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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A herança de 2020

Acredite: 2020 teve algo de bom.

A pandemia tirou muitas vidas. E tirou muito das nossas vidas. Porém, com isso, algo muito importante aconteceu.

O mundo caminhava para muita intolerância, filha de pobreza, geradora dos muitos radicalismos. A pandemia, apesar de alguns, nos aproximou. 

Fez lembrar o valor dos entes queridos. E a importância de todas as pessoas, sem distinção.

Fez a gente sentir falta de gente. Desarmou ânimos. Como só acontece nas horas difíceis que alcançam a todos, lembrou que a Humanidade e a nossa humanidade estão acima das diferenças.

Ressurgiu o espírito de amor e da solidariedade. Cada vez que a truculência, a incompreensão e a intolerância se manifestaram, parecia algo bestial, extemporâneo, inadmissível, sem sentido. É um começo. Ou recomeço.

Isso se refletiu na política, onde se faz a gestão da vida coletiva. O radicalismo ideológico passou a ser defletido, claramente arrefeceu. Baixamos a guarda. 

Olhamos para os doentes, os frágeis, os necessitados. Revalorizamos os mais velhos, um patrimônio humano que de repente ficou ameaçado. 

Muita gente diz que a velhice tira o trabalho, o respeito, a importância social. Mas antevimos como um mundo sem os velhos é impensável. 

A pandemia lembrou a todos de como eles são fundamentais.  2020 foi o ano de preservar  e trazer de volta a sabedoria e o amor, que os mais velhos aprendem a cultivar. Para a liderança, o conselho, o nosso equilíbrio, a nossa felicidade. E o bom funcionamento do mundo.

Aprendemos novamente a lidar com a tragédia, recolocando a vida humana acima das preocupações cotidianas e de interesses comerciais. 

Olhamos para nossos pais, filhos, amigos e irmãos como pais, filhos, amigos e irmãos. E olhamos os desconhecidos, especialmente os desvalidos, como seres humanos, gente como a gente. Assim, voltamos a ser gente, também.

Olhamos os números, sabemos que somos um deles, mas enxergamos neles as pessoas. Lembramos que somos iguais e que a grande tarefa social é tratar todos os diferentes como iguais, e os iguais como diferentes. Para que todos possam ter os mesmos direitos e oportunidades de desenvolver suas capacidades únicas, individuais.

2020 foi o ano em que a tecnologia digital provou seu bem maior. Ligou cada casa a uma cidade, cada cidade à Nação, e todas as nações na busca por uma resposta a uma ameaça tanto coletiva quanto individual.

A pandemia expressou como a vida de cada um depende da vida de todos, e vice-versa. Este foi o ano em que tivemos de pensar no outro e convencer os refratários de que pensar na coletividade é salvar a nós mesmos.

A conexão virtual expôs de forma cristalina e deu o último estágio de desenvolvimento à própria essência do que é a Humanidade.

Diante de uma doença cruel, que nos coloca em perigo ao fazer aquilo é mais indispensável - respirar - e nos mata literalmente extraindo nosso oxigênio, voltamos a valorizar as coisas simples e elementares. Sair à rua. Encher os pulmões de ar puro. Olhar a natureza. Tomar sol. Dar um abraço.

As crianças perderam muito da escola, da convivência, da infância. Mas ganharam essa vivência, que ainda servirá.

Grandes tragédias podem ser um grande impulso para o futuro. Este planeta nunca foi tão civilizado quanto depois da Segunda Guerra Mundial. Conflitos existiram, mas progrediu como nunca a riqueza, a saúde, a lei, o concerto dos povos.

Atingimos tanto progresso que ele acabou gerando também grandes distorções. Temos de usar o aprendizado, novamente, para uma próxima etapa.

Vamos precisar dessa nova solidariedade para progredir outra vez. A miséria crescente, a exclusão social, a crise ambiental pedem esforços tanto individuais quanto coletivos, possíveis por essa nossa nova e grande facilidade de conexão.

A consciência de que o bem de todos é o nosso bem remete à necessidade de retomarmos a valorização dos direitos essenciais. A saúde, o trabalho, a educação são os motores não da economia, como da própria civilização. 

