Durante cinco dias Paraty foi capital, tomada de assalto pela Flip, que invade suas calçadas centenárias, suas casas ancestrais e sua geografia congelada no tempo para um espantoso evento cultural. Saem de seus tugúrios em todo o mundo os autores convidados, desembarcam na cidade com sua bagagem desajeitada, en vans que se aproximam do alvo pulando nas pedras feitas para incomodar estrangeiros e invasores, mais do que favorecer a visitação; e o povo acorre em massa para ver aquela gente estranha, com ideias velhas e novas, importantes e inúteis, agudas ou enfadonhas; uns para aprender, neste país cuja sede de saber é proporcional à nossa imensa ignorância, outros apenas para aparecer, ou estar perto de algum centro de acontecimentos; uma cidade é transformada em vitrine, com todos os cantos vigiados pela imprensa, grande circo armado ao redor das tendas armadas com precisão de primeiro mundo. Filas para comprar livros, gente de mão no queixo, embasbacada diante de tanta inteligencia: é o Brasil andando, o Brasil ao qual só falta educação para decolar rumo ao verdadeiro progresso, o Brasil lindo e trigueiro da música proverbial.
Como a Fórmula 1 do saber, o circo se instala; flanam pela cidade aqueles estrangeiros de todos os matizes, autores desembarcados de outro planeta, jornalistas, editores, assessores para tudo; vagueiam com suas dúvidas, suas ânsias, sua pressa, suas questões metafísicas, sua insônia permanente, suas psicoses, sua vontade de mudar, sua esperança cetica de que num encontro de cabeças brilhantes alguma faísca de progresso se possa produzir como que por milagre; são uns crentes, os intelectuais. Desfilam suas certezas inócuas, sua vaidade anacrônica num anfiteatro onde esquecidos da cultura ganham de novo súbita importância, devolvidos à notoriedade; e quando chega o domingo, tomam suas malas e embarcam de volta para a sombra das vans, para suas noites de insônia solitária, enquanto as centenas de pessoas invisíveis, aquelas que até então estavam no segundo plano, aquelas que chamamos de povo, que nesses dias paracem ocupar anonimamente a praça, invisíveis para a mídia, para aqueles alienigenas céleres e efêmeros, as pessoas que fazem número, a massa informe à qual ninguém até então havia prestado atenção, retoma o controle de seus território, e a cidade é tomada pelo batuque de escola de samba; a alegria se espalha, como se sentisse novamente livre para ficar à vontade.
O povo volta a ser ele mesmo, distante das ideias, distante do que leva aquela gente ensimesmada a tantas perguntas, e portanto a tantas angústias; a alegria pura e simples retoma seu espaço, enquanto os varredores de rua jogam em sacos de plástico preto os restos de festas desesperadas, esforços inúteis, das utopias elitistas, das mais ilustradas ilusões.