com grande intimidade, ao passar a ligação.
Peguei o telefone, disse alô, e minha saudação caiu no vazio. “Alô”, repeti, e nada. Do outro lado, um silêncio cortante vinha em resposta: Francis, no entanto, estava lá, porque eu podia ouvir ao longe, na rua, o barulho de uma sirene de bombeiro, polícia ou ambulância, como as que passam a toda hora nas ruas de Nova York. “Alô”, repeti pela terceira vez, angustiado, e, como nada obtivesse de retorno, acabei por desligar.
Pensei: já sei o que foi. Eu continuava com medo, mas lembrei de uma máxima, segundo a qual correr do leão é a melhor maneira de ser devorado: é preciso enfrentá-lo. Além disso, eu estava irritado; nem Paulo Francis podia fazer aquilo comigo.
Foram longas horas até o dia seguinte, quando fiz minha segunda tentativa. Pedi a Helppy que me cedesse o seu lugar. Sentei diante do telefone, disquei o DDD e o número. A voz inconfundível de Paulo Francis, mesmo ao pronunciar uma palavra de três letras, surgiu do aparelho.
- Alô.
- Alô – disse eu, firme. – Aqui é o Thales Guaracy, da revista VIP. - Primeiro, gostaria de saber por quê você não me atendeu ontem ao telefone.
- Eu não espero secretária.
- Bem, então eu gostaria de lhe dizer que, como jornalista, eu sempre atendo todo e qualquer telefonema, assim como faço minhas próprias ligações. Só pedi à Helppy que transferisse a chamada porque a linha da minha mesa não faz ligações internacionais. É também por essa razão que eu estou ligando hoje para você sentado no lugar da secretária.
O silêncio pairou novamente no ar do apartamento nova-iorquino de Francis; daquela vez, porém, senti que era porque ele estava desconcertado. Quando falou, foi com uma nota de irritada aceitação.
- Mas o que você quer, afinal?
Expliquei-lhe a ideia da matéria, sem mencionar o táxi amarelo, assunto delicado demais para nervos ainda à flor da pele. E disse que os outros integrantes do programa, estrategicamente consultados primeiro, já tinham concordado.
- Quando você vai pegar o avião?
- Se você estiver de acordo em dar a entrevista, amanhã – disse eu.
- Então venha. E quando chegar me ligue.
Apesar da confirmação, não fiquei tranquilo. A voz de Francis ainda me pareceu mais ameaçadora que o seu silêncio. Um fracasso, pelo volume de gastos que a operação toda implicava, incluindo a foto com o táxi amarelo em estúdio, seria funesto.
Por isso, eu insistira em explicar o que meu chefe queria a Lucas e Nelsinho, contando com a ajuda deles para convencer o mosqueteiro mais refratário. “Pode deixar que falo com ele”, garantira Nelsinho ao telefone. “Você vai ter tudo o que precisar”, assegurou Lucas.
Chamei Helppy e disse: “Mande comprar a passagem”.
Francis: esforço para enxergar |
Embrulhado em meu cobertor, espiando pela janelinha como num submarino em grande profundidade, eu só via a luz da asa direita, transformada num halo difuso e pálido em meio à neblina. Tentei imaginar como o piloto chegara ali e taxiava sem enxergar a pista. Quem dera jornalistas tivessem pilotos automáticos para fazer o seu serviço, pensei, grogue de sono. Infelizmente, eu andava como aquele avião: praticamente às cegas.
Aos 32 anos, eu era editor executivo da revista Exame VIP, dirigida a um público com capacidade financeira para tomar vinhos, comer bem e aproveitar as recomendações de uma publicação empenhada em elevar seu estilo de vida.
Para mim, isso significava um emprego com um bom salário, alguns desfrutes e um regime de trabalho que me permitia, das seis até as dez e meia da manhã, quando partia para a redação, escrever secretamente meu primeiro romance, Filhos da Terra, que seria publicado dali a dois anos. Porém, gostava da revista; lá, além de vinhos, viagens e outros importantes supérfluos, tinha oportunidade de escrever sobre o que mais gostava – gente, suas idéias e a maneira com que levavam a vida.
Daquela feita, minha missão era produzir uma reportagem sobre três mosqueteiros do jornalismo brasileiro que viviam em Nova York: Paulo Francis, Lucas Mendes e Nelson Motta, personagens quase lendários que vinham dando brilho a um recente sucesso da televisão.
O Manhattan Connection, da GNT, era o primeiro programa a se destacar em cabo no Brasil, num tempo em que a audiência da TV por assinatura ainda engatinhava. Não era difícil entender as razões pelas quais atraíra a simpatia de um público crescente. Primeiro, tinha sido concebido como uma mesa-redonda, que provocava o debate acalorado entre seus participantes, como as tertúlias sobre futebol nas noites de domingo, tão ao gosto dos brasileiros.
Tratava de notícias do Brasil e do mundo a partir da Nova York, com novidades sobre a cidade e reflexões de ambição internacional, numa fase em que os brasileiros conheciam o mundo, estimulados pela abertura política e econômica que lhes permitia viajar para o exterior, usar finalmente cartões de crédito em viagens internacionais e conquistar um novo tipo de status.
Para completar, o programa atraía pela qualidade de seus participantes, cuja personalidade lhe dava o condimento. Com sua língua ferina e cultura enciclopédica, Paulo Francis era o polemista visceral. Fiel a si mesmo, e ao que escrevia nas suas colunas para o Estado de S. Paulo, O Globo e a TV Globo, disparava seus comentários sobre tudo e todos com a soda cáustica produzida por seu cérebro monumental.
Nelson Motta, com sua contagiante alegria de embaixador da música popular brasileira, era a figura ligeira e bem humorada que contribuía com sua visão cultural.
No papel de moderador da mesa, encarregado de trazer o fato puro e objetivo, com o talento que fazia dele o melhor texto da TV brasileira, Lucas Mendes tinha a tarefa adicional de colocar ordem nos companheiros de mesa.
Por fim, como um D’ Artagnan entre os três mosqueteiros, Caio Blinder - ex-editor da seção de internacional do jornal Folha de São Paulo - tentava fazer no meio daqueles astros da imprensa o difícil papel de sujeito normal.
Escrever sobre aquele pessoal não seria fácil: entrevistar gente de imprensa, dentro dos órgãos de imprensa, é sempre encarado como missão delicada, pois qualquer ferimento a suscetibilidades pode se transformar em retaliação. Além disso, havia um desafio adicional.
Meu chefe à época, Antonio Machado, alçado à direção do grupo Exame, responsável pelo lançamento de VIP como revista independente, era partidário das iniciativas ciclópicas. Queria uma reportagem de bastidores sobre o programa, a biografia completa daqueles jornalistas, e mais: uma foto de capa, com os três mosqueteiros abraçados diante de um táxi amarelo, que para ele simbolizava a vida na Big Apple.
Eu não gostara muito daquela ideia, que achava redundante; além disso, imaginava dificuldades para convencer os personagens, sobretudo Paulo Francis, que por temperamento provavelmente não se prestaria a encenações. No entanto, com Machado ninguém discutia. Quando ele tinha uma grande ideia, era uma grande ideia – qualquer manifestação contrária era insubordinação. E ponto.
Não foi difícil convencer Nelson Motta e Lucas Mendes ao telefone de que aquela matéria seria excelente para todos. Lucas, que além de apresentador do Manhattan Connection era seu produtor, buscava consolidar o prestígio do programa. Garantiu que daria toda ajuda possível. Nelsinho, o brasileiro cordial em pessoa, mostrou-se disposto a colaborar com alegria. Chegou, então, a vez de falar com Paulo Francis.
Somente telefonar para o velho monstro do jornalismo, implicando nessa expressão o tamanho do personagem e também o medo que eu sentia dele, representava para mim uma enormidade. A terrível verdade sobre o jornalismo é que o repórter sempre depende da boa vontade do entrevistado. E eu, rezando a missa para o Papa, receava ser demolido pela mesma agressividade com que Francis devastava seus adversários, espicaçava governantes e fazia inimigos em tal profusão que somente a vida no exílio em Nova York garantia sua integridade física.
Do alto dos seus 66 anos, Francis desfrutava como alguns personagens mitológicos de uma certa imunidade para dizer o que pensava a torto e a direito – especialmente, como eu temia, a palavra “não”. Mesmo assim, enchi-me de coragem e pedi a Helppy, apelido de Maria do Socorro, a secretária da redação, para fazer a chamada.
– O Paulo – me avisou ela, com grande intimidade, ao passar a ligação.
Peguei o telefone, disse alô, e minha saudação caiu no vazio. “Alô”, repeti, e nada. Do outro lado, um silêncio cortante vinha em resposta: Francis, no entanto, estava lá, porque eu podia ouvir ao longe, na rua, o barulho de uma sirene de bombeiro, polícia ou ambulância, como as que passam a toda hora nas ruas de Nova York. “Alô”, repeti pela terceira vez, angustiado, e, como nada obtivesse de retorno, acabei por desligar.
Pensei: já sei o que foi. Eu continuava com medo, mas lembrei de uma máxima, segundo a qual correr do leão é a melhor maneira de ser devorado: é preciso enfrentá-lo. Além disso, eu estava irritado; nem Paulo Francis podia fazer aquilo comigo.
Foram longas horas até o dia seguinte, quando fiz minha segunda tentativa. Pedi a Helppy que me cedesse o seu lugar. Sentei diante do telefone, disquei o DDD e o número. A voz inconfundível de Paulo Francis, mesmo ao pronunciar uma palavra de três letras, surgiu do aparelho.
