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segunda-feira, 21 de junho de 2010

Um panteão de mármore frio


A morte do Nobel a quem faltava um pouco de amor

Sequer na morte o "L'Osservatore Romano", jornal oficial do Vaticano, perdoou José Saramago, falecido aos 87 anos em sua ilha espanhola. Expatriado voluntário, que não contava muita popularidade em seu país de origem, do qual se distanciou, ou foi por ele distanciado, ao despedir-se da vida o primeiro Nobel em língua portuguesa foi subtraído da benevolência devida às almas pela igreja católica. Em vez disso, a santa imprensa preferiu descontar sua ira contra o cadáver indefeso.

Com o irônico título "O grande (suposto) poder do narrador", o órgão de imprensa do Vaticano definiu Saramago como "um ideólogo antirreligioso, um homem e um intelectual que não admitia metafísica alguma, aprisionado até o fim em sua confiança profunda no materialismo histórico, o marxismo." E acrescentou, em outra passagem do texto obituário: "colocou-se com lucidez ao lado das ervas daninhas no trigal do Evangelho".

Sim, Saramago era ateu, e marxista. Como comunista convicto, defendeu o joio que vinha com o trigo: as atrocidades cometidas em nome dos bons ideais do comunismo. Para Saramago, como para todos os comunistas da velha cepa, os fins justificam os meios. Embora também condenasse muita coisa no mundo. "Ele dizia que perdia o sono só de pensar nas Cruzadas ou na Inquisição, esquecendo-se dos gulags, das perseguições, dos genocídios e dos samizdat (relatos de dissidentes da época soviética) culturais e religiosos", salienta o editorial.

O Vaticano usou com Saramago uma ironia que não se devia ter com os mortos e uma impiedade que não deveria combinar com a igreja. Também o Vaticano cometeu aí uma atrocidade, que é a de esquecer a função precípua delegada por Jesus: perdoar e compreender mesmo quem rejeita a doutrina ou o próximo. Porém, o editorial acerta quando detecta o que faltava, se não ao ser humano Saramago, ao menos ao romancista: um pouco de amor.

Como revela sua obra, Saramago era um intelectual brilhante. Seus romances são, como diria o velho bardo português, repletas de engenho e arte. Sua obra-prima, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que desgostou a Igreja muito compreensivelmente, nos introduz à ideia ao mesmo tempo marota e intelectualmente provocadora de que Jesus deve seu papel não a sua santidade, mas ao diabo. E nos coloca diante da importância e utiidade do Mal para o Bem – e a própria História.

O intelectual, porém, é o esgrimista da razão. Se aos romances de Saramago sobra inteligência, falta um pouco da sensibilidade, assim como ao homem Saramago faltava um pouco de vivacidade. A maioria de seus romances tem a mesma rica engenharia de linguagem, ideias e conceitos, mas são intelectuais demais. Um bom exemplo é o Ano da Morte de Ricardo Reis, que parte de um princípio instigante: o heterônimo de Fernando Pessoa volta a Lisboa para encontrar o poeta que é seu criador, como um personagem real. O resultado dessa bela ideia, porém, resulta numa filosofia arrastada, às vezes de uma chatice terrível.

Saramago escrevia como quem comprovava belas teses, mas não emocionava. Morava numa ilha não por acaso. No trato, era um senhor doce e educadíssimo, mas parecia manter uma certa distância olímpica do mundo. Como Jorge Luis Borges, que morreu amargurado, certo de que era “admirado, sem ser amado”, carecia daquele elemento fundamental que os escritores devem possuir: a necessidade não de demonstrar sabedoria, mas de se aproximar do outro.

Saramago teve seu Nobel, merecido pela qualidade de sua refinada obra. Porém, não teve seguidores apaixonados, como um Garcia Marquez, outro comunista de carteirinha, nem jamais os terá. O tempo tornará ainda mais frias as letras de quem as urdiu para falar ao cérebro, e não ao coração. Pois os tempos mudam, as ideias e convicções também - somente a essência humana permanece. Saramago morreu para entrar na glória, mas, como supõe a igreja, passará a um panteão de mármore frio, em lugar do Reino dos Céus.