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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Luz sobre as sombras


Maior sucesso comercial americano de hoje, a trilogia Fifty Shades of Grey (Cinquenta Tons de Cinza, por conta de um trocadilho intraduzível no título, recém lançada no Brasil), já recebeu enorme atenção da imprensa como fenômeno literário. E é campeã de especulações sobre as causas de seu sucesso - mais de 10 milhões de exemplares vendidos em seis meses, sobretudo nos Estados Unidos. Sucessos sempre são mistificados. Nesse caso, devido ao seu conteúdo sexual, ainda mais.

Uma das teorias para o sucesso da trilogia, conforme a expressão cunhada pela imprensa inglesa (“pornô para mamães”), é de que ela oferece uma história libertadora para a mulher moderna, para quem a submissão sexual seria uma espécie de novo sonho de consumo, depois que ela ganhou poder, independência financeira e novas responsabilidades no mundo pós-feminista. Outra explicação para o alcance de Fifth Shades é a de que a pimenta fetichista daria um gostinho novo, mais liberado e de fantasia aos ingredientes que sempre agradaram o público feminino – a garota romântica apaixonada pelo rapaz lindo, rico e um tanto misterioso.

Um pouco de luz sobre as múltiplas sombras elimina rapidamente as mistificações. O primeiro mito sobre Fifty Shades é de que se trata de uma trilogia. Na verdade, os três livros são um só – ler qualquer deles de forma independente é insuficiente e não faz sentido. A divisão da obra numa suposta trilogia é uma solução esperta, criada no lançamento do e-book. Como o preço do livro virtual nos Estados Unidos é baixo, os editores o cortaram em três pedaços, para forçar o leitor a pagar por ele em três vezes. Cada livro sai no kindle a 9 dólares. Assim, o leitor gasta 27 dólares com Fifty Shades, preço de um livro impresso convencional.

Críticos já apontaram no livro “inverossimilhanças”, como a ideia de que a personagem principal ser virgem, aos 21 anos, não seria algo do Século XXI. Na verdade, a Anastassia de Fifty Shades segue uma antiga tradição do romance erótico, consagrada pelo Marquês de Sade, que teve seu próprio nome associado a certo tipo de perversão, em função de sua obra literária e de seu comportamento. Nas obras de Sade, que levavam o nome de suas heroínas, a personagem principal é sempre uma jovem inocente (e virgem) levada para uma iniciação no mundo de preferências sexuais de seu amor/algoz – e do autor, o que no caso de Sade eram a sodomia e a flagelação.

Ao final dos livros de Sade, personagens como Justine e Pauline deixam para trás a antiga inocência para conhecer um tipo de prazer que lhe faz descortinar dolorosamente aonde pode chegar o ser humano. São livros pulsantes de um misto de crueldade e lubricidade que chocam pelo que revelam dos subterrâneos mais inexplicáveis do ser humano. Perseguido e preso pelo teor de sua obra e seu comportamento, Sade foi um escritor polêmico em seu tempo e se tornou um clássico maldito. E.L. James não deixará nada para a história da literatura, exceto um exemplo de sucesso comercial que a tem feito ganhar um bom dinheiro enquanto cai no vazio o discurso moralista.

Não é o fetiche sadomasoquista a verdadeira fantasia de Fifty Shades. Para quem ler com cuidado a dedicatória do livro, fica claro que o sadomasoquismo é parte da vida da autora, que sugere possuir um relacionamento dessa ordem com o marido. Para ela, o ambiente desse tipo de fantasia é bastante real. A fantasia verdadeira do livro, e que lhe dá o gosto especial, é justamente o que ele tem de antigo, isto é, a fantasia feminina de sempre: o príncipe encantado rico, bonito e inalcançável, que Anastassia quer atrair para si, e nos seus próprios termos. O que faz da história um jogo fluido e envolvente.

Fifty Shades não é nenhuma obra prima, mas é uma leitura fácil e intrigante e nos leva a pensar um pouco sobre os relacionamentos. No livro, Anastassia luta para trazer o complicado milionário Grey para um relacionamento normal, e redimi-lo de um passado tortuoso ao qual ela associa sua dependência do fetiche sexual. No entanto, ao mesmo tempo em que ela o traz para o amor que o senso comum chamaria de normal, começa também a se sentir atraída pelos prazeres que no começo lhe causavam medo e repulsa. A autora não tem pressa em fazer essa passagem, na qual a Justine da era digital passou a ter a possibilidade de descortinar a beleza de um relacionamento em que prazeres e maltratos se confundem – de acordo com os novos tempos, de forma consensual.

A literatura erótica sempre existiu e encontrou no e-book a forma ideal de propagação para um velho conteúdo. Você pode ler Fifty Shades no ônibus ou no metrô sem que se desconfie qual é o objeto do seu interesse. Muita gente, inclusive no Brasil, um país onde o puritanismo é um inibidor da venda em massa desse tipo de obra, teria dificuldade de levar para casa um livro que tem na capa um par de algemas ou uma gravata com uma função igualmente sugestiva. Existem algumas coisas que nem mesmo o mundo contemporâneo mudou e que jamais vão mudar – incluindo as opções que as pessoas só fazem à vontade num ambiente privado.