sábado, 2 de agosto de 2025

José Roberto Guzzo, in memoriam

Comecei a trabalhar em Veja em 1986, como repórter da seção de economia, num tempo em que revista era o maior e mais influente veículo impresso do país, com alcance nacional e mais de 1 milhão de exemplares vendidos a cada semana, dos quais cerca de 800 mil iam para assinantes.

Como diretor de redação, José Roberto Guzzo comandava o que considero a mais brilhante equipe de jornalistas de todos os tempos, que contava com Elio Gaspari (diretor adjunto) Dorrit Harazim (redatora-chefe), Henrique Caban e um time de editores que mais tarde daria continuidade ao sucesso da revista, dentro de uma escola de jornalismo da qual me orgulho muito em pertencer.

Guzzo, em particular, era aquele em quem eu mais me espelhava. Dirigia um negócio nevrálgico para a Editora Abril e o Brasil  como se não fosse nada -- parecia fazer até pouco caso das decisões difíceis que tomava, das brigas que comprava, e das grandes coisas que fazíamos.

Passei a ter mais contato direto com ele quando comecei a escrever capas. No processo de trabalho de Veja, cada texto passava por várias mãos: do relatório da sucursal para o subeditor em São Paulo, depois o editor,  e por fim o editor executivo. A capa, porém, ia sempre para mais uma leitura: a de Guzzo.

Eu ainda o vejo sentado em sua cadeira giratória, dedos cruzados sobre a barriga, esperando chegar o texto da capa, geralmente alta madrugada. Aí ele se encontrava no que parecia talhado para fazer desde o nascimento.

Guzzo era famoso na redação de Veja por "consertar" textos com problemas de entendimento e dar estilo e graça a assuntos complicados, com grande facilidade, em leves canetadas (sim, ainda escrevíamos em papel, na velha máquina datilográfica).

Com sua caneta Bic, Guzzo fazia suas intervenções com letra de professor; eram uma aula de redação e edição. Por essa habilidade,  era chamado na redação pelo apelido de "mão peluda" -- muito embora as tivesse lisas, com dedos longos e delgados e unhas bem cortadas, como os de uma moça.

Tinha a visão clara do negócio: a revista tinha de estar ao lado do leitor. Isso determinava o que escolhia como capa, à frente dos editores que discutiam os temas da semana e apresentavam a ele suas ideias, na reunião de pauta das segundas-feiras e, na quinta-feira, quando tudo era reavaliado.

Elio era o editor-repórter; genial e genioso, mente ativa, buscador incessante da notícia, o atacante rompedor. Guzzo era o fechador: tinha visão do que estava acontecendo, e  equilíbrio; enquadrava a notícia, mostrando o contexto, os bastidores, o que ninguém pensava, o que ninguém tinha visto. 

Guzzo e Elio se completavam, na dupla a meu ver mais icônica da imprensa brasileira. Com Roberto Civita, dono da Abril, que os respeitava como iguais, davam a Veja a importância que a revista adquiriu, especialmente no período de redemocratização do Brasil, quando teve um papel fundamental.

Veja produziu grandes marcos da imprensa na época. Um deles foi a reportagem sobre a morte do jornalista Alexandre Baumgarten, que quebrou o silêncio sobre as execuções nos porões da ditadura. Foi um momento corajoso e determinante dentro do processo de abertura, que, de uma hora para outra, mudou o Brasil. Dali em diante, a volta à democracia ainda demandou muito trabalho, mas se tornou apenas uma questão de tempo.

A clareza de Guzzo se manifestava em tudo o que escrevia ou mandava fazer. Lembro de uma reportagem sobre o aumento do salário mínimo, fechada pelo meu chefe na época, Fernando Pacheco Jordão. Fernando redigiu uma longa matéria sobre os efeitos do aumento na economia e, ao final, um pequeno box (texto em destaque) sobre o custo das empregadas domésticas para as famílias de classe média. Guzzo mandou Pacheco inverter tudo: ao leitor de Veja, o que interessava eram as empregadas domésticas, que viraram a matéria principal, enquanto todo o raciocínio econômico foi o box do final.

