Bem vindos ao meu mundo. Eu sabia que um dia o estilo de vida dos escritores, tão decantado no período em que eles saem a beber, dizer besteiras e fazer enormidades, mostraria seu outro lado: o da vida de toupeira, enfiado num escritório, com a cabeça dentro de um laptop.
Escritores são, na maior parte do tempo, trabalhadores domésticos. Estou acostumado a longos períodos dentro de casa. Dias a fio, semanas, meses. Escritores vivem periodicamente quarentenas voluntárias. E bem. Por isso, a vida hoje não está muito diferente para mim. E talvez a minha experiência possa ajudar outros a conviver melhor com o isolamento.
O escritor tem algo de
faraó. Escrever um livro é como construir uma pirâmide. Você começa, não sabe quando vai terminar, e provavelmente a maioria das pessoas só vai ver aquilo depois da sua morte.
O processo de trabalho é uma mistura de horror e êxtase. Quando entramos no estado de sintonia necessário para emendar um parágrafo no outro, mergulhamos num túnel que parece interminável, até que algum dia, um belo dia, a gente sai do outro lado, ofuscado pela luz.
Para mim, esses períodos podem durar quatro, cinco, até seis meses. Saio do outro lado mais velho, com as costas moídas, estressado e gordo. Mas saio.
Você corre o risco de virar parte da mobília. É esquecido dentro de casa, como um abajur. Ou então, lembram de você porque não está fazendo nada. Mandam você catar o lixo, atender a porta, consertar coisas. "Ficar em casa não é trabalho", dizia minha ex-sogra.
O contrário também é verdadeiro. A vida dentro de casa passa quase sem ser percebida. Se não vierem me chamar, não tomo café da manhã, não almoço, nem janto. Você pode achar estranho. Mas é o normal.
Concentração, a causa de alheamento, é fundamental para o trabalho. Eu já escrevi em redações de jornal, com 100, 200 pessoas. Você adquire a capacidade de se concentrar, apesar do barulho ou do movimento ao redor. Fica como numa caixa. Por isso, frequentemente passa como mal educado, ou imbecil.
Certa vez, quando escrevia O Homem que Falava com Deus, estava tão absorto no texto que só por volta das quatro e meia da tarde percebi não ter almoçado. Dei um grito, já bronqueado com Elizete, a empregada. "Elizete!" - berrei. "Você esqueceu meu almoço!"
Ela veio. E mostrou que o prato, já frio, estava do meu lado. Tinha entrado, avisado que o almoço estava servido, saiu. E nem percebi.
Esse estado de ausência pode durar dias, até semanas. Claro que eu paro para comer, tomar banho, essas coisas. Mas a cabeça frequentemente está em outro lugar. Quando estou parado, a cabeça trabalha. Nunca trabalho tanto quanto nos momentos em que pareço não estar fazendo nada. Eu me distraio fazendo outra coisa. Pode ser ver um filme, consertar alguma coisa. É preciso fazer uma atividade diferente, não que me faça parar de pensar, mas que me faça pensar em outra coisa, que não seja o livro que estou escrevendo. A isso eu chamo de descanso.
O tempo passa rápido, quando você está envolvido com alguma coisa. Lá fora não importa. Não sabemos se está chovendo, ou fazendo sol. Você vai dizer: não é possível. Outros já me disseram: não entendo como você escreve tanto. Escrevo tanto porque é possível. Quando começa o transe, sumo do mundo exterior.
Reapareço lá na frente, e é sempre um dia glorioso. Mas aquele tempo que passei dentro de casa sumiu do calendário. É quase como se eu não tivesse vivido. Transformou-se em algo que vira um monte de papel. E não faz nenhum sentido, se ninguém for ler.
Além de permanecer reclusos longos períodos, escritores se habituam a passar longas temporadas sem rendimento. Cada vez que você começa um livro, geralmente, está no risco. Risco de nenhum editor gostar da obra e ela não ser publicada. Risco de ela ser publicada - e não vender.