- Alô.
- Alô – disse eu, firme. – Aqui é o Thales Guaracy, da revista VIP. - Primeiro, gostaria de saber por quê você não me atendeu ontem ao telefone.
- Eu não espero secretária.
- Bem, então eu gostaria de lhe dizer que, como jornalista, eu sempre atendo todo e qualquer telefonema, assim como faço minhas próprias ligações. Só pedi à Helppy que transferisse a chamada porque a linha da minha mesa não faz ligações internacionais. É também por essa razão que eu estou ligando hoje para você sentado no lugar da secretária.
O silêncio pairou novamente no ar do apartamento nova-iorquino de Francis; daquela vez, porém, senti que era porque ele estava desconcertado. Quando falou, foi com uma nota de irritada aceitação.
- Mas o que você quer, afinal?
Expliquei-lhe a ideia da matéria, sem mencionar o táxi amarelo, assunto delicado demais para nervos ainda à flor da pele. E disse que os outros integrantes do programa, estrategicamente consultados primeiro, já tinham concordado.
- Quando você vai pegar o avião?
- Se você estiver de acordo em dar a entrevista, amanhã – disse eu.
- Então venha. E quando chegar me ligue.
Apesar da confirmação, não fiquei tranquilo. A voz de Francis ainda me pareceu mais ameaçadora que o seu silêncio. Um fracasso, pelo volume de gastos que a operação toda implicava, incluindo a foto com o táxi amarelo em estúdio, seria funesto.
Por isso, eu insistira em explicar o que meu chefe queria a Lucas e Nelsinho, contando com a ajuda deles para convencer o mosqueteiro mais refratário. “Pode deixar que falo com ele”, garantira Nelsinho ao telefone. “Você vai ter tudo o que precisar”, assegurou Lucas.
Chamei Helppy e disse: “Mande comprar a passagem”.
Minhas preocupações se juntavam ao jet lag quando desembarquei do avião em Nova York num finger aonde penetrava um frio antártico. O táxi deslizou pelas avenidas desertas do Brooklyn enquanto as luzes de Manhattan mais adiante brilhavam como um mosaico enfumaçado pela escuridão e a neblina. Pelas ruas planas da ilha, adormecidas naquele horário, montanhas de neve e sacos de plástico negro deixados por uma greve dos lixeiros se acumulavam nas calçadas.
Eram pouco mais de sete horas quando entrei no Algonquin, o velho hotel que naquele tempo pertencia à rede Caesar Park, da brasileira Shieko Aoki, e por isso oferecia descontos para empresas nacionais.
Entrei no saguão afamado pelas reuniões que no passado tinham abrigado a escritora Dorothy Parker e os membros da sua Round Table; suas confortáveis poltronas pareciam ainda mais acolhedoras naquela manhã fria e a gatinha que habitava o lugar, uma de suas tradições, enrolava-se a um canto. Apresentei meu voucher no balcão.
Era cedo demais: o quarto só estaria disponível às nove horas. Tomei meu café da manhã no pequeno restaurante do hotel, até poder levar minha malinha para o apartamento de simplicidade austera, com suas paredes brancas e cama de madeira escura.
Depois de deixar a mala em um canto, fui direto ao telefone. Pensava no que Francis dissera (“ligue assim que chegar”). Ainda não eram dez da manhã, hora considerada precoce pela maioria dos jornalistas. Contudo, obedeci às instruções: fiz a ligação. Para minha surpresa, ele atendeu o aparelho de imediato – e parecia de bom humor.
- Chegou? – perguntou ele.
- Sim.
- Então me encontre no 230 East 63. Meio dia.
A discussão que eu tivera com Francis sobre jornalistas, telefones e secretárias surtira um efeito maior do que eu imaginara: aparentemente, naquela manobra arriscada, eu ganhara o seu respeito. Espantado pela maneira como o que parecia mais difícil se tornava o mais fácil, cinco minutos antes do meio dia eu me encontrava no endereço indicado, uma cantina italiana no Upper East Side.
O Bravo Gianni tinha um grande aquário na entrada, como os estabelecimentos decadentes que eu conhecia da minha infância quando almoçava com meus pais no Bixiga, em São Paulo. Estava vazio, não por causa do horário, mas porque, como eu veria em breve, pouca gente almoçava lá – incluindo nessa lista alguns brasileiros que tinham feito daquele lugar, muito graças a Francis, um ponto de encontro.
Quando disse ao garçom quem encontraria ali, ele me levou a uma mesa de canto, redonda, cercada por uma poltrona de couro, a preferida do seu cliente habitual.
Francis surgiu meio dia em ponto, com um chapeuzinho estilo inglês, sobretudo preto cobrindo o terno escuro de lã e gravata verde: parecia um duende gigante, atrás dos óculos de lentes grossas, que deformavam ainda mais seus olhos esbugalhados.
- Olá, Guaracy.
Sentou-se ao meu lado; pouco olhava na minha direção, mas parecia de uma extraordinária afabilidade para quem, até há pouco tempo, sequer tinha vontade de me dizer alô ao telefone.
- Este é o meu restaurante preferido em Nova York – foi dizendo ele. - Não essa Nova York, que não é Nova York, mas esse quadrilátero aqui, onde ficam minha casa, o Bravo Gianni e a TV Globo. Essa é a verdadeira e única Manhattan, eu nunca saio desse quadrado, seria uma grande perda de tempo.
Contou então sentir muita falta de Elio Gaspari, seu grande companheiro de tertúlias, que há um ano deixara Nova York, onde ocupara o posto de correspondente da revista Veja. Havia em Francis um certo fastio, ou uma melancolia de um tempo em que achava ter a única pessoa no mundo inteligente o bastante para conversar com ele.
Almoçava com Gaspari no Bravo Gianni, naquela mesma mesa onde estávamos sentados, e dali eles saíam para caminhadas de até “quarenta quarteirões”, nas quais mantinham a forma física e praticavam seu esporte preferido, definido por Francis como a “observação dos “loucos”.
- Essa é a coisa mais engraçada de Nova York - disse. - Você desce pela Terceira Avenida e vai vendo os loucos. Eles se modernizaram e agora têm até microfone com speakers para gritar maluquices mais alto.
- Olá, Guaracy.
Sentou-se ao meu lado; pouco olhava na minha direção, mas parecia de uma extraordinária afabilidade para quem, até há pouco tempo, sequer tinha vontade de me dizer alô ao telefone.
- Este é o meu restaurante preferido em Nova York – foi dizendo ele. - Não essa Nova York, que não é Nova York, mas esse quadrilátero aqui, onde ficam minha casa, o Bravo Gianni e a TV Globo. Essa é a verdadeira e única Manhattan, eu nunca saio desse quadrado, seria uma grande perda de tempo.
Contou então sentir muita falta de Elio Gaspari, seu grande companheiro de tertúlias, que há um ano deixara Nova York, onde ocupara o posto de correspondente da revista Veja. Havia em Francis um certo fastio, ou uma melancolia de um tempo em que achava ter a única pessoa no mundo inteligente o bastante para conversar com ele.
Almoçava com Gaspari no Bravo Gianni, naquela mesma mesa onde estávamos sentados, e dali eles saíam para caminhadas de até “quarenta quarteirões”, nas quais mantinham a forma física e praticavam seu esporte preferido, definido por Francis como a “observação dos “loucos”.
- Essa é a coisa mais engraçada de Nova York - disse. - Você desce pela Terceira Avenida e vai vendo os loucos. Eles se modernizaram e agora têm até microfone com speakers para gritar maluquices mais alto.
Passavam também pela Quinta Avenida, na altura da Rua 56, reduto de grifes como a Tiffany’s, que Francis classificava como a “maior esquina do mundo”. “O Elio dizia como piada que essa é a região com a maior concentração de mulheres bonitas do planeta. Elas vão lá depois de velhas para lembrar como eram e ficar espiando as mais novas”, explicou.
Pedimos a comida – pasta – e o dono do restaurante, Gianni em pessoa, um italiano de cabeleira branca, apareceu para dar um alô. Tinha estado em viagem, explicou, num inglês macarrônico, e para provar que fugira à nevasca levantou a camisa até a altura do peito, deixando à vista sua barriga de chope, transformada em uma bola alaranjada.
Pedimos a comida – pasta – e o dono do restaurante, Gianni em pessoa, um italiano de cabeleira branca, apareceu para dar um alô. Tinha estado em viagem, explicou, num inglês macarrônico, e para provar que fugira à nevasca levantou a camisa até a altura do peito, deixando à vista sua barriga de chope, transformada em uma bola alaranjada.
“Estava na República Dominicana, tomando sol”, disse ele, satisfeito. “Desde 1978 eu não via uma nevasca assim”, disse Francis. “Desde 1961”, corrigiu Gianni. “Para mim, esse foi um ano de duas tempestades: a neve e o meu casamento.”
Depois que Gianni foi para a cozinha, comecei oficialmente a entrevista. Francis era, na conversa pessoal, exatamente a metralhadora giratória que aparecia em seus artigos de jornal, ou nos comentários feitos todas as noites para o Jornal da Globo. Não perdia oportunidade de falar mal de ninguém e enfiava um assunto no outro com a facilidade de um moleque que sai disparando seu estilingue na passarinhada.
Sentado no restaurante, dissertava com desenvoltura sobre assuntos variados, que estudara profundamente, do preço dos aluguéis em Nova York ao balé e a tecnologia das bombas atômicas. Chegara a fazer, segundo explicara, um curso a respeito, que o deixara preparado para ser um agente da CIA.
