Éramos só dois meninos, aos nove anos. Eu ia na casa dele: era meu melhor amigo, na época. Um japonesinho tranquilo, alegre e simples, com quem eu gostava de conversar.
Voltávamos para casa juntos, a pé, vindos da mesma escola, na Aclimação, por aquelas ruas com nome de planeta: Urano, Saturno, Plutão. Ele parava primeiro, porque a casa dele era antes. Assim, nos despedíamos todos os dias. Ele entrava e eu seguia adiante.
Até o dia em que, diferentemente dos outros, encontramos a mãe dele na porta do prédio. Ela então me disse que Renato não iria mais para a escola e não poderíamos nos ver mais. E me pediu para não procurá-lo. Nunca mais.
Não entendi.
No dia seguinte, explicaram na escola que ele estava com câncer. Leucemia. Eu era pequeno, não entendia do assunto. Nunca mais vi Renato, nem tive notícias. Acreditava que tinha morrido.
Esta semana, fui procurado por Carlos Alberto, um colega do antigo Jardim Escola Aclimação, que me convidou para entrar num grupo da nossa turma pelo WhatsApp, tantos anos depois.
- Estamos procurando pelo Renato, você sabe dele?
- Nunca soube o que aconteceu com ele, mas é pouco provável que esteja vivo - eu disse. - Sempre penso no Renato e gostaria de descobrir o que aconteceu.
Carlos Alberto sabia algo que eu não sabia - o sobrenome de Renato. Procuramos por Renato Ishigami. E assim ficamos sabendo que ele viveu mais 41 anos, contra o improvável, ou melhor, o impossível.
Seu pai, Takashi Ishigami, escreveu um texto, publicado na internet sob o título "Um Inverno rigoroso", contando a história e o papel que ele atribuiu ao budismo na realização do inacreditável.
"Após inúmeros exames, sem resultados, os médicos acharam que o melhor era extrair o nódulo para que fosse analisado", escreveu Takashi, daqueles dias. "Fizeram uma biópsia e foi diagnosticado linfossarcoma, câncer nos gânglios linfáticos, três vezes mais agressivo que a leucemia. Os médicos deram-lhe um curto prazo de vida, de três a doze meses, porque, de um modo geral, a evolução da doença em criança é rápida e fatal. 'Não existem no mundo casos conhecidos de sobreviventes dessa doença', afirmou o médico categoricamente."
Takashi narra a saga da família nos hospitais, até perder a esperança, diante da desistência inclusive de uma clínica americana que se oferecera para o tratamento de Renato. E seu mergulho pelas religiões, à procura de um milagre.
Takashi encontrou conforto no budismo, pela busca da reafirmação da crença com base em resultados comprováveis. A situação desesperada de Renato transformou a família. Takashi primeiro teve de convencer a mulher, que era católica, a entrar em uma corrente de fé. Até nisso o budismo traz sabedoria: pai e mãe são "como uma carroça", a família não anda sem as duas rodas irem para a mesma direção.
O texto é cheio de ensinamentos e incríveis esperanças para quem se vê diante do inevitável. A família Ishigami passou a dedicar sua vida a rezar. De um estado cadavérico, passando pelo sofrimento de morte, purgando não apenas a doença como o que seria o “carma” familiar, Renato recuperou energia e ganhou novamente vida. Em dois anos, foi considerado curado.
"Um Inverno Rigoroso” é um texto tocante, especialmente para quem tem filhos. Mostra sobretudo a força da humildade perante a vida. E a beleza de uma religião que integra o ser humano ao universo em todos os tempos e mostra que não há por que desistir. “Nunca houve inverno sem depois chegar a primavera”, escreve Takashi, citando um pensamento budista.
Há nas suas memórias de pai também certo fatalismo, como na história da médica que queria internar Renato para que morresse com menos dores no hospital, e brigou com a mãe dele, quando esta se recusou a aceitar a morte do filho e o levou, moribundo, para casa.
Quis o destino que essa mesma médica fosse mais tarde levada, por coincidência, ou mistérios insondáveis, à casa dos pais de Renato - onde o encontrou vivo, feliz e pleno de saúde. E foi embora chorando, de pernas tremendo, diante do "inconcebível".
Renato formou-se na FGV, casou-se com uma fisioterapeuta e teve um filho, Guilherme. Viveu bem até 2009, quando teve um primeiro AVC, sequela do tratamento radioterápico na infância, que ressecou suas artérias do pescoço, comprometendo a oxigenação do cérebro, anos depois. Veio a falecer em 2013, aos 50 anos.
Depois da ressurreição, a morte. Terá vivido pouco, ou muito? Não sei. Não sei também se fiquei feliz ou duplamente triste. Feliz, por saber que Renato viveu, apesar de sua história tão sofrida. Teve felicidade e deu à sua vida um sentido maior, inspirando outras pessoas a persistir, mesmo quando não há esperança.
Ao mesmo tempo, fiquei desolado. É estranho uma pessoa morrer para você duas vezes. Coisa rara em mim, sempre cheio de razão sobre tudo, fico sem saber o que pensar.
Sei o que sinto. É como se eu deixasse Renato na porta de casa, novamente, outra vez. Sigo em frente, para minha própria casa, que fica mais adiante.
E sei que não o verei mais, mas acredito que, como Renato, ninguém morreu, nada morre. Somos essa história que vai para casa, uma casa que se respira no ar.