sábado, 22 de janeiro de 2022

Elzas e outras


A última vez que vi Elza foi na abertura de uma Flip, em Paraty, há alguns anos. Já estava debilitada e chegou carregada até o palco.

Eu estava na plateia  ao lado da Raissa Castro, editora da Verus, e lembro bem de tudo por causa de um incidente que muitas mulheres acham acontecer só com elas.

Durante o espetáculo, uma mulher, que devia cheirado ou bebido grande quantidade de alguma coisa, começou a dizer que queria me agarrar. E, a certa altura, passou literalmente por cima da Raissa, que estava sentada entre nós, e me agarrou mesmo, subindo por cima de mim como um macaco, tentando me beijar. O espetáculo meio que parou, naquela confusão. A mulher foi retirada de cima de mim à força, por um segurança. 

Aquilo deixou certo constrangimento no ar, mas pude ver o fim do show. Mesmo fragilizada, Elza continuava com sua poderosa voz e, sem sair da cadeira , galvanizava a plateia.

Coisas da vida de editor, que acaba vendo, ouvindo e passando por tudo - do belo ao bizarro. No fim, valeu por testemunhar duas coisas: como uma mulher pode ser e fazer tudo o que se atribui a homens, e a exibição de uma das maiores artistas brasileiras, capaz de provar que o esplendor não tem idade.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Um grande ano

Para mim, 2021 foi um ano maravilhoso.

Lancei dois livros para mim muito importantes. Xal, a história da menina de rua que vira líder de rebelião no presídio, é um livro chocante e, para mim, grande parábola dos desafios de hoje. A história de Adriana é um triste Brasil que o Brasil tem de resolver. E isso começa pela nossa conscientização.

A Era da Intolerância fala de outra das minhas grandes preocupações: a influência do mundo global sobre o nosso mundo particular. Fala das grandes transformações da nossa era.
Talvez seja um livro para ser lido daqui a vinte anos, mas, ao estudar para escrevê-lo, aprendi muito. 

Ele mudou minha maneira de ver a era contemporânea. E reafirma os valores da liberdade e da igualdade, minha razão de viver.

2021 foi também um ano de grandes encontros. Fiz um espetáculo de poesia e música no Porto. Em Portugal, fechei um negócio que me abre novas perspectivas. Conheci lugares e pessoas sensacionais. 

Viajei longe, no mundo e para dentro de mim mesmo.

Sobretudo, 2021 foi para mim um ano de amadurecimento extraordinário. Resultado de experiências nem sempre fáceis, descobri um novo e instigante caminho, que me faz ver de novo o futuro com alegria e entusiasmo.

O aprendizado e o auto conhecimento, que trazem a possibilidade de mudar tudo e construir um futuro melhor, fizeram de 2021 um ano revelador e, como consequência, de extraordinário impulso criativo. 

Escrevi mais dois livros, que me descortinam uma nova etapa da vida, e sobre os quais poderei falar em breve.

Dessa forma, estou muito otimista em relação a 2022. Não só por mim, mas pelo exemplo de que, às vezes depois de grande sofrimento, e apesar de perdas e decepções que deixam marcas fundas na vida, podem existir tempos ainda melhores.

Essa mudança só depende de nós. Não se pode esperar pelo que acontece em Brasília ou o que não depende da gente. O Brasil e o mundo começam por cada um.

Claro que ninguém faz nada sozinho. Por isso, quero agradecer aos muitos amigos e pessoas queridas que acompanharam de perto essa minha transformação e me deram um fundamental apoio este ano. Tiveram paciência comigo, me deram comida, me deram carinho, me deram abrigo e me deram o seu bem mais importante, que é a presença.

É bom ainda ter gente em que se possa confiar. É bom ter gente verdadeiramente ao seu lado. Não precisarei nomear ninguém aqui, pois essas pessoas sabem quem são. A elas um especial muito obrigado.

E a todos os meus votos de que em 2022 tenhamos um ano de realização de sonhos, com saúde e mais harmonia, duas preciosidades da vida que urgentemente precisamos resgatar.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Britânico lembra o Brasil do que é Brasil


O Brasil anda pra baixo, em crise econômica e de ânimo, desacreditado de si. Foi preciso um britânico para lembrar o Brasil do Brasil.