Com seu porte de aristocrata, Francis sempre morou em Nova York no Upper West Side, aquela região que considerava a única habitável na cidade, desde que se mudara para lá. Ocupava um apartamento na rua 47 com a Segunda Avenida, a dez quarteirões de caminhada do antigo escritório da Rede Globo, na Terceira Avenida com a 54.
“Para morar em Nova York, e aproveitar tudo de bom que a cidade oferece, é preciso ganhar pelo menos 10 mil dólares por mês”, disse. “Aqui não se aluga um apartamento por menos de 2 000 dólares. Eu pago menos que isso, mas essa foi uma galinha morta que só encontra quem mora aqui há anos.”
Entramos no terreno mais pessoal. Francis falou da sua infância e de como seu pai parecia sempre preocupado em que ele não virasse um vagabundo. Para “fazer alguma coisa” alistou-se como figurante num grupo de teatro, dirigido por Paschoal Carlos Magno. Foi Paschoal, que achou impronunciável seu nome de batismo (Franz Paulo Trannin Heilborn), quem lhe deu o pseudônimo de Paulo Francis.
“Eu achava que ia ficar segurando uma espada no palco, mas acabei fazendo seis papéis”, contou ele. “Num DC-3, avião então utilizado pelos correios, e com o auxílio de Getúlio Vargas, que deu metade das passagens, porque político só dá as coisas pela metade, fizemos uma turnê pelo Brasil. Sou, por isso, um dos poucos atores que representou em Teresina.”
Francis passou de ator a diretor, de diretor a crítico, tornando-se colunista de artes em meados da década de 1960, seu caminho de entrada na imprensa, logo ampliado para a política, até escrever a partir de 1977 a coluna no jornal Folha de S. Paulo que o projetou ainda mais.
Impunha seu crivo sobre tudo, do último romance da moda ao presidente da República, como se fosse uma autoridade superior. Explicou-me seu gosto pela leitura, o empenho com se fizera um bem sucedido autodidata e a importância da vida introspectiva, levando-me a acreditar que havia na metralhadora Francis um fundo psicológico mais profundo do que eu pudera imaginar.
Apanhou os óculos de fundo de garrafa, segurou-os na concha das mãos, examinando-os como um passarinho ferido. Era, no entanto, como se visse além deles, através da toalha branca da mesa; olhava a si mesmo, ou um passado com recordações capazes de machucar.
- Você sabe – disse ele, num murmúrio, - os meus olhos são ruins.
Explicou-me sua quase cegueira; havia no seu relato sobre aquele dado biológico um extraordinário peso, como se tudo o que fizera na vida fosse sempre um esforço supremo para enxergar, no sentido figurado e literal.
Essencialmente, Francis era o tipo de homem que passara a vida lutando contra as limitações, as impossibilidades, o que me fez imaginar se a sua resistência, desde o tempo em que tivera de sair do Brasil para não ser preso como comunista durante o regime militar, em 1971, era a filosofia de lutar sempre contra a corrente.
Nos artigos que escrevia, na sua postura, havia algo muito próprio da imagem que eu fazia de um jornalista ideal. Além disso, por trás do homem que levava a razão a extremos, surgia o sentimentalismo mais radical. Como exilado, Francis se sentia traído pelo seu próprio país, a ponto de nunca mais voltar. Ao mesmo tempo, como o filho rejeitado pelos pais, gostava demais do Brasil, ao ponto da paixão.
Talvez pela distância, ou pela saudade, poucos discutem a política e o Brasil tanto quanto os expatriados. Do seu posto, como um Diógenes com sua lanterna acesa, Francis procurava extrair da sua quase cegueira física uma visão de maior alcance que pudesse realmente ajudar o país. No entardecer da vida, era ainda um idealista incansável.
Para defender suas ideias, não dispensava a criação de inimigos, esporte apurado pela sua natureza rabugenta e seu temperamento ciclotímico. No entanto, ali, na minha frente, colocando os óculos no nariz para receber o prato de macarrão que chegava à mesa, como a bonança no olho do furacão, eu vi o melhor Francis.
Pensei que, por alguma razão, a maneira como eu o enfrentara ao telefone não apenas fizera com que ele passasse a me respeitar, como de certa forma o reaproximara de si mesmo: a essência do que é ser um jornalista.
Quando terminamos o almoço, eu já não tinha mais perguntas. Francis fez questão de pagar a conta. Eu lhe garanti que o dinheiro não sairia do meu bolso, seria pago pela revista para a qual eu trabalhava. Mesmo assim, com autoridade, e uma gentileza ainda mais gentil, por ser desnecessária, não me deixou colocar a mão no bolso.
Depois que Gianni foi para a cozinha, comecei oficialmente a entrevista. Francis era, na conversa pessoal, exatamente a metralhadora giratória que aparecia em seus artigos de jornal, ou nos comentários feitos todas as noites para o Jornal da Globo. Não perdia oportunidade de falar mal de ninguém e enfiava um assunto no outro com a facilidade de um moleque que sai disparando seu estilingue na passarinhada.
Sentado no restaurante, dissertava com desenvoltura sobre assuntos variados, que estudara profundamente, do preço dos aluguéis em Nova York ao balé e a tecnologia das bombas atômicas. Chegara a fazer, segundo explicara, um curso a respeito, que o deixara preparado para ser um agente da CIA.
Com seu porte de aristocrata, Francis sempre morou em Nova York no Upper West Side, aquela região que considerava a única habitável na cidade, desde que se mudara para lá. Ocupava um apartamento na rua 47 com a Segunda Avenida, a dez quarteirões de caminhada do antigo escritório da Rede Globo, na Terceira Avenida com a 54.
“Para morar em Nova York, e aproveitar tudo de bom que a cidade oferece, é preciso ganhar pelo menos 10 mil dólares por mês”, disse. “Aqui não se aluga um apartamento por menos de 2 000 dólares. Eu pago menos que isso, mas essa foi uma galinha morta que só encontra quem mora aqui há anos.”
Entramos no terreno mais pessoal. Francis falou da sua infância e de como seu pai parecia sempre preocupado em que ele não virasse um vagabundo. Para “fazer alguma coisa” alistou-se como figurante num grupo de teatro, dirigido por Paschoal Carlos Magno. Foi Paschoal, que achou impronunciável seu nome de batismo (Franz Paulo Trannin Heilborn), quem lhe deu o pseudônimo de Paulo Francis.
“Eu achava que ia ficar segurando uma espada no palco, mas acabei fazendo seis papéis”, contou ele. “Num DC-3, avião então utilizado pelos correios, e com o auxílio de Getúlio Vargas, que deu metade das passagens, porque político só dá as coisas pela metade, fizemos uma turnê pelo Brasil. Sou, por isso, um dos poucos atores que representou em Teresina.”
Francis passou de ator a diretor, de diretor a crítico, tornando-se colunista de artes em meados da década de 1960, seu caminho de entrada na imprensa, logo ampliado para a política, até escrever a partir de 1977 a coluna no jornal Folha de S. Paulo que o projetou ainda mais.
Impunha seu crivo sobre tudo, do último romance da moda ao presidente da República, como se fosse uma autoridade superior. Explicou-me seu gosto pela leitura, o empenho com se fizera um bem sucedido autodidata e a importância da vida introspectiva, levando-me a acreditar que havia na metralhadora Francis um fundo psicológico mais profundo do que eu pudera imaginar.
Apanhou os óculos de fundo de garrafa, segurou-os na concha das mãos, examinando-os como um passarinho ferido. Era, no entanto, como se visse além deles, através da toalha branca da mesa; olhava a si mesmo, ou um passado com recordações capazes de machucar.
- Você sabe – disse ele, num murmúrio, - os meus olhos são ruins.
Explicou-me sua quase cegueira; havia no seu relato sobre aquele dado biológico um extraordinário peso, como se tudo o que fizera na vida fosse sempre um esforço supremo para enxergar, no sentido figurado e literal.
Essencialmente, Francis era o tipo de homem que passara a vida lutando contra as limitações, as impossibilidades, o que me fez imaginar se a sua resistência, desde o tempo em que tivera de sair do Brasil para não ser preso como comunista durante o regime militar, em 1971, era a filosofia de lutar sempre contra a corrente.
Nos artigos que escrevia, na sua postura, havia algo muito próprio da imagem que eu fazia de um jornalista ideal. Além disso, por trás do homem que levava a razão a extremos, surgia o sentimentalismo mais radical. Como exilado, Francis se sentia traído pelo seu próprio país, a ponto de nunca mais voltar. Ao mesmo tempo, como o filho rejeitado pelos pais, gostava demais do Brasil, ao ponto da paixão.
Talvez pela distância, ou pela saudade, poucos discutem a política e o Brasil tanto quanto os expatriados. Do seu posto, como um Diógenes com sua lanterna acesa, Francis procurava extrair da sua quase cegueira física uma visão de maior alcance que pudesse realmente ajudar o país. No entardecer da vida, era ainda um idealista incansável.
Para defender suas ideias, não dispensava a criação de inimigos, esporte apurado pela sua natureza rabugenta e seu temperamento ciclotímico. No entanto, ali, na minha frente, colocando os óculos no nariz para receber o prato de macarrão que chegava à mesa, como a bonança no olho do furacão, eu vi o melhor Francis.
Pensei que, por alguma razão, a maneira como eu o enfrentara ao telefone não apenas fizera com que ele passasse a me respeitar, como de certa forma o reaproximara de si mesmo: a essência do que é ser um jornalista.
