Copa o Mundo é também um marco da vida da gente e de uma época. Lembramos das Copas pelas quais passamos e vemos como o tempo muda, como mudamos nós. É como um passeio afetivo pelo baú da memória das épocas e das nossas épocas.
A primeira Copa de que me lembro é a 1970. Eu tinha seis anos de idade, morava no apartamento térreo de um prédio na Liberdade, onde nasci. No final da Rua dos Estudantes, na vizinhança dos inferninhos, já na Baixada do Glicério, como chamava minha mãe, com rancor, que enchia d' água no verão, pelo transbordamento do Tamanduateí. Foi o último ano em que moramos lá, num tempo em que os coreanos começavam a invadir o bairro.
Nunca haverá outra Copa como a de 1970. Uma das razões era o time do Brasil, de futebol bonito, com Pelé no seu auge - nunca haverá outro Pelé. Mas houve mais, foi a primeira Copa que todos (ou muita gente, porque não havia tantos aparelhos como hoje em dia) podiam assistir pela televisão.
A transmissão ao vivo com imagem foi para a época uma revolução. Uma Nação eletrizada como se estivesse no México. Motivada pela maior campanha de propaganda da história. "90 milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração!" dizia a música que ficou na cabeça e quem viveu esse tempo não esquece (meu Deus, hoje já somos quase 200 milhões).
Lembro do Brasil já estar ganhando, a TV preto e branco de encontro a uma parede nua, minha tia Malfisa entrar em casa com um bando de amigos com cornetas, bandeiras e copos de cerveja dançando nas mãos. O jogo nem havia terminado, mas o Brasil ganhava com facilidade, caminhava para fazer os 4 a 1 na Itália em contrataques rápidos e fatais, o jogo parecia já garantido, tanto que eles já comemoravam. Foram embora no mesmo repente com que chegaram, cantando e dançando, como um bloco de carnaval.
Fim do jogo, saímos para a rua, como todo mundo - eu, papai e mamãe. São Paulo estava em festa. Os carros buzinavam num engarrafamento monumental. Lembro de apanharmos meus primos Rogério e Regina de carro; ele tinha seis anos mais que eu e ela era adolescente. Regina queria subir no capô do veículo, quase parado no tráfego que avançava lentamente - e ninguém reclamava. Papai a princípio negou, Regina ficou amuada.
Nunca haverá outra Copa no Brasil como a de 1970. O que a história não registra é aquela alegria delirante, que extravasava tanta coisa. Um momento de liberdade num país de repressão; um amor nacionalista que tinha algo de redenção; um sopro de confiança, esperança e transgressão, ainda que movidas pela ilusão do esporte.
Seguimos com a massa de veículos pela 23 de Maio, em direção ao Ibirapuera; lá foi Regina, vencedora com apoio de mamãe, para o capô do fusquinha cor de café com leite; eu via os brasileiros com o corpo para fora das janelas dos carros, agitando as bandeiras verde-amarelas, e a longa avenida rumo ao parque era como um rio de felicidade fluindo onde antes havia só sofrimento e medo; por um instante o Brasil tinha licença para tudo, o país estava em festa e éramos todos irmãos.
Sim, nunca haverá outra Copa como a de 1970.
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Da Copa de 1974, lembro de um dia de jogo Brasil e Alemanha Oriental, em que jogamos de azul marinho; eu morava então na casa Verde, num sobrado de vila, perto da escola pública que frequentava, o claudicante Benito Tolosa. Embora a escola fosse ruim, naquele dia de jogo, talvez apenas para mostrar um rigor que não tinha, a aula estava confirmada, bem na hora do jogo, para nosso desencanto. E lá fui eu, forçado e emburrado, para a aula.
Porém, aquilo que poderia ter sido mais um dia de Copa do Mundo do jogo que não vimos (e naquele tempo não havia videotape assim fácil, era só domingo à noite, e jogo ao vivo, passava num canal só) acabou se tornando memorável. Porque choveu; o dia já começara cinzento, ranzinza, choroso; choveu e choveu forte. Quando cheguei à escola, uma caminhada que eu fazia à pé, apenas duas quadras, as goteiras nas salas de aula fluíam como duchas. E a antes irredutível diretora não teve remédio senão mandar todo mundo de volta para casa.
Lembro da minha felicidade, com os livros pendurados às costas, amarrados por elástico largo, dessas faixas que se prendem à cintura; pensava no acaso, no destino benfazejo, na leniência divina, e me perguntava se dali em diante seria sempre assim: os momentos de liberdade e alegria seriam apenas nas férias, ou na ruína dos compromissos; talvez aquilo fosse crescer, fosse a própria a vida, ou o resto da vida.
Mas isso foi só um segundo, porque logo cheguei em casa, para espanto de minha mãe, e pude assistir à vitória magra do Brasil, extraída a ferro e fogo e suor e sangue, 1 a zero com gol de falta de Rivelino, furando a barreira com ajuda de Jairzinho, que cavara um buraco entre os jogadores adversários para a bola passar, atirando-se ao chão na hora H.
Mais do que o jogo, porém, a memória dessa Copa é aquela, da volta para casa, o momento de liberdade inesperada, de encher o pulmão com o ar da vitória rebelde. E de pensar que não sabia como seria o futuro, mas que aquele seria um dos momentos mais felizes da minha vida, para sempre.
(segue...)