Lewis Hamilton, 7 vezes campeão mundial, teve neste neste domingo passado (13.nov.2021) o seu dia de Ayrton Senna. E o Brasil teve de volta o seu dia de Brasil.

Há vitórias que definem os melhores. Há vitórias que criam as lendas. Ontem, Hamilton foi Ayrton e foi o início da sua própria lenda.

Tomou punições, teve de largar em 20º no treino, acabou em 5º; punido de novo, largou em 10º e ganhou a corrida. Pegou a bandeira brasileira e levou-a tremulando na volta do triunfo, depois ao pódio. Emocionante, especialmente para quem já viu essa “cena” no passado, a começar por ele mesmo.

Foi preciso um piloto britânico de uma equipe alemã para lembrar o Brasil do que é o Brasil. Ou o que pode ser o Brasil.

O país de Ayrton, das vitórias impossíveis, o país do homem que não desiste, o país do homem que sai das cinzas e mantém acesa a esperança. Ontem o britânico Hamilton, pulsante como um brasileiro, foi Ayrton –e, repito, foi Brasil. Resta ao Brasil ser ele mesmo.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Garibaldi, Anita e uma cidade




Quando Giuseppe Garibaldi tomou Bolonha, na campanha de reunificação da Itália, entrou nas catedrais em pata de cavalo, contava meu avô José, por ouvir assim a história pelo pai dele, Mauro. 

Revirou as igrejas e nelas teria encontrado poços - pozzo razzore, dizia meu avô - com facas, cheios de ossos, todos de moças, que sumiam sem se saber até então onde iam parar.

Essa história, contada no meu romance Filhos da terra, sobre a imigração italiana no Brasil, pode ser ou não verdadeira, mas é no que os bolonheses daquele tempo acreditavam. 

O que explica muitas coisas: o anticlericalismo do bolonhês, sua forte politização e tendência para o anarquismo e o comunismo, ligados ao ateísmo, sua defesa da liberdade - a palavra que está junto ao leão no brasão da cidade - e seu amor a Garibaldi.

A figura de Garibaldi está presente em todas as cidades italianas, mas as histórias de meu avô me fizeram muito próximo desse personagem extraordinário, talvez o mais extraordinário da história, e eu sempre o associei a Bolonha. 

Garibaldi está também no meu romance Anita. E aqui, nessa estátua em Bolonha, que para mim tem um significado especial, porque é a cidade das histórias de família. Por coincidência, o primeiro lugar onde fiquei em Bolonha, hospedado a trabalho, foi no hotel logo atrás do monumento, o Tre Vecchi.

Em Bolonha, os Fiorini como meu avô locupletam as placas que homenageiam os partigiani mortos na segunda guerra. Estão no campo, onde lavraram a terra, na comida, que me fala da infância, na história.

Aqui, por tudo isso, eu fico muito sentimental. Especialmente quando sento à mesa, em qualquer restaurante, e me sinto de volta à cozinha de minha avó Dileta. #anitaoromance #filhosdaterra #livros #lendo

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Escrever é como fazer amor

Quando entregava um livro aos editores, Monteiro Lobato costumava colocar, antes do texto, um recado aos revisores: avisava quais eram os sinais utilizados na língua portuguesa. E os mandava colocar no texto, aonde quisessem.

Escrever não é saber pontuação, nem mesmo saber português. Escrever é pensar no teclado, imprimir as ideias. O trabalho é ter a informação e as ideias e desenvolvê-las.  As ideias se propagam de muitas maneiras, mas a mais elegante, eficaz, perene e influente é escrevendo.

Eu uso isso, verdade, como desculpa para todos os erros que cometo, num atentado não deliberado, mas não muito arrependido, ao bom português. Troco onde por aonde e vice-versa. Esqueço o "em" antes do "que". E por aí vai.

Conheço as regras, mas no fluxo acelerado do pensamento muitas vezes elas vão ficando para trás. E como sempre vem ideia atrás de ideia, o tempo para a revisão vai ficando para trás.

Talvez alguns estranhem a comparação, ou a achem de mau gosto, mas escrever é como fazer amor. Se você ficar pensando na parte mecânica do ato, como um engenheiro, e não um amante, a coisa não sai.

Escrever, fazer amor e dançar têm isso em comum. Fred Astaire certamente nunca pronunciou as palavras "dois pra cá, dois pra lá".