Quando terminamos o almoço, eu já não tinha mais perguntas. Francis fez questão de pagar a conta. Eu lhe garanti que o dinheiro não sairia do meu bolso, seria pago pela revista para a qual eu trabalhava. Mesmo assim, com autoridade, e uma gentileza ainda mais gentil, por ser desnecessária, não me deixou colocar a mão no bolso.
Saímos para a rua. Com o chapeuzinho de volta à cabeça, Francis permitiu que eu o acompanhasse a pé, descendo a Terceira Avenida em direção ao escritório da Rede Globo, onde gravaria sua coluna diária.
Depois de semanas de nevasca bíblica, naquele final de tarde uma nesga de sol iluminava a rua, refletindo-se nos montes cristalizados da neve suja que os caminhões tinham atulhado na calçada. Com sua entonação característica, Francis olhava para aquelas pilhas de lixo com ar reprovador, dissertando sobre a cidade, a sujeira e a vida, numa mistura que graças às suas cambalhotas retóricas acabava fazendo todo sentido.
- Em 1966 havia aqui um prefeito alto, louro, bonito como um ator de cinema; comia a mulherada toda - dizia.
- O nome dele era John Lindsay e ele enfrentou uma greve dos lixeiros como esta. A população não gostou nem um pouco da sujeira. Ele tentou se reeleger, não conseguiu e desapareceu da política: o sindicato dos lixeiros o derrubou. Se fosse no Brasil, onde os políticos podem roubar mais de 21 bilhões de dólares como fizeram com o Banespa (nota: o maior escândalo financeiro da época), não aconteceria nada. Tanto que estão todos lá, rindo da vida.
Logo adiante, Francis deu uma paradinha. Naquele trajeto a pé, costumava cruzar com os alunos de uma escola pública localizada no caminho. Apontou o estabelecimento, sem deixar de pontificar sobre aquele outro assunto, como todos os que o absorviam.
- As meninas dessa escola parecem todas umas prostitutas, e os garotos uns assaltantes – sentenciou. - É um horror.
Voltou à caminhada, ao prefeito e o lixo.
- Esse (Rudolph) Giuliani até que não é mau prefeito - disse Francis. - Apesar da greve dos lixeiros, tem obtido outros sucessos, como uma espetacular redução dos crimes em geral de 30% nos últimos dois anos.
Perguntei se ele achava que isso era resultado da eficiência da polícia, como ventilara a revista Time em recente reportagem. Francis, porém, sempre tinha outra teoria sobre tudo, muito mais original.
- Dizem isso, mas eu acho que é por causa da redução do consumo do crack - afirmou ele. - As pessoas perceberam como ele pode ser perigoso e estão mudando para outras drogas. Bem, muitos consumidores do crack também morreram.
Na porta da TV Globo, nos despedimos com um abraço cordial. Saí dali feliz, e aliviado: todo o peso da responsabilidade por aquela viagem desaparecera dos meus ombros. Mais: eu me sentia quase como uma criança que acabava de conquistar a amizade de seu ídolo do futebol.
Estava tão contente que me esquecera completamente do fato de não ter mencionado a fotografia com o táxi amarelo. Antes de partir, eu ainda fizera uma tentativa de demover meu chefe daquela idéia, mas Antonio Machado era tão teimoso quanto Paulo Francis: dizia que sem a foto não havia reportagem. Devido à mudança de humor de Francis, no entanto, eu já considerava quase realizado aquele milagre.
Passei o resto do dia fuçando as livrarias de Nova York, minha atividade preferida na cidade. Como estava perto da rua 53, naquela tarde fui primeiro até uma de que gostava muito: a Mistery Book Shop, pequena loja monotemática no subsolo de um edifício residencial, onde se encontrava a maior variedade possível de romances de detetive. Na manhã seguinte, eu trataria de organizar a sessão de fotografias e rumaria para meu segundo compromisso, previamente marcado: um almoço com Nelsinho Motta.
Faltava só um pedaço da missão. Naquela mesma tarde, fui ao escritório de Lucas Mendes, ao lado do estúdio onde era gravado o Manhattan Connection, no pedaço de um andar onde funcionava a agência Reuters em Nova York. Lá Lucas me deu informações sobre o programa e prometeu que no dia seguinte, depois da sessão de fotos que eu programava, me levaria também para almoçar, de modo que eu traçaria o perfil do meu último mosqueteiro e poderia comemorar o final daquela empreitada.
- Vou levá-lo também ao um lugar de que gosto muito – disse. – É aqui perto.
Combinamos que eu passaria ali novamente no dia seguinte às nove horas; parti contente, certo de que uma tarefa quase impossível começava a ser concluída. Naquela altura, tinha já contratado um fotógrafo brasileiro para fazer a foto, um estúdio no Greenwich Village e um produtor que alugara um táxi amarelo antigo, de 1946, em estado impecável – tudo, obviamente, a peso de ouro. Por recomendação de Nelsinho, tomei cuidados extras: aluguei uma limusine para apanhar o grupo de jornalistas no escritório de Lucas, uma maneira de agradar, sobretudo, Francis. Pelo menos ele não teria razões para colocar o transporte como objeção.
Na manhã da sexta-feira, a data crucial, estava tudo certo: o táxi amarelo já se encontrava no estúdio, fotógrafo, maquiador e produtor nos esperavam no local. Saltei da limusine preta que alugara como o responsável por uma produção de Hollywood.
Ao entrar no escritório de Lucas Mendes, porém, encontrei o grupo do Manhattan Connection reunido pesarosamente. Lucas mantinha-se mudo; Nelsinho olhava para a ponta dos sapatos; Caio Blinder, embora humildemente deixado de lado da minha pauta original, tentava ser solidário: procurava amenizar o clima de cemitério comentando banalidades. Sentei numa cadeira diante do grupo, como um acusado diante do tribunal.
- Ué, o que foi?
Por dois excruciantes segundos ninguém disse nada. Francis, no meio do grupo, então me olhou com certo ar enfarado.
- Sabe, você é um rapaz até simpático – ele começou a dizer. – Não é nada pessoal. Mas não gostei nem um pouco dessa história de fazer a fotografia diante do táxi amarelo. É uma bobagem muito grande.
Vi o meu mundo cair.
- Eu tentei falar com meu chefe, também não gosto da idéia, quem sabe ainda exista uma maneira de fazer a foto, tiramos o táxi e...
- Não – disse Francis. No meio do embaraço coletivo, aquela palavra soou de maneira brutal. – Eu estive pensando e não quero mais participar dessa reportagem. Da próxima vez que eu aparecer na imprensa, será como capa da revista Veja.
Naquele instante, aquilo só não soou como piada porque era a pá de cal no meu trabalho. Com o que me restava – uma certa dignidade – levantei, agradeci e saí, deixando atrás o vazio da consternação.
De um instante para outro, tudo o que eu fizera – as entrevistas, o estúdio, o fotógrafo, o táxi amarelo, a limusine preta, as estadias no Algonquin, a própria viagem – se transformava num fracasso dos mais caros que eu já tinha promovido em minha carreira. Pensei em Machado, e na minha própria cara, ao voltar de mãos vazias, após gastar alguns milhares de dólares. Era provável que fosse pagar a dívida com o meu emprego.
Emergindo da sua sala, Lucas Mendes me alcançou no corredor. Não havia mais entrevista, reportagem, fotografia, nada, mas disse que o almoço ainda estava de pé, se eu esperasse pelo fim da gravação do programa, antecipado para aproveitar a presença de todos.
Depois de alguns telefonemas em uma sala ao lado, em que dispensei todo o circo que havia acabado de armar, e autorizei o pagamento da conta em uma ligação para Help, esperei por Lucas meio escondido de vergonha, até que ele ficou livre para me levar a pé ao Wollenski’s Grill, um restaurante com ares de bistrô, na 49 com a Terceira.
Saímos da garoa fina que caía sobre Nova York para o pequeno hall do restaurante, no qual se entrava por uma porta de aço, como o refúgio de um doleiro. Lá dentro, fervia gente no bar antigo, apartado das mesas, localizadas num estreito mezanino em L. Galgamos a escada e sentamos numa mesa pequena, milagrosamente vaga naquele horário, depois de pendurar os casacos numa quina de escada. “Eu queria te levar num restaurante turco, mas aqui também é ótimo”, disse Lucas. “A especialidade é a sopa de ervilha”.
Pedimos as sopas e ali ele me falou de sua carreira desde os tempos em que era o correspondente da Rede Globo e da vida que construíra em Nova York. Temperamento inquieto do repórter, às vezes parecia distante, como se enquanto conversava já estivesse pensando no que fazer a seguir.
Como jornalista, Lucas sabia que eu voltaria sem minha reportagem, mas cumpriria sua palavra e até o final do almoço concedeu sua própria entrevista. Às três horas da tarde, quando saímos, caía uma tempestade fluvial, já prevista pela infalível metereologia americana.
Quando Lucas saltou do degrau e mergulhou na enxurrada, duvidosamente protegido por seu chapéu impermeável e uma capa de chuva, eu pensei que ele era mais que o melhor repórter de televisão do país: aquele mineirinho de coragem que atravessava a tromba d’água em direção ao outro lado da calçada e virava a esquina, premido pela necessidade urgente de ir ao banco, era também um cavalheiro.
*
Antes de voltar ao Brasil, passei na Mistery Bookshop para comprar os três volumes com as obras completas de Raymond Chandler, recém lançadas. Passei uma última vez no escritório de Lucas Mendes, entregando o presente, com a dedicatória de um admirador, nas mãos de Paulo Francis.