Do bem estar coletivo, com desenvolvimento humano e social, depende o bem estar individual. Ainda mais no mundo super conectado, em que todos se mostram a todos, não há mais como viver bem enquanto o outro não estiver bem, igual.

Podemos lembrar de 2020 somente pela perda de entes queridos, ou ter em mente que nós, os sobreviventes, temos ainda a oportunidade de fazer mais. E que a grande e verdadeira obra é o bem coletivo, porque, de nós, é o que vai ficar.

Para mim, este ano, Natal e o Ano Novo são a celebração de um novo nascimento para todos. Agradeço pela vida. E a parentes e amigos, incluindo aqueles que se fizeram amigos como meus leitores, por tornarem a vida tão boa. 

Pelo mesmo motivo, agradeço a todos aqueles que estão conosco agora somente em espírito.  Criaram este mundo que nos cabe continuar. E aconselham, acompanham, aquecem o coração.

Por último, convoco todos a fazer uma promessa, como eu mesmo faço. A de que estes tempos duros sirvam de forma duradoura para esse entendimento e, assim, a real construção de um futuro melhor. As agruras terão valido a pena, para nós, aqueles que se foram e os que virão depois.

 





sábado, 9 de maio de 2020

O direito a uma boa morte

Outro dia faleceu, de causas esperadas, aos 94 anos de idade, Rubem Fonseca. Um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos, se não o melhor. A notícia de sua morte virou uma pequena nota na imensidão de mortes causadas pela pandemia. Pouca gente leu. No pandemônio pandêmico, não houve loas, nem homenagens.

Nesses dias, morreram também o compositor Aldyr Blanc e o jornalista Nirlando Beirão. Eu não sabia, mas Nirlando sofria do mesmo mal que Stephen Hawking. Padeceu não imagino o quanto e perdeu a vida, aos 71 anos. Essa idade, hoje, é tão cedo.

No passado, brigamos, mas, creio, nos respeitávamos um ao outro. Da última vez em que o vi, sentamos à mesma mesa, num restaurante no Itaim. Conversarmos e demos boas risadas.

Eu o chamava de "meu melhor inimigo". Certamente era um cavalheiro como poucos. E um grande jornalista. Sua morte me afetou  profundamente. Ainda que ela pareça se perder nesta multidão.

Escrevo isso enquanto por aí morrem pessoas às centenas, já aos milhares. Na pandemia, todas as mortes parecem iguais. As pessoas se vão sem despedidas, pela proibição de visitas de parentes e reuniões, até mesmo um velório.

A periferia de São Paulo hoje lembra os campos de concentração nazistas. Tratores cavam valas em série. As pessoas são ali despejadas, muitas lacradas dentro de caixões metálicos. Não há gente, cerimônia, sentimento. O rito, tão necessário às despedidas.

Somente depois de cuidar de crianças, entendi plenamente quanto trabalho e empenho emocional dá fazer a vida humana florescer . Ela tem um valor inestimável. Escrevo sobre gente, talvez, por isso. Para mim, cada indivíduo tem um valor único e precioso.

Se pudesse, escreveria um romance sobre cada um. O mais pobre e anônimo dos seres para mim vale uma odisseia. Mas sou apenas um. E os mortos se vão contando no mundo hoje às centenas de milhares.

Vejo nosso presidente dizer que as mortes são inevitáveis e temos que voltar ao trabalho de qualquer forma. Com o isolamento, porém, sabemos que haverá menos mortes. Cada vida vale um esforço sobre-humano para sua salvação. E devemos poder cuidar mesmo dos mortos. Temos, todos, o direito a uma boa morte.

Não podemos nos tornar insensíveis ou indiferentes à tragédia humana. Penso não apenas nos que se vão, mas em todos que sofrem com as perdas, com o medo da doença, ou a preocupação com os entes queridos. Este será um tempo para lembrar, não para esquecer.

Temos que enfrentar a crise com determinação, mas não podemos perder o sentimento. O que nos mantém vivos não são as vacinas, os remédios. É a solidariedade humana, que nos coloca juntos diante das dificuldades. E o amor.

Podemos sofrer,  podemos endurecer, podemos divergir, podemos até lutar, mas não podemos, em hipótese nenhuma, perder a humanidade. É isso que impede o mundo de ser irreparável.