Passei a trabalhar mais diretamente com ele quando me tornei subeditor de economia e depois editor de Brasil. Guzzo era um chefe descomplicado: não dava bronca, não brigava, não perdia tempo; dizia o que queria, mas deixava as pessoas trabalharem, e sempre defendia e recompensava o mérito.

Certa vez, já como editor de Assuntos Nacionais (Brasil), fui encarregado de fazer um perfil de Zélia Cardoso de Melo, assessora do recém-eleito Fernando Collor, que ainda não escolhera seu ministro na área econômica. A matéria era delicada: Zélia aceitou me dar a entrevista, morrendo de medo: o que eu escreveria decidiria o seu destino (é bom lembrar que foi Veja quem lançou Collor no plano nacional, ao escrever sobre um então jovem e promissor governador de Alagoas, para quem criou, pelo título de capa, a alcunha de "caçador de marajás").

Na reunião de pauta, apresentei minha ideia para o texto e o título da minha matéria sobre Zélia -- "o coringa de Collor". Os outros editores torceram o nariz -- acharam aquilo muito enigmático. Guzzo, porém, aprovou.

-- Tem uma esperteza aí.

De fato: a gente não sabia o que Collor decidiria, mas a matéria indicava que Zélia seria influente no governo de qualquer forma, onde quer que estivesse (o coringa). Se não fosse ministra da economia, acabaria como uma sombra para qualquer outro. A revista saiu no sábado.  Na segunda, Zélia foi anunciada como titular do ministério econômico.

(Ninguém imaginava o que aconteceu depois: o choque perpetrado por Zélia -- o Plano Collor, que sequestrou o dinheiro da conta bancária dos cidadãos --, e as denúncias que levaram ao impeachment do presidente, cuja investigação,  por sinal, Veja liderou, até a célebre entrevista de Pedro Collor, irmão do presidente).

Guzzo via em mim um pouco do que ele mesmo era -- um " resolvedor de problemas", como se chamava na Abril, por inspiração de Roberto Civita, aquele jornalista para trabalhos complicados. Sabia com quem podia contar, por exemplo, para entregar em Veja  uma matéria de última hora na madrugada de sexta-feira, ciente de que eu não iria ficar "rolando na lama" -- o jargão da redação para aqueles que se viam em dificuldades e demoravam para entregar o texto.

Era comum, pela pressão do tempo e da qualidade, alguém entrar em pânico. Muita gente da redação temia como um pesadelo a possibilidade de entrar uma nova matéria na sexta-frira, dia de fechamento, ou acontecer algo que mudava tudo, na última hora, por vezes alta madrugada de sexta para o sábado. Meu batismo literalmente de fogo nisto foi escrever a dramática história dos incêndios nos grandes edifícios em São Paulo para a Vejinha, numa noite de sexta-feira, quando queimou o Shopping Center 3 na Avenida Paulista, em 1987.

Dado o "pescoção" das madrugadas, cada edição de Veja equivalia ao jet lag de viajar ao Japão semanalmente, virando e desvirando a noite, e isto por meses, anos a fio. Mas era um trabalho que fazíamos de forma missionária, abnegada, um sacrifício justificado. Acreditávamos que daquela forma estávamos mudando o Brasil para melhor-- e estávamos, mesmo.

Eu adorava aquela vida, mas ela era terrivelmente desgastante. Saí de Veja para um período sabático,  e voltei à Abril mais tarde, a convite mais uma vez de Antonio Machado, desta feita para Exame, cuja direção Guzzo passara a acumular, de forma a desenvolvê-la. Como editor-executivo de Exame, eu era encarregado de VIP,  então um suplemento da revista-mãe. Com a saída de Machado, Guzzo passou a me deixar a fazer a revista sozinho -- eu apenas o informava da pauta e lhe mostrava a capa, ao final.

Guzzo valorizava o trabalho, era objetivo, generoso e usava sua ironia até para fazer o bem. Uma vez me chamou na sala dele com um pedido.