Embaraçado, em vez de agradecer ele fez uma longa dissertação sobre a excelência do criador do detetive Philip Marlowe. Eu voltava entre os escombros da minha missão, mas tivera a oportunidade de encontrar grandes figuras da minha profissão e queria demonstrar que para mim isso ainda era mais importante que tudo.
*
A matéria do Manhattan Connection não saiu. No seu lugar, escrevi um perfil de Nelsinho Motta, então o grande promotor do Brasil em Nova York. Reproduzia nossa conversa no Bice, restaurante alegre e caloroso de Manhattan, também escolhido por ele, e que tinha a sua cara. Nelsinho falava dos brasileiros que recebia na cidade, da igreja Gospel onde os levavas, dos negros maravilhosos com quem ele queria produzir discos e do caldo cultural novaiorquino.
Fez tanto sucesso a capa de VIP que o Bice encheu de brasileiros e mais tarde abriria um restaurante em São Paulo. A namorada de Nelsinho na época, Costanza Pascolato, me contou que ele nunca mais pagou a conta no restaurante, tal o afluxo de clientes brasileiros que apareciam por lá. Para mim, foi um alívio: saí daquela enrascada toda. E a entrevista com Francis permaneceria engavetada por anos a fio.
*
Paulo Francis morreu seis meses depois da nossa entrevista, em 4 de fevereiro de 1997, vítima de um ataque cardíaco fulminante em seu apartamento nova-iorquino.
Andava estressado com uma ação por danos morais movida por diretores da Petrobrás, encabeçados pelo então presidente da estatal, Joel Rennó, a quem Francis acusara no Manhattan Connection de formar “a maior quadrilha que já existiu no Brasil" e colocar o produto de subfaturamento em contas pessoais na Suíça – algo que obviamente não tinha como provar.
Assustara-o ainda mais o valor exorbitante da ação, movida na corte de Nova York: 100 milhões de dólares. Ciente de que a pendenga se arrastaria por anos, acreditava que quebraria somente com as despesas com advogados.
Ao partir, sem que pudesse imaginar, a sua vontade se realizava como uma profecia: na semana de sua morte, Paulo Francis sairia – sozinho – na capa de Veja. E fez com que a entrevista concedida a mim, a última de sua vida, permanecesse inédita, até a edição 110 da revista Cult, que lembrava de Francis, 10 anos após sua morte. E este relato, escrito em junho de 1996, permaneceu inédito. Até agora. (T.G.)
Depois de semanas de nevasca bíblica, naquele final de tarde uma nesga de sol iluminava a rua, refletindo-se nos montes cristalizados da neve suja que os caminhões tinham atulhado na calçada. Com sua entonação característica, Francis olhava para aquelas pilhas de lixo com ar reprovador, dissertando sobre a cidade, a sujeira e a vida, numa mistura que graças às suas cambalhotas retóricas acabava fazendo todo sentido.
- Em 1966 havia aqui um prefeito alto, louro, bonito como um ator de cinema; comia a mulherada toda - dizia.
- O nome dele era John Lindsay e ele enfrentou uma greve dos lixeiros como esta. A população não gostou nem um pouco da sujeira. Ele tentou se reeleger, não conseguiu e desapareceu da política: o sindicato dos lixeiros o derrubou. Se fosse no Brasil, onde os políticos podem roubar mais de 21 bilhões de dólares como fizeram com o Banespa (nota: o maior escândalo financeiro da época), não aconteceria nada. Tanto que estão todos lá, rindo da vida.
Logo adiante, Francis deu uma paradinha. Naquele trajeto a pé, costumava cruzar com os alunos de uma escola pública localizada no caminho. Apontou o estabelecimento, sem deixar de pontificar sobre aquele outro assunto, como todos os que o absorviam.
- As meninas dessa escola parecem todas umas prostitutas, e os garotos uns assaltantes – sentenciou. - É um horror.
Voltou à caminhada, ao prefeito e o lixo.
- Esse (Rudolph) Giuliani até que não é mau prefeito - disse Francis. - Apesar da greve dos lixeiros, tem obtido outros sucessos, como uma espetacular redução dos crimes em geral de 30% nos últimos dois anos.
Perguntei se ele achava que isso era resultado da eficiência da polícia, como ventilara a revista Time em recente reportagem. Francis, porém, sempre tinha outra teoria sobre tudo, muito mais original.
- Dizem isso, mas eu acho que é por causa da redução do consumo do crack - afirmou ele. - As pessoas perceberam como ele pode ser perigoso e estão mudando para outras drogas. Bem, muitos consumidores do crack também morreram.
Na porta da TV Globo, nos despedimos com um abraço cordial. Saí dali feliz, e aliviado: todo o peso da responsabilidade por aquela viagem desaparecera dos meus ombros. Mais: eu me sentia quase como uma criança que acabava de conquistar a amizade de seu ídolo do futebol.
Estava tão contente que me esquecera completamente do fato de não ter mencionado a fotografia com o táxi amarelo. Antes de partir, eu ainda fizera uma tentativa de demover meu chefe daquela idéia, mas Antonio Machado era tão teimoso quanto Paulo Francis: dizia que sem a foto não havia reportagem. Devido à mudança de humor de Francis, no entanto, eu já considerava quase realizado aquele milagre.
Passei o resto do dia fuçando as livrarias de Nova York, minha atividade preferida na cidade. Como estava perto da rua 53, naquela tarde fui primeiro até uma de que gostava muito: a Mistery Book Shop, pequena loja monotemática no subsolo de um edifício residencial, onde se encontrava a maior variedade possível de romances de detetive. Na manhã seguinte, eu trataria de organizar a sessão de fotografias e rumaria para meu segundo compromisso, previamente marcado: um almoço com Nelsinho Motta.
Faltava só um pedaço da missão. Naquela mesma tarde, fui ao escritório de Lucas Mendes, ao lado do estúdio onde era gravado o Manhattan Connection, no pedaço de um andar onde funcionava a agência Reuters em Nova York. Lá Lucas me deu informações sobre o programa e prometeu que no dia seguinte, depois da sessão de fotos que eu programava, me levaria também para almoçar, de modo que eu traçaria o perfil do meu último mosqueteiro e poderia comemorar o final daquela empreitada.
- Vou levá-lo também ao um lugar de que gosto muito – disse. – É aqui perto.
Combinamos que eu passaria ali novamente no dia seguinte às nove horas; parti contente, certo de que uma tarefa quase impossível começava a ser concluída. Naquela altura, tinha já contratado um fotógrafo brasileiro para fazer a foto, um estúdio no Greenwich Village e um produtor que alugara um táxi amarelo antigo, de 1946, em estado impecável – tudo, obviamente, a peso de ouro. Por recomendação de Nelsinho, tomei cuidados extras: aluguei uma limusine para apanhar o grupo de jornalistas no escritório de Lucas, uma maneira de agradar, sobretudo, Francis. Pelo menos ele não teria razões para colocar o transporte como objeção.
Na manhã da sexta-feira, a data crucial, estava tudo certo: o táxi amarelo já se encontrava no estúdio, fotógrafo, maquiador e produtor nos esperavam no local. Saltei da limusine preta que alugara como o responsável por uma produção de Hollywood.
Ao entrar no escritório de Lucas Mendes, porém, encontrei o grupo do Manhattan Connection reunido pesarosamente. Lucas mantinha-se mudo; Nelsinho olhava para a ponta dos sapatos; Caio Blinder, embora humildemente deixado de lado da minha pauta original, tentava ser solidário: procurava amenizar o clima de cemitério comentando banalidades. Sentei numa cadeira diante do grupo, como um acusado diante do tribunal.
- Ué, o que foi?
Por dois excruciantes segundos ninguém disse nada. Francis, no meio do grupo, então me olhou com certo ar enfarado.
- Sabe, você é um rapaz até simpático – ele começou a dizer. – Não é nada pessoal. Mas não gostei nem um pouco dessa história de fazer a fotografia diante do táxi amarelo. É uma bobagem muito grande.
Vi o meu mundo cair.
- Eu tentei falar com meu chefe, também não gosto da idéia, quem sabe ainda exista uma maneira de fazer a foto, tiramos o táxi e...
- Não – disse Francis. No meio do embaraço coletivo, aquela palavra soou de maneira brutal. – Eu estive pensando e não quero mais participar dessa reportagem. Da próxima vez que eu aparecer na imprensa, será como capa da revista Veja.
Naquele instante, aquilo só não soou como piada porque era a pá de cal no meu trabalho. Com o que me restava – uma certa dignidade – levantei, agradeci e saí, deixando atrás o vazio da consternação.
De um instante para outro, tudo o que eu fizera – as entrevistas, o estúdio, o fotógrafo, o táxi amarelo, a limusine preta, as estadias no Algonquin, a própria viagem – se transformava num fracasso dos mais caros que eu já tinha promovido em minha carreira. Pensei em Machado, e na minha própria cara, ao voltar de mãos vazias, após gastar alguns milhares de dólares. Era provável que fosse pagar a dívida com o meu emprego.
Emergindo da sua sala, Lucas Mendes me alcançou no corredor. Não havia mais entrevista, reportagem, fotografia, nada, mas disse que o almoço ainda estava de pé, se eu esperasse pelo fim da gravação do programa, antecipado para aproveitar a presença de todos.
Depois de alguns telefonemas em uma sala ao lado, em que dispensei todo o circo que havia acabado de armar, e autorizei o pagamento da conta em uma ligação para Help, esperei por Lucas meio escondido de vergonha, até que ele ficou livre para me levar a pé ao Wollenski’s Grill, um restaurante com ares de bistrô, na 49 com a Terceira.