São períodos de ansiedade, tanto por conta do processso de escrever, em si, quanto pela expectativa de fazer algo que possa dar resultado. Do momento em que começo a escrever um livro, até ele ser publicado, existe o intervalo de pelo menos um ano. E outro ano, até que o livro seja vendido, a livraria pague a editora, e a editora me pague, como autor.
Não conheço nenhum outro ofício em que você investe tanto tempo e dinheiro, sem perspectiva de receber tão cedo. Talvez a construção civil. Para sobreviver, se você é empreiteiro, você precisa ter imóveis já à venda. O escritor, livros já escritos, que rendam algum dinheiro, enquanto você trabalho no próximo. Ainda assim, nada está garantido.
O livro tem uma curva de vendas. Vende mais no começo, depois as vendas começam a ser menores, até que ele vira uma "obra de catálogo". É importante você ter um bom catálogo, porque a soma da venda de livros que já não estão no auge, mas continuam vendendo, ajuda a você se manter pelo longo período de produção de um livro novo.
E quando ele acaba, ah!. Que sensação de alívio. É uma alforria. Dá vontade de viver de novo.Sair, viajar, namorar, fazer mil bobagens. Reencontramos os amigos, que não entendem nosso sumiço. Nem a mulher (ou marido) entende. São poucos os casamentos que sobrevivem a escrever um livro. Mas não há muita coisa você possa prometer para melhorar isso.
Vocês, meus amigos, ou a maioria de vocês, pelo menos, têm a sorte de estar sendo confinados uma vez na vida. Eu, com mais de duas dezenas de livros na carreira, vivo numa espécie de regime semi-aberto. Saio de vez em quando, para voltar ao confinamento. Preciso de ar livre, de experiências, de contato humano, de amor, para me reabastecer e voltar à clausura. E preciso da clausura. Não sei, até hoje, por que. Acho que nem quero mais saber.
São esses pensamentos que me vêm agora. Eu vejo e sei que lá fora a miséria avança, que estão todos preocupados, que o drama das mortes lança uma sombre negra sobre a Humanidade. E sei que o remédio do confinamento é duro. Se vale de alguma coisa a minha experiência, ou um conselho, é: torne seu tempo de confinamento produtivo. Empenhe-se em algo que vale a pena, tenha um objetivo, e envolva-se. Não fique achando que todo dia dá para tomar uma cerveja. Invente uma rotina. E aferre-se a ela, pensando que ela agora é a sua vida.
Você pode não ganhar dinheiro com isso. Mas chegará ao final do túnel ainda são, ou, pelo menos, recuperável.
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sábado, 11 de abril de 2020
quinta-feira, 19 de março de 2020
Um grande teste para a Humanidade
O calor humano: prova mais dura |
Corona virus, pensei. Desde então, não tenho certeza de que tenho mesmo o bicho: exames são para pacientes mais graves, que exigem internação. Não iria a um hospital para atrapalhar quem realmente precisa.
Ainda assim, a vida mudou. No domingo, faltei à minha própria festa de aniversário, que iria celebrar com minha irmã Lara, também aniversariante. Primeiro pensamos em meu pai, que já está com mais idade, depois nas crianças. No fim, achamos melhor cancelar tudo. Recebi de Lara um pedaço do bolo de sorvete com bolacha Oreo, em casa.
Eu não me importo de ficar trancado em casa, de quarentena. Escrevo o dia inteiro e minha rotina não mudou muito, ao contrário de outras pessoas que precisam sair para trabalhar. E não tenho me sentido tão mal a ponto de achar que estou sofrendo. Seria cabotinice me fazer de vítima. Porém, o isolamento traz coisas muito duras.
Uma delas é não poder ver meu filho. Diz meu médico, dr Virgílio, que precisamos ficar isolados por 14 dias, desde o início dos sintomas. Falo com André pelo WhatsApp. É triste não poder estar perto, dar-lhe um beijo, ou um abraço.
