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sexta-feira, 15 de março de 2019

Nascido no ano do dragão

Hoje completo 55 anos. Por isso, vou deixar aqui um trecho de um livro de memórias, que está quase pronto, e quero publicar um dia desses. Fala da era de onde eu vim. Fica pra vocês como aperitivo - e para sentir o que significam 55 anos.


"Certa vez, ao trazer minha mãe de volta para casa, depois de uma sessão de quimioterapia no Hospital do Câncer, uma das últimas que ela fez, o caminho nos levou a passar na Rua dos Estudantes. O lugar onde nasci, no final da ladeira onde a Estudantes entra no chamado Baixo Glicério.

- Nosso primeiro apartamento foi aqui, de frente para a rua, no terceiro andar – disse mamãe, apontando.

Eu já sabia - e lembrava. Nosso edifício continuava lá, o mesmo bloco de cimento áspero e cinzento. A porta central dava para o longo corredor interno; do lado direito ficava a entrada da garagem descoberta e, à esquerda, outra porta basculante, onde no passado funcionara um bar, estava fechada. Era um cortiço, não sei há quanto tempo. Ao lado, um imóvel derrubado dera lugar a um beco onde se amontoavam barracos de plástico preto. Gente sinistra espreitava.

Bem que eu gostaria de bater à porta e pedir para olhar lá dentro, mas dava medo descer do carro. Passei reto. A casa onde morei já não estava lá, e sim na minha memória. Tentei avaliar se aquele lugar já era assim ruim ou decaíra com o tempo. Certamente piorara; porém, creio que nunca tinha sido bom. Nem a casa, nem os tempos.

Pelo horóscopo chinês, todos os nascidos no ano de 1964 pertencem ao signo do dragão. Diz o horóscopo chinês que o Dragão é generoso, inteligente e tenaz. Pode alcançar a riqueza, mas não é por ela que trabalha. Gosta da liderança e do poder. Precisa, no entanto, de flexibilidade, tolerância e compaixão. Não sei. Sei que aquele foi mesmo um tempo de soltar fogo pelas ventas.

Em 1964, a Liberdade era região dos “inferninhos” – lugares mal-afamados com dançarinas que faziam programa e nem por isso impediam que logo ali se instalassem algumas famílias como a nossa. As boates de prostituição faziam à noite um barulho distante que me intrigava. 

Com quatro ou cinco anos de idade, perguntei ao zelador, com a candura e a curiosidade das crianças, por que lhe faltava um pedaço do dedo anular direito. Ele me respondeu que trabalhava de guarda numa boate ali perto; certa madrugada, dera um tiro com uma pistola automática e, quando ela cuspira a cápsula da bala, arrancara-lhe aquele terço.

Eu o achava simpático e, ao mesmo tempo, um tanto sinistro. Mantinha sempre fechado o fosso central do edifício, ao qual se tinha acesso por uma porta no longo corredor, como um alçapão na parede. Mais tarde, descobri que ali ele criava patos. Poucas vezes vi a porta aberta: um quadrilátero coberto de guano, com um cheiro repugnante, onde patos velhos e sujos grasnavam e espadanavam aos montes; um lugar onde o sol nunca chegava e pelo qual eu passava rápido, mesmo de porta fechada. Eu não entendia o que faziam ali aquelas aves; ou melhor, intuía que se tratava de um matadouro; foi esse contato que me deu uma primeira e lúgubre noção da morte.

Tornou-se célebre em casa o pato com cerveja preparado pela mãe com uma das crias do zelador, que para sua infelicidade permaneceu no prato, depois da careta dos comensais. Lembro de mexer co arroz amarelo longamente com o garfo; a expressão interrogativa de minha mãe, que foi virando zanga, depois fúria; rejeitar sua comida era rejeitar o seu amor, e isso a deixava tão possessa quanto se deliciava com os cumprimentos de qualquer almoço do qual saía com os costumeiros elogios.

Como em outras ruas do centro, na Estudantes o submundo dos proxenetas e outros marginais convivia com a “gentinha”: aqueles seres anônimos que viviam de pouco. Eram funcionários de pequenos armarinhos, bares, pensões, lojas de artigos baratos. Homens gastos pela desesperança e mulheres mestiças de exuberância e pobreza, aquela beleza suburbana ao mesmo tempo sensual e melancólica que exercia em mim ao mesmo tempo repulsa e atração.

Sem horizontes, viviam a beber (os homens) ou a falar da vida dos outros (homens e mulheres), o que aos poucos transferiu a expressão “gentinha” para a identifição dos fofoqueiros e maledicentes. Além deles, havia toda a marginália de bêbados, mendigos e vagabundos que faziam da rua uma zona proibida, como se eu estivesse numa ilha cercada de águas cheias de tubarões.

Ali meus pais podiam pagar o aluguel de um imóvel maior que a quitinete de seus primeiros meses de casamento. Nosso apartamento tinha dois quartos, era próximo da praça da Sé e do trabalho de meu pai - a Gepesa ficava na Rua Líbero Badaró. A prefeitura acabara de retirar os bondes da cidade e havia um cemitério deles num terreno baldio ao lado do viaduto que saltava a via férrea na entrada da avenida Rio Branco. Os trilhos do bonde ainda estavam colados ao asfalto e as ruas do centro cobriam-se pelos fios das linhas de trólebus, os ônibus elétricos que eram o principal sinal de modernidade do transporte público.

São Paulo ainda possuía algo da elegância de seus tempos áureos. Não havia shopping centers. O comércio era na rua, especialmente no centro da cidade, onde ficavam os dois grandes magazines - o Mappin e a Mesbla. Os homens andavam de gravatas finas e