Saímos da garoa fina que caía sobre Nova York para o pequeno hall do restaurante, no qual se entrava por uma porta de aço, como o refúgio de um doleiro. Lá dentro, fervia gente no bar antigo, apartado das mesas, localizadas num estreito mezanino em L. Galgamos a escada e sentamos numa mesa pequena, milagrosamente vaga naquele horário, depois de pendurar os casacos numa quina de escada. “Eu queria te levar num restaurante turco, mas aqui também é ótimo”, disse Lucas. “A especialidade é a sopa de ervilha”.
Pedimos as sopas e ali ele me falou de sua carreira desde os tempos em que era o correspondente da Rede Globo e da vida que construíra em Nova York. Temperamento inquieto do repórter, às vezes parecia distante, como se enquanto conversava já estivesse pensando no que fazer a seguir.
Como jornalista, Lucas sabia que eu voltaria sem minha reportagem, mas cumpriria sua palavra e até o final do almoço concedeu sua própria entrevista. Às três horas da tarde, quando saímos, caía uma tempestade fluvial, já prevista pela infalível metereologia americana.
Quando Lucas saltou do degrau e mergulhou na enxurrada, duvidosamente protegido por seu chapéu impermeável e uma capa de chuva, eu pensei que ele era mais que o melhor repórter de televisão do país: aquele mineirinho de coragem que atravessava a tromba d’água em direção ao outro lado da calçada e virava a esquina, premido pela necessidade urgente de ir ao banco, era também um cavalheiro.
*
Antes de voltar ao Brasil, passei na Mistery Bookshop para comprar os três volumes com as obras completas de Raymond Chandler, recém lançadas. Passei uma última vez no escritório de Lucas Mendes, entregando o presente, com a dedicatória de um admirador, nas mãos de Paulo Francis.
Embaraçado, em vez de agradecer ele fez uma longa dissertação sobre a excelência do criador do detetive Philip Marlowe. Eu voltava entre os escombros da minha missão, mas tivera a oportunidade de encontrar grandes figuras da minha profissão e queria demonstrar que para mim isso ainda era mais importante que tudo.
*
A matéria do Manhattan Connection não saiu. No seu lugar, escrevi um perfil de Nelsinho Motta, então o grande promotor do Brasil em Nova York. Reproduzia nossa conversa no Bice, restaurante alegre e caloroso de Manhattan, também escolhido por ele, e que tinha a sua cara. Nelsinho falava dos brasileiros que recebia na cidade, da igreja Gospel onde os levavas, dos negros maravilhosos com quem ele queria produzir discos e do caldo cultural novaiorquino.
Fez tanto sucesso a capa de VIP que o Bice encheu de brasileiros e mais tarde abriria um restaurante em São Paulo. A namorada de Nelsinho na época, Costanza Pascolato, me contou que ele nunca mais pagou a conta no restaurante, tal o afluxo de clientes brasileiros que apareciam por lá. Para mim, foi um alívio: saí daquela enrascada toda. E a entrevista com Francis permaneceria engavetada por anos a fio.
*
Paulo Francis morreu seis meses depois da nossa entrevista, em 4 de fevereiro de 1997, vítima de um ataque cardíaco fulminante em seu apartamento nova-iorquino.
Andava estressado com uma ação por danos morais movida por diretores da Petrobrás, encabeçados pelo então presidente da estatal, Joel Rennó, a quem Francis acusara no Manhattan Connection de formar “a maior quadrilha que já existiu no Brasil" e colocar o produto de subfaturamento em contas pessoais na Suíça – algo que obviamente não tinha como provar.
Assustara-o ainda mais o valor exorbitante da ação, movida na corte de Nova York: 100 milhões de dólares. Ciente de que a pendenga se arrastaria por anos, acreditava que quebraria somente com as despesas com advogados.
Ao partir, sem que pudesse imaginar, a sua vontade se realizava como uma profecia: na semana de sua morte, Paulo Francis sairia – sozinho – na capa de Veja. E fez com que a entrevista concedida a mim, a última de sua vida, permanecesse inédita, até a edição 110 da revista Cult, que lembrava de Francis, 10 anos após sua morte. E este relato, escrito em junho de 1996, permaneceu inédito. Até agora. (T.G.)
P- Alguém me disse que você passou um
apuro com o seu gato no fim do ano. É verdade?
F- Meu gato teve um enfarte. Eu
tinha ido a Roma, queria passar uma semana lá, depois outra em Veneza. Já tinha
ficado uma semana em Londres. Sozinho. Para relaxar um pouquinho. Não tenho
férias, né? Aí ele teve o enfarte! Tive de voltar.
P- E como estava o gato?
F- Ah, estava só meio de boca
mole... Levei-o a um hospital de animais, na rua 60, que parece desenho
animado... Todos aqueles bichos passando de maca... E lá cuidaram dele, está
fazendo tratamento. Nós (ele e a mulher,
Sonia Nolasco) temos três gatos. Esse é o Bundeca, um gatinho muito safado,
engraçado. Agora ele está bem, mas tem de tomar fluidos, três vezes por semana.
P- O resto da viagem foi cancelado?
F- Ué, que eu posso fazer? Não tenho
ningupém para resolver isso, assim, na última hora. Tenho três empregos, ela (a mulher) trabalha como uma louca....
Nós precisávamos de alguém trabalhando para nós, uma babysitter ou coisa assim.
Temos que ficar lá, vigiando o gato, dar injeção nele. Normalmente um amigo
meu, íntimo, passa uns tempos aqui em Nova York no fim do ano, e fica tomando
conta dos gatos enquanto viajamos. Não vou fazer um amigo meu cuidar de um gato
doente. Só que eu preciso dessas duas semanas de descanso. Trabalho muito,
escrevo muito. Tem a televisão (sua
coluna diária na TV Globo), mas o que me dá mais trabalho mesmo é escrever
para jornal (O Estado de São Paulo).
Tenho de me manter a par de tudo que está acontecendo... Este vai ser um ano de
eleição aqui...
P- Há quanto tempo você está em Nova
York?
F- Há quase vinte e cinco anos.
Cheguei em junho de 1971.
P- Você se lembra da primeira vez em
que pisou nesta cidade?
F- Isso foi há muito tempo. Pisei
aqui a primeira vez em setembro de 1954. Pouco depois do suicídio de Getúlio
Vargas. Vim tentar fazer um mestrado na área de teatro, na Universidade Columbia.
Eu me interessava muito por teatro. Me interesso, até hoje. Naquela época, era
paixão.
P- No período em que você ficou na
Universidade de Columbia já trabalhava?
F- Não. Meu pai morava aqui, num
apartamento na 55, West Side. Eu morava com ele. Só no verão, certa época,
trabalhei como vendedor numa livraria. Mas era fantástico. Certa vez eu estava
num bar – bebia muito, nessa época –, que tinha uma TV ligada. A televisão
estava apenas começando. Apareceu um sujeito todo estranho, chamado Elvis
Presley, no programa de Ed Sullivan. Foi assim que vi Elvis Presley, na sua
estréia, pela primeira e a última vez. Cinema custava 50 centavos, não tinha
inflação nenhuma. Começou a ter um pouquinho de inflação nos Estados Unidos com
a Guerra do Vietnã. Antes, a vida era baratíssima. Com 1 dólar você comia bife
de fígado com batatas fritas e uma Coca-cola.
P– Sua intenção era continuar a
fazer teatro?
F- Passei três anos estudando aqui
em Nova York, mas não fiz mestrado. Voltei ao Brasil para dar uma olhada.
Comecei a ver teatro, intensamente. Trabalhei como ator, um tempo, e diretor de
teatro. Acabei sendo crítico. Fui crítico de teatro no Diário Carioca e na
Última Hora.
P- Como foi sua experiência como
ator?
F- Eu fiz Frei Lourenço, do Romeu e
Julieta... (o carpinteiro Jacob)
Engstrand, no Espectro, de Ibsen...
P- Como você entrou para o teatro?
F- No Teatro de Estudantes, com o
Pascoal Carlos Magno, um grande animador do teatro brasileiro. Eu não tinha
nada que fazer, estava brigado com meu pai, que estava farto, furioso comigo,
porque não eu fazia nada. Aí vi um anúncio de que precisavam de pessoas para a
temporada de teatro no Norte e Nordeste. Eu sou do Rio, nunca tinha ido ao
Norte, ao Nordeste. Era muito novo, tinha 20 anos. E me apresentei para segurar
lança, essa coisas... Fazer alguns extras. Aí me ofereceram alguns papéis. Eu
dizia, mas como? Nunca tinha pensado em ser ator. Tenho esse problema de vista
(segura os óculos de aro de fundo de
garrafa, examina-os com seus olhos esbugalhados), é uma vista muito ruim.
Ensaiamos meses para essa temporada e fomos. O Getúlio Vargas deu (à companhia
de teatro) um avião DC-3, não se você já ouviu falar.
P- Já tomei esse avião no Quênia.
F- Está vendo? Pelo que me consta,
esse avião nunca caiu. No Brasil, era o avião do Correio Aéreo Nacional. O
Getúlio nos deu passagem e voávamos com o Correio. Na verdade o Getúlio, como
todo político, deu só metade das passagens. Nós fomos de Manaus a Recife. Fui
um dos poucos atores brasileiros que se apresentou em Teresina... Nos apresentamos
também em São Luís do Maranhão, Natal, João Pessoa. Nunca mais voltei. Eu tenho
um amigo agora que está fazendo um jornal diário em Manaus. É uma cidade muito
simpática, mas é muito calor. Meus óculos em Manaus ficavam embaçados.