Leio que na Itália, por conta do isolamento, vítimas da epidemia são enterradas sem sequer um velório ou a oportunidade de um último adeus aos parentes.
Me dou conta mais vivamente de quanto somos dependentes do calor das pessoas que amamos. Isso, sim, me faz muita falta.
Eu e André inventamos o abraço virtual. Com a câmera ligada, a gente bota o celular no peito, como se estivesse trazendo o outro pra junto. Ele dá risada. E dizemos tchau.
Eu já sou veterano de epidemias, que não são novidade nenhuma no mundo. Há nem tanto tempo, teve a do H1N1, que trazia preocupação, porque meu enteado, João, então adolescente, tem asma. Acabou pegando a gripe, felizmente sem consequências mais graves.
Quando eu era criança, na quinta série, lembro de ficar um tempo também sem aula, por conta de um surto de meningite. Houve uma extensa campanha de vacinação e a vida voltou ao normal.
Nenhuma epidemia, porém, foi tão importante, perigosa e mudou tanto o mundo quanto a da Aids. Posso dizer que tive sorte, porque, apesar de ser então bastante jovem, sempre fui de ter uma namorada só. Essa estabilidade provavelmente me salvou do destino de muitos da minha geração - entre eles, alguns amigos, parentes e conhecidos.
A Aids foi terrível porque, no começo, ninguém sabia da sua existência. O contágio era pelo sexo ou pelo sangue, algo mais restrito que epidemias espalhadas por via aérea como as gripes, mas, quando alguém se descobria doente, já estava marcado para morrer. Cazuza foi o símbolo dessa era, mas muita gente morreu assim.
A Aids mudou o mundo radicalmente. Levantou uma onda moralista e trouxe dias negros de discriminação contra os homossexuais, que eram as principais vítimas da doença.
Fez muita gente rever o comportamento. Por um longo tempo, instaurou o terror. Lembro de um amigo que entrou em casa certa noite, apavorado. Descobrira que uma garota com quem tivera uma noite de luxúria acabara de morrer da doença. Viveu desarvorado até receber o resultado do teste, felizmente negativo.
Eu mesmo fiz o exame. Abrir aquele envelope era como esperar de César o polegar, para cima ou para baixo.
O tratamento da Aids demorou a ser melhorado. Primeiro, procurou-se prolongar a vida dos pacientes. Surgiram os "coquetéis" de remédios.
Muitos ficavam enfraquecidos e morriam de doenças outras, chamadas de "oportunistas", que se instalavam por conta da queda de imunidade.
Pouco se fala hoje da Aids, em boa parte porque se conseguiu mantê-la sob certo controle, mas é uma das três doenças que mais matam no mundo, sendo a primeira a velhíssima tuberculose.
Estamos agora diante de outra epidemia em escala mundial. Exige cuidados e sacrifícios. Vai deprimir a economia, mas ela serve à vida humana, e não o contrário. A vida humana está acima do dinheiro. Sabemos que será duro, mas sobreviveremos.
Acredito que provaremos algumas coisas. Possuímos recursos que não existiam já nos anos do H1N1. Hoje, a economia gira em grande parte de forma virtual, o que nos torna menos dependentes do contato direto. A conscientização hoje é maior e a volta do cataclisma será mais rápida.
A pandemia pode ser também um remédio para uma sociedade globalmente estressada, tendendo para a cizânia. Hoje podemos enxergar melhor, acima das diferenças, que o destino de cada um de nós depende do trabalho e do comportamento harmonioso da coletividade.
Em vez de criar barreiras, estimular preconceitos e produzir discriminação, uma epidemia com esse alcance produz algo que anda em falta na sociedade contemporânea; união e solidariedade. Aquilo que define a própria noção da Humanidade. Só com ela poderemos continuar.
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