Se a ortografia não é minha arte, prezo ainda menos pela datilografia. Escrever não é datilografar. Cato milho com dois dedos de cada mão há mais de trinta anos trabalhando em jornalismo e escrevendo romances de 500 páginas. A
 invenção do corretor ortográfico é uma benção mas não resolve tudo.

Sei que minha estenografia digital é irritante, talvez deselegante para com a língua pátria, e uma complicação. O ideal é entregar o serviço perfeito, limpo, profissional. Porém, o cuidado com a língua é mais próprio do revisor, do professor ou do acadêmico.

E uma coisa é certa: quando o dançarino é talentoso, trabalhador, ou ambas as coisas, e as ideias fazem efeito, como o amor do bom amante, sempre aparece alguém disposto a ajudar.

sábado, 23 de outubro de 2021

Escrever, ou: o teatro de nós mesmos

O exercício de escrever é um processo de reflexão, do qual acabamos dependentes. Escrevemos não por vaidade, ou por exibicionismo, ou para ficar na posteridade, mas para viver. Seja como autor de livros de ficção como de não ficção, eu me obrigo primeiro a quebrar a casca da ostra, a encarar a verdade interior.  Sem isso, mergulho na tormenta.

Escrevendo, aceito da forma mais escancarada o que pessoalmente nunca faço: me expor. Escancarar as portas da alma, sem segredos, é uma forma de mudar, superar a dificuldade de estabelecer uma ponte para o mundo.

Ao escrever, ajudamos a nós mesmos; ao publicar o que escrevemos, a intenção é ajudar também os outros na mesma situação. O que vemos nos livros pode ser informação, ciência ou arte, mas em última análise é o aprendizado com a experiência humana, que dividimos uns com os outros. Ficção é assim também, com a diferença de que tratamos da matéria humana.

Aquele que abre o coração expia seu sofrimento em busca de redenção. Dá o primeiro passo para a admissão de que é um ser humano. Descobri, escrevendo, que, ao abrir os braços, em vez de nos rejeitar, os outros nos acolhem. Saber que não estamos sozinhos no mundo e receber esse retorno, tanto quanto dá-lo, traz um grande alívio.

Cedo ou tarde, perdemos a inocência; descobrimos que o amor pode trazer a dor e naveguei desde muito cedo em um mundo cheio de  ambiguidades, paradoxos e contradições. Vejo como o bem traz consigo também o mal, assim como mal pode trazer o bem; a realidade é uma comédia trágica. Escrever reflete tudo isso, é teatro: como ficção ou não, encenamos a nós mesmos, nossa perdição e nosso resgate.

 

Marília Gabriela: corações expostos

- Ai, ai.

Sim, era verdade: Marília Gabriela, 40 anos de prática no jornalismo (“que horror”, disse ela, ao fazer essa conta), estava com medo de uma entrevista.

É verdade que não era uma entrevista qualquer. Primeiro, porque ela - em maio de 2009 - estaria do outro lado do balcão, não como entrevistadora, mas como entrevistada. Segundo, seria uma entrevista ao vivo diante da plateia do Autores e Ideias, que acontecia uma vez por mês no auditório envidraçado da Livraria da Vila, no Shopping Cidade Jardim.

Além das perguntas do moderador – eu –, as pessoas poderiam fazer suas próprias perguntas. Ao ver o salão abarrotado, com os 100 lugares completos, mais uma porção de gente em pé, ela titubeou, mas só por um instante.

- Vamos lá -, cutuquei.

Sentada elegantemente diante da plateia, Marília começou me colocando contra a parede. depois de uma longa e complicada pergunta, disse, para espanto da plateia:

- Não entendi nada da sua pergunta.

Diabinha. Virei para a plateia, duzentas pessoas na expectativa do meu vexame.

- Alguém aí entendeu alguma coisa do que eu disse? Levante a mão.

Gargalhadas. E reformulei a questão.

Marília se impôs, primeiro graças ao traquejo profissional, depois com sua simpatia natural, quando ficou mais à vontade. Provocou o entrevistador (pobre de mim), respondeu a perguntas que envolvem o lançamento de seu livro e não fugiu das questões mais delicadas, nem mesmo as mais pessoais. Disse que escreveu Eu Que Amo Tanto da mesma forma que se interessa por todos os seus entrevistados, ou os personagens que faz no teatro ou em novelas – procurando respostas para si mesma.