Precisavam inventar um pára-brisa para óculos. Eu faria uma patente com isso e
ficaria rico lá. Com o dinheiro, iria morar em Cannes, na França.
P- Como você se tornou crítico?
F- É interessante porque nada do que
fiz foi planejado. Foi tudo ao sabor do momento. Essa história de crítico de
arte, com o qual eu me tornei bastante conhecido, por exemplo: eu não tinha a
menor intenção. Entrei para ajudar uns amigos meus que faziam críticas, para
ver se a gente moralizava o teatro brasileiro. Moralizar artisticamente, quero dizer:
parar de alojar espetáculo longe, por exemplo. Na Última Hora eu trabalhava
criticando televisão. Naquela época, em 1962, não havia nada para criticar na
TV (porque havia poucos programas).
Aí eu passei a me concentrar nos problemas políticos. E criticava os políticos.
O Samuel Wainer, o proprietário do jornal, gostou tanto que me botou como
crítico político. Foi acidental.
P- Como você voltou a morar em Nova
York?
F- Em 1964, quando houve o
acontecimento militar, quer dizer, quando foi derrubado o João Goulart e os
militares tomaram o poder, eu tinha uma coluna na Última Hora, onde atacava
muito os militares. Não exatamente os militares, mas eu defendia teses às quais
eles pareciam ser contrários. Perdi os empregos, fiquei três anos fazendo textos
anônimos. Depois voltei para o Correio da Manhã, aí fui preso. Até o Ato
Institucional Número 5, fui preso quatro vezes.
P- Ficou muito tempo na cadeia?
F- Dois meses, cada vez. Começou a
se tornar mais difícil depois que escrevi um artigo sobre minha infância no
Colégio São Bento e outro artigo sobre uma ópera de Wagner, que não tinham nada
a ver com a política brasileira. Pensei, bom, esses caras estão querendo me
impedir de ganhar a vida. Pedi para trabalhar no Pasquim, na Tribuna da
Imprensa e na televisão. Obtive uma bolsa de quinze meses da Fundação Ford. E
vim para cá em 1971.
P- Como você se instalou?
F- Eu tinha algum dinheiro. Morava
muito bem, no Greenwich Village. Isso porque fui também professor visitante da
Universidade de Nova York, com direito a morar num prédio de apartamentos da
instituição. Fiz lectures sobre
jornalismo e política. Depois a minha vida melhorou muito, quando passei a
trabalhar na revista Visão, que era de propriedade do Sahid Farah, um homem
inteligente lá de São Paulo. E em 1975 fui para a Folha de S. Paulo. Na época,
como o maior salário de correspondente da Folha. Primeiro eles me pagaram free lancer para que eu cobrisse a morte
do generalíssimo Franco, na Espanha, em 1975. Gostaram do meu trabalho e me
contrataram. Em 1981 entrei para a TV Globo. Em 1990 saí da Folha e fui para O
Estado.
P- Qual foi a sua reportagem mais
interessante?
F- Reportagem não é o meu forte, sou
mais um comentarista. Eu não sei, não. Estava muito orgulhoso em 1974 da
cobertura que eu fiz do escândalo de Watergate. Agora estou convencido de que
aquilo foi um lamentável equívoco. Watergate foi visto como um grande erro do
Richard Nixon e na verdade foi um erro idiota do partido, que a imprensa
aproveitou para destruir o presidente. Uma vez na vida, nesse caso, fui maria-vai-com-as-outras.
O Nixon é uma figura complexa e foi um dos maiores presidentes dos Estados
Unidos.
P- Você chegou a vê-lo pessoalmente alguma
vez?
F- Claro, várias vezes. Em certa
época fui do corpo de imprensa da Casa Branca. É um emprego para o qual você se
habilita. Eles fazem um exame e você entra. Viajei muito com o Jimmy Carter. Estive
em todas aquelas negociações de armas nucleares. Viajei com o Ronald Reagan. Aí
me enchi e parei.
P- E como era?
F- O Reagan era uma figura
controvertida, que tentou duas grandes coisas: baixar os impostos e f... com a
União Soviética. E as duas coisas ele conseguiu brilhantemente. A segunda ele
conseguiu de uma maneira muito interessante, da qual as pessoas não se dão
conta. Ele aumentou de tal maneira o orçamento militar, aprovado pelo
Congresso, que os soviéticos quebraram. A União Soviética tinha essa política
de acompanhar as despesas militares americanas. E com isso faliu. Não tinha
condições de sustentar uma corrida armamentista como aquela, porque a economia
de lá era como a da Colômbia, sem a cocaína, é claro.
P- Como foi a campanha de
desarmamento nuclear do Carter?
F- Foi uma loucura. Eu fiz um curso
de seis meses sobre armas nucleares. Com um homem chamado Paul Desmond, um dos
maiores especialistas e armas nucleares do mundo. Eram lectures, um abc sobre o assunto. No Brasil, ninguém tem a menor
idéia do que seja.
P- Você fez esse curso com que
objetivo?
F- Na verdade a minha estada aqui em
Nova York é um grande doutorado. Fiz vários cursos. A princípio eu era apenas
um amador dando palpites. Para entender de política exterior, e de outras
coisas, fiz curso. É como matemática, álgebra: você precisa saber a linguagem,
caso contrário você bóia, fica sem saber inteiramente o que está acontecendo. E
fala bobagens.
P- Onde você fazia esses cursos?
F- No Center For International
Affairs. A bomba que destruiu Hiroshima era de urânio. Em Nagasaki eles
testaram a de plutônio. Eram bombas sujas. Na década de 1950 houve o teste da
bomba de hidrogênio. A pessoas pensam que a bomba nuclear é uma bomba, mas não
é. É uma reação em cadeia. Havia um planejamento para uma bomba de cobalto, mas
eles acabaram desistindo porque ninguém podia prever até onde essa reação em
cadeia ia. Há duas coisas interessantes na história facinorosa da Humanidade. Uma
é o uso do gás venenoso na primeira guerra mundial. Causou tanto transtorno que
na segunda guerra fizeram um tratado para ninguém mais usá-la. Na Segunda
Guerra, com Hitler, Stálin e todo esse pessoal, ninguém usou, veja só. A outra coisa
que merece destaque é esse misterioso pacto entre a União Soviética e Estados
Unidos, que durou quarenta anos, após a Segunda Guerra. Com uma capacidade de
destruir cem vezes o mundo, ninguém teve coragem de iniciar uma conflagração.
P- Você se aprofundou em algo mais,
além de armas nucleares e política international?
F- Tudo me interessa. Ontem o
telescópio Hubble descobriu quarenta bilhões de galáxias. E durante muitos anos
se pensou que a única galáxia que havia era a nossa, a Via Láctea.
P- Outro dia, a propósito das
descobertas astronômicas, o Jornal Nacional deu uma manchete um tanto
engraçada: “O Universo é maior do que se pensava”...
F- Não sei então o que eles
pensavam, antes. O (Edwin) Hubble, um
astrônomo americano, foi o descobridor de que o universo está sempre se
expandido. Agora sabemos graças ao telescópio com o nome dele que existem 40
bilhões de galáxias. De todo modo, que diferença isso faz? Dez ou 50 bilhões, é
um tipo de espaço, tamanho e tempo que não tem nada a ver com nossas idéias, nossa
vida. É uma coisa infinita.
P- Você já passou algum susto na
cidade? Assalto ou coisa assim?
F- Nunca. Aliás, toda forma de crime
caiu em Nova York.
P- É por causa do policiamento?
F- É devido a muitas coisas. Um grande
número de pessoas desistiu de fumar crack, que leva as pessoas a atos de
violência. E muita gente que usava droga morreu. Mas sem dúvida o Rudolph
Giuliani (então prefeito de Nova York)
estabeleceu um policiamento razoável. Aqui tinha uma coisa chamada pan handler, um sujeito que pegava você
na rua para pedir uns trocados, um negócio muito chato. Se você não dava nada a
ele, era insultado. Esses mendigos insultavam mulheres, qualquer um. O Giuliani
acabou com isso. Diziam que ele não podia fazer tal coisa, que qualquer um tem
o direito de pedir dinheiro na rua. O prefeito não quis saber e botou esse
pessoal na cadeia. A queda de homicídios aconteceu também. Morria gente de
maneira estúpida.
P- Em Nova York, se ouve sirenes
ligadas o tempo todo. Você acha que isos faz parte do combate à criminalidade,
torna a polícia mais presente no cotidiano?
F- Isso é uma forma de
auto-expressão. Eles gostam de fazer barulho. Não sei se você viu na cinemateca
um filme do Jean Luc Godard chamado Weekend.
Um sujeito parado no tráfego tira uma arma de dentro do carro e começa a atirar
nas pessoas. Um dos meus sonhos secretos é me disfarçar e sair atirando numa
ambulância dessas. Eu durmo tarde. Vou deitar às três horas da manhã ouvindo
ambulância. Não tem tráfego que exija isso. Quer dizer, tem tráfego, porque
Nova York não dorme nunca. Mas não é suficiente para justificar a barulheira.
P- E do que você gosta mais aqui?
F- Há mais dinheiro em Nova York que
na Suíça. Dinheiro traz outras coisas. Tem museus, balé, teatro, tudo do bom e
do melhor.
P- E do mais caro, suponho.
F- Não. Nova York é a cidade mais
barata do primeiro mundo. A única coisa mais cara aqui, talvez, é o aluguel.
