sábado, 11 de janeiro de 2025

Ainda estou aqui: nós e nossos pais


No dia 1 de abril de 1994, meu pai, Alípio, parou diante da porta baixada do jornal Última Hora, em São Paulo, onde trabalhava como chefe de redação. Um dia antes, vira os tanques pela rua e sabia que o jornal tinha sido empastelado pelos militares, que acabavam de depor o presidente João Goulart. Sentou-se em um banco de praça, no Vale do Anhangabaú, pensando no que fazer, com um filho recém nascido  (eu) e agora sem emprego, no meio de uma confusão.

Muitas vezes , ouvi de meu pai que eu, seu filho, então com dezesseis dias de idade, salvei sua vida. Isto porque, se não tivesse um bebê para criar, teria entrado para a guerrilha, como alguns de seus colegas de jornal e da escola de Sociologia e Polícia, onde fazia a faculdade, à noite. "Provavelmente, eu teria sido morto", me diz.

Jornalista qualificado para a guerrilha, já que tinha sido treinado no serviço militar pelo Batalhão de Caçadores de São Vicente, de onde saiu como cabo, em vez de entrar para a luta armada meu pai foi procurar emprego. Graças à indicação de José Roberto Guzzo, jornalista que conheceu no jornal A Hora, entrou numa editora de revistas especializadas, de propriedade de um americano, "Bob" Lund. 

Com minha mãe, Marlene, professora da rede pública e assistente social, tornou-se outro tipo de ativista: como Rubens Paiva, não participava diretamente do confronto com a ditadura militar, mas colaborava com quem estava nessa luta, fosse com dinheiro, fosse com algum tipo de suporte ou cobertura, como ocorria com o engenheiro e ex-deputado Rubem Paiva.

Era uma rede de solidariedade política, bastante arriscada. No Rio de Janeiro, Paiva ajudava familiares a ter contato com os ativistas da luta armada, como relata Ainda estou aqui, o livro transformado em filme relato de seu filho, Marcelo Rubens Paiva, que conheço desde a faculdade: somos da mesma turma da ECA, a Escola de Comunicações e artes da USP, da qual fazem parte William Bonner e outros jornalistas que ali estudaram a se formaram juntos.

Meu pai teve um destino diferente de Paiva, que foi preso, morto sob tortura, e dado como desaparecido. Trabalhou mais de 40 anos no grupo Lund; pode-se dizer que teve sorte. Como Paiva, se arriscava ajudando seus amigos, na surdina. 

Lembro dele entrando em casa com minha mãe, certa noite, depois de visitar amigos na cadeia do quartel do Barro Branco, em São Paulo. Riam porque tinham levado para os presos uma lata de queijo Palmira, embalado em uma lata esférica, que os guardas chutavam como uma bola de futebol, sem saber como abri-la, para ver se o que tinha dentro era mesmo um queijo.

Minha tia Malfisa, irmã de minha mãe, que também trabalhou em A Hora como revisora, chegou a abrigar um grupo de guerrilheiros em um sítio de sua propriedade na zona rural de Suzano, em meio a pequenas chácaras de japoneses, que plantavam ali hortaliças e verduras. Como bem mostra o caso de Rubem Paiva, acobertar os opositores do regime era tão perigoso quanto fazer parte do movimento: o que os militares queriam, além de desfazer a rede de proteção, era informação para chegar aos guerrilheiros.

Durante muito tempo, meu pai lutou contra a própria consciência; alguns de seus amigos foram presos, torturados, alguns deles mortos. Como Paiva, ajuda à distância, o que nunca lhe pareceu suficiente, já que outros sacrificaram tudo. Quem estava mais certo?

Ele e minha mãe, Marlene, assim como minha tia Malfisa, colaboraram com a luta contra a ditadura também de outra forma, dentro do processo de redemocratização que juntou a velha e a nova geração, da qual fazemos parte Marcelo, eu e tantos outros.

Comecei a trabalhar em Veja sob a direção, acaso ou não, de José Roberto Guzzo, meu mestre em Jornalismo, sem saber naquele tempo da sua ligação pregressa com meu pai. Em 1989, eu era editor da seção de Assuntos Nacionais em Veja, onde ganhamos um prêmio Esso pela cobertura jornalística da primeira eleição direta para presidente em três décadas, naquele ano.

Ao contrário do pai do Marcelo, meu pai sobreviveu para ver o fim desse período de horrores. Muitos patrões da imprensa precisaram defender seus jornalistas da prisão e da perseguição pelo regime, usando como isto a arma que possuíam: o poder do próprio veículo de imprensa, mesmo tomado pela censura.