Apenas pelo tema escolhido por ela, Eu Que Amo Tanto já era bastante revelador. Coleção de relatos em primeira pessoa de mulheres que sofrem por amor a um ponto patológico, que as leva a perguntar o que há de errado com elas mesmas e sua vida, o livro indicava por onde andavam as especulações íntimas de Marília.

Ela recolheu seus depoimentos entre as integrantes do MADA, um grupo de mulheres que se encontravam para discutir seus problemas da mesma forma que fazem os alcoólicos anônimos - vítimas de um vício que não conseguem controlar e que destrói suas vidas. Porém, não desistiram de lutar.

Cada relato era quase um conto, lido com prazer, sempre com um enfoque um pouco diferente do anterior, e um elemento de drama reforçado pelas fotografias do português Jordi Burch, que soube captar em imagem a alma de cada texto.

Aos 60 anos, Marília admitiu identificar-se com a frase de uma entrevistada para o livro: “há algo de errado comigo, mas não sei bem o quê”. Recém separada do ator Reinaldo Gianecchini, de seu segundo marido, com quem teve dois filhos, e viúva do primeiro casamento, ela se dizia uma questionadora permanente de relacionamentos e de si mesma. Inquieta, afirmou que, se não estivesse escrevendo ou fazendo alguma coisa nova, ficava angustiada.

Tida como mulher bem resolvida, descobriu que, mesmo assim, ninguém é totalmente resolvido.

Ex-repórter do Jornal Nacional, do Fantástico, apresentadora do TV Mulher, ela se consagrou como a melhor entrevistadora do país em uma série de programas que mudaram de nome, mas não no essencial: Marília cara a cara com seus entrevistados.

Jornalista de origem, ela usou o jornalismo cada vez mais para se interessar e se aprofundar no conhecimento das pessoas, com a sabedoria de entender que as respostas estão sempre nos outros – e, quando não há respostas, há pelo menos o consolo, o amparo mútuo, a compaixão. Sua exploração do ser humano acabou encontrando outros canais, reflexo da inquietação que caracteriza os temperamentos artísticos – Marília cantava bem e já fizera três discos, estrelara peças de teatro e interpretara personagens de novela.

Sobretudo, tinha coragem de se expôr, como fazem os artistas, e como fez na série de relatos que, embora de outras pessoas, falavam de sentimentos universais e ao mesmo tempo muito dela – a mulher que acha que amor não pode ser sofrer, num território onde não há linha separatória entre prazer e dor, felicidade e angústia, sucesso e fracasso, paz e perturbação emocional.

Em Eu que Amo Tanto, as doze mulheres de Marília tinham extração social e atividades as mais diferentes – havia uma psicóloga, uma manicure, uma médica, uma bombeira – mas possuíam em comum a certeza de que sua incapacidade de lidar com a paixão - o que, aos poucos, ia lhes destruindo a vida. Pouco suspeitavam de onde vinha sua dependência doentia de alguém ou como superá-la.

Havia pistas por toda parte, mas na realidade não uma só resposta: o que as mulheres de Marília encontravam no relato de umas e outras era o alívio de saberem que não estavam sozinhas no mundo e que existiam aquelas capazes de, se não obter uma cura completa, ao menos melhorar.

Em literatura, se pode apanhar personagens reais e transformá-los em ficção, ou dar a personagens fictícios algo de personagens reais. Entre uns e outros, o autor acaba colocando muito de si mesmos, de suas próprias questões, resoluções e interpretações. Ao final, não sabemos mais exatamente o que é uma coisa ou outra, se o que está ali é ficção, realidade, os outros ou nós mesmos.

Acostumada a entrevistar pessoas famosas, que apesar da exposição pública muitas vezes são tão desconhecidas por nós quanto muitas vezes por elas próprias, Marília avançava em território muito próximo da literatura, em que somos todos iguais, anônimos ou famosos, ricos e pobres, igualados na condição humana, nas alegrias e angústias de pontilham a existência em qualquer tempo e lugar.

Com seu trabalho de entrar nas pessoas, em busca de ajudar a si mesma, ela acabou se tornando um espelho de todos aquelas que vêm a um mundo onde as perguntas – leia-se, a própria vida – são mais importantes que as respostas.