Você não pode morar onde nós estamos, razoavelmente, por menos de dois mil
dólares. Falo de Manhattan. Claro que você pode também morar no Queens, no
Brooklyn, no Bronx. O Queens é um bairro de classe média, o Brooklyn também.
Quase todo mundo que eu conheço mora fora de Manhattan. Com um aluguel desses,
a vida se torna impossível. Você paga um imposto de renda brutal aqui. Eu nunca
tive disso, mas meus colegas que melhor ganham na TV Globo, jornalistas, se
queixam amargamente porque deixam 40% do que ganham em impostos. Tem o imposto
geral, o INSS americano, que é o Social Security, o imposto estadual. Você
ganha 10 mil dólares por mês, recebe seis. Pode reaver algum dinheiro na
declaração, mas mesmo assim o imposto é alto.
P- O Brasil já não está longe disso,
não?
F- Qualquer imposto no Brasil é uma
doação. Porque não tem serviço público. Em São Paulo, que é 60% da renda
brasileira, o Tietê transborda e ninguém faz nada, é uma tristeza.
P- O que você gosta de fazer em Nova
York? Vem sempre aqui (ao Bravo Gianni)?
F- Este restaurante é uma espécie de
pub brasileiro. O Gianni, o proprietário, é uma pessoa muito simpática. Esteve
no Brasil há pouco tempo. E restaurante italiano há poucos iguais. O forte
daqui é o jantar, lotado. Vêm celebridades. Você vive muito bem nesta cidade.
Mas precisa ganhar 10 mil dólares por mês para viver sem se aporrinhar.
P- Por causa do aluguel?
F- Também. Eu pago menos, porque
arranjei uma galinha morta, mas isso é porque eu moro aqui há muitos anos. Você
pode comer fora, comprar um carro, ver os melhores espetáculos. Não é que não
possa viver por menos, mas para viver realmente sem ficar contando os tostões,
o leite das crianças, o aluguel, é isso. E hoje estão pagando isso na imprensa
brasileira, não? O real está valendo tanto... Soube de uma pessoa que foi
trabalhar como repórter na Folha de S. Paulo ganhando 15 mil dólares. O mercado
se diversifica. Você conhece o Hermano Henning? Saiu da Globo discutindo
propostas, cada uma delas mais incrível que a outra. Inclusive na TV do bispo (a TV Record, de Edir Macedo). Ele disse,
“quase aceitei, fiquei até meio sem graça”. Acabou indo para o SBT.
P- Você iria?
F- O problema do bispo é que, se
você vai trabalhar para ele, fica um pouco constrangido de tomar o dinheiro de
fé, né?
P- O que você gosta de fazer? Ainda
vai ao teatro?
F- Muito. Eu sou uma pessoa de gosto
católico: música, balé, pintura. Agora tem no Moma uma exposição de 160 quadros
do Mondrian. Já vi três vezes. E você
aqui tem todos os museus, é um paraíso. Tem o Citi Ballet, que é o balé do
Balanshin, outra maravilha. Eu não posso ver tudo (por causa do dinheiro), então passei minhas três últimas noites
vendo na televisão Orgulho e Preconceito, minissérie baseada no romance da Jane
Austin, uma maravilha. Cinema e televisão nesta cidade chama-se Jane Austin,
que morreu em 1817. Os filmes baseados em histórias delas hoje são o maior
sucesso, estão mais quentes que o Quentin Tarantino. As pessoas aqui lêem muito
mais os “scripts” dela: Senso e sensibilidade, Persuasão, Emma, que tem três
versões diferentes.
P- Que lugar de Nova York você
recomendaria para morar?
F- Com pequenas exceções do lado
oeste, deve-se morar do lado leste. Entre a Primeira Avenida e a Quinta. O lado
oeste é um lugar muito bonito, mas meio barra pesada. O lugar ideal é você
morar aqui mesmo onde nós estamos. Você pode ir a pé para os melhores cinemas,
os melhores restaurantes, ao teatro... Nova York é uma cidade muito agradável
de março a novembro. O clima é ameno. O verão tem alguns dias muito quentes,
mas em geral o calor não é muito intenso.
P- E essa nevasca aí fora?
F- Desde 1978 eu não vejo neve. Este
foi o pior inverno que já passei, uma coisa espantosa. Eu me lembro que morava
na Rua 47 e ia na 42, onde ficava a UPI, para entregar meus textos. Não havia
todo esse equipamento, computador, fax, etc. Então a UPI mandava meu material
para São Paulo. Ia a pé, caindo neve, estava muito difícil para pegar um táxi.
Um frio... Andava até lá as cinco quadras e, quando chegava, os caras me davam
um bourboun para ressuscitar. Que eu lembre, foi o pior inverno. Os
metereologistas ficam citando outras ocasiões, mas deve ter sido uma coisa
muito rápida, não marcou tanto.
P- Muita gente vem te visitar em
Nova York?
F- Só as pessoas que eu conheço,
porque não sou atração turística.
P- Eu digo jornalistas, por exemplo.
O Elio Gaspari não é seu amigo?
F- Olha, o Elio e eu nos divertimos
muito, quando ele morava em Nova York (como
correspondente da revista Veja). Nós almoçávamos aqui (no Bravo Gianni), daí dávamos uma volta de quarenta quarteirões
para afinar a barriga e ver os loucos. Os loucos são a maior atração de Nova
York. Saem gritando por aí. Tem louco que entrou na era da eletrônica e grita
de microfone.
P- Que roteiro vocês faziam?
F- Saíamos daqui para ir à Quinta
Avenida, na altura do. Central Park. Aí íamos andando pela Quinta até a confluência
com a 57, que é a maior esquina do mundo. Ali você vê as mulheres mais bonitas
do planeta. O Elio tem até uma piada ótima. Diz que as mulheres quando ficam
velhas passam lá para lembrar de quando eram gostosas e bonitas. Porque vêem as
outras, é claro.
P- Você ainda caminha?
F- É claro. Um dos maiores prazeres
de Nova York é poder andar sem ser assaltado. O Brasil chegou ao ponto de que
no Rio de Janeiro estão cobrando taxa para não te sequestrarem. Mandam um
recado: olha, você me manda 5 mil reais, caso contrário sequestro tua mulher.
Ninguém pode viver assim. Eu nasci no Rio, quando era a cidade mais cordial do
mundo. Aí começou na década de 1960 para 1970 essa política que gerou multidões
de pobres brasileiros e essas favelas criminosas.
P- Você voltaria a morar no Brasil?
F- O proprietário, aqui, o
Gianni, foi lá e voltou dizendo que não
dá. Uma das características da minha vida é que não planejo nada. Vir para cá
foi pelas circunstâncias da ditadura. Acho que inconscientemente eu esperava
que fosse acabar o regime militar e a gente pudesse voltar a uma vida normal no
Brasil. Mas em 1970, quando chegou aquele pessoal do (presidente Emilio Garrastazu) Médici... O Brasil estava bem, ganhou
a Copa do Mundo, crescimento econômico como nunca houve igual, de 11% ao ano, o
Delfim Netto era o Homem-Milagre... Mas de repente houve um arrastão, prenderam
Deus e o mundo... Decidi ficar no Brasil. E fui ficando.
P- Seu afastamento do Brasil então
foi também uma definição política?
F- Eu sei que na sua geração isso
não é muito comum, mas você faz um pequeno tour no horizonte para ver quantas
pessoas deram sua vida pelo comunismo, se sacrificaram. Mais adiante você vê
quantas pessoas deram suas vidas na guerra entre os católicos e os
protestantes. Talvez as melhores pessoas, ou muitas delas, tenham sido
destruídas por essas coisas que hoje nos parecem perda de tempo. Eu tenho
também esse lado, que é meio literário. Escrevi vários romances. É muito mais
forte que política. É meio misterioso.
P- O Manhattan Connection foi também
uma coincidência?
F- Eu fico fascinado com com essa
reação em cadeia de acidentes. Esse programa, por exemplo: as pessoas que vêm
do sul agora só falam nisso. Agradeço os cumprimentos, mas entrei no programa
por acaso. O Lucas Mendes, que mora aqui há uns trinta anos, estava saindo da
TV Globo e rearrumando a vida dele, com a TV Cultura. Resolveu fazer esse
programa e me convidou, mas puramente na esportiva. De repente tem uma
repercussão enorme...
P- Você acha que o sucesso do
programa se deveu ao debate?
F- O debate já existe na televisão. Os
telespectadores gostam é do informalismo. Televisão brasileira é muito fraque e
cartola. Não há um mínimo de informalismo. E numa TV a cabo você pode se soltar
muito mais. Ninguém pode se queixar daquilo que dizem da TV comercial, na qual
alguém invade a sua casa e diz algo que te ofende. Aqui nos Estados Unidos,
pouco a pouco, o cabo está comendo tudo. Eu só vejo TV a cabo. Das grandes
emissoras, eu só vejo os jornais. O jornal da ABC tenho que ver todo dia porque
o Jornal da Globo tem sua parte internacional tirada dali, temos os direitos de
reprodução.
P- A que horas você grava sua
coluna?
F- Às sete e pouco. Às vezes antes.
Dependendo do dia.
P- O que mais você recomendaria na
cidade?
F- O cenário do estúdio da TV Globo em
Nova York é o Empire State Building. Não vou lá há mais de 20 anos. Contudo, tem
uma hora maravilhosa em que você pode ir, à tardinha, quando a luz natural está
caindo e as luzes da cidade se acendem.
P- Bem, foi um grande prazer.
F- Sim, mas (saiba que esta entrevista) foi um acidente. Porque eu não tenho
tempo para essas coisas. Normalmente a minha vida é muito atrapalhada.