-- Tem um velho jornalista, fulano de tal, que já trabalhou aqui, um sujeito meio encrenqueiro, mas que está doente, precisando de dinheiro. Você não consegue arrumar qualquer coisa para ele aí?

Sugeri criarmos uma coluna na revista sobre livros, poderíamos dar a ele, algo que ele poderia fazer de casa.

-- Ótimo --, disse Guzzo, com um sorriso leve sob o bigode. E, quando eu já saía da sala, completou: -- Provavelmente nos arrependeremos depois.

*

O que eu não sabia é que Guzzo já tinha feito algo parecido com meu pai -- e, de certa forma, por mim. Essa história, sobre a qual nenhum dos dois falava, eu só soube por meu pai,  muito tempo depois.

Em 31 de março de 1964, meu pai, Alípio do Amaral Ferreira,  era chefe de redação de Última Hora em São Paulo. O jornal foi empastelado pelos militares no golpe e, do dia para a noite, ele se viu sem emprego, sendo que tinha um bebê de 15 dias para criar -- eu. Guzzo, com quem meu pai havia trabalhado no jornal A Hora, estava numa editora de revistas especializadas -- o Grupo Lund -- e o socorreu com um emprego salvador.

Mais tarde, quando Guzzo foi para Veja, chamou meu pai para trabalhar com ele. Meu pai chegou a ficar uma semana na revista, mas achou o trabalho muito duro, sobretudo pelas madrugadas de fechamento, que eram um sacrifício físico muito grande. Voltou para o velho emprego, onde tinham lhe deixado a porta aberta.

Comecei minha carreira na Gazeta Mercantil; de lá, fui para Veja, por motivo que nada teve a ver com Guzzo e meu pai.  O editor de economia, Antônio Machado, leu uma reportagem que escrevi, na Gazeta, sobre economistas dos governo Sarney, que davam entrevistas no mesmo dia, em cidades diferentes. Em vez de reproduzir o que diziam, como os demais, escrevi que aquele era um movimento coordenado no governo para obter apoio ao Plano Cruzado, num momento crítico. Era uma matéria típica de Veja, embora feita para um jornal.

Fui trabalhar em Veja, sem saber da história de Guzzo com meu pai, apenas porque queria escrever mais, e dessa forma me desenvolver. Com Guzzo, e as equipes brilhantes que consolidaram em Veja uma cultura de trabalho incomparável na imprensa brasileira, aprendi muito do que usei pela vida inteira, até hoje.

Só não sabia o quanto havia do dedo de Guzzo não apenas no que aprendi,  como jornalista e editor, mas na minha vida pessoal. Ainda mais pela forma silenciosa com que trabalhamos juntos tantos anos, sem que eu soubesse daquela ligação anterior. Para mim, além de tudo, Guzzo cultivava o princípio da verdadeira generosidade, de quem faz o bem sem ver a quem, e sem nem mesmo falar sobre isso depois.  

Fora de cargos de chefia, tornou-se um colunista muito lido; era crítico permanente do governo de plantão,  por ora do PT, razão pela qual passou a ser taxado como radical de direita, bolsonarista e afins. Creio, porém,  que não defendia pessoas ou partidos, mas princípios e ideias, que tenderam cada vez mais ao conservadorismo liberal, mas essencialmente não mudaram tanto. 

Defendia sua independência e, como jornalista, acima de tudo colocava-se contra correntes, fosse de que lado fossem, fiel a um princípio de Veja, que é investigar a quem seja, mesmo os bons.

Chamamos a este campo irrotulável não de convicção ideológica,  embora de certa forma seja, mas é mais a atitude do pensador coerente consigo mesmo, oponente obstinado da corrupção, da incompetência e dos discursos vazios, venham de onde vierem.

Com este habilidoso espadachim da palavra, que brandiu sempre ao serviço do Brasil e do bem comum, fica minha amizade, minha gratidão eterna e seu legado: um país muito melhor,  que ele defendeu e ajudou a construir como ninguém.