É célebre no jornalismo brasileiro a frase de Roberto Marinho, desferida quando alguns de seus funcionários passaram a ser ameaçados de prisão: "nos meus comunistas, ninguém põe a mão." Isto, porém, não era garantia para nenhum deles, haja visto o assassinato de Vladimir Herzog, em 1974, outro marco contra as barbaridades cometidas durante o regime militar.

Também meu pai foi, de certa forma, protegido pelo patrão, um americano que ganhava dinheiro no país fazendo revistas especializadas sobre temas como a medicina e a construção pesada. Quando a Constituição foi reformada, no Ato Institucional número 5, que apertou o torniquete da ditadura, todos os veículos de comunicação foram obrigados a publicá-la; meu pai e o pessoal da redação de Médico Moderno, uma revista que nada tinha de política, não queria dar difusão àquilo.

Seu patrão, contudo, conseguiu convencer a redação a ceder, dizendo que era importante que a população tomasse conhecimento da lei que o governo do país estava a lhes impingir, de maneira a que pudessem fazer dela o seu próprio julgamento.

A resistência sem confronto direto afinal venceu, com a transição democrática, ocorrida com a falência do próprio regime militar. Meu pai gosta de citar provérbios chineses, e o do junco que se dobra ao vento e volta sem quebrar caberia bem, nesse caso. Foi uma longa luta, assim o reconhecimento da morte dos desaparecidos na ditadura, ponto inicial para o ressarcimento de familiares daqueles que foram assassinados por crimes de Estado.

A história de nossos pais é o começo de nossa própria história. Somos a geração da liberdade, que viveu o final do regime militar, participou da campanha das Diretas Já e procurou desarmar o país de ideologias, com os antagonismos que levavam aos caos politico, econômico e social.

Defendemos as causas que todos os brasileiros têm em comum. A primeira deles, e nossa maior conquista, precedeu a Constituição de 1988: o restabelecimento do Estado de Direito, que garante a proteção do cidadãos e os direitos fundamentais. 

Sem essas garantias, todos - inclusive quem se acha no controle do sistema - não têm a mínima segurança para viver. A ditadura não era apenas política: era um regime de terror em que nenhum cidadão estava a salvo da arbitrariedade e da truculência, como se pode ver pela história de Paiva e sua mulher, Eunice, cuja trajetória pelo inferno ganha as cores da vida na interpretação brilhante de Fernanda Montenegro.

Para moderar os conflitos, era preciso restabelecer o regime democrático e por fim remodelar a economia, com a reforma do Estado, o fim da inflação e uma certa estabilidade que nos permitir avançar muito na economia. Esse novo desenvolvimento, porém, não era mais nenhum milagre econômico, para um processo de desenvolvimento sustentável, que implicava em um pouco mais de justiça social, pois um país desenvolvido não é o que mais tem riquezas naturais ou mesmo uma indústria moderna, mas cidadãos de primeiro mundo.

Procurei retratar essa nossa tarefa, a tarefa da geração seguinte, marcada pela liberdade, em um livro que trata do assunto como um poema: Asas sobre nós. É o meu relato não dos fatos, mas do que sentimentos: como fizemos, por que fizemos, e o que queríamos.

Um livro que reflete também minha preocupação com a volta dos fantasmas do passado e os perigos de quando um grupo golpista, não importa sua orientação política, instaura um regime baseado na destruição do estado de direito e garantir o poder pela arbitrariedade e, em última instância, a violência.

Deixo aqui este relato porque a história de Marcelo é também a da geração de nossos pais e do início da nossa própria geração. Nós, que estudamos juntos na ECA, procuramos fazer a revolução a nosso modo: trabalhando pela paz, pela igualdade, pela lei, pela liberdade, e um certo equilíbrio capaz de manter o Brasil num rumo estável.

Fazemos isto hoje escrevendo, e lembrando. O reconhecimento de Ainda estou aqui, com livro, ou como o filme, mostra que ainda há muita gente nas fileiras contra a barbárie; revela a quem não viveu aquele período como é viver com medo; e a importância de não voltarmos atrás em algo tão duramente conquistado.

Meus parabéns a Fernanda Torres pelo Globo de Ouro.  Quando uma pessoa lê algo, ela se informa, mas quando vê um filme, ou lê um livro, passa por uma experiência; e a experiência transforma. Ao viver a vida da família Paiva, quem não viveu aquele tempo pode entender como é viver com medo do escuro, e ter uma ideia do esforço que foi sair da escuridão.


É o que precisamos, para manter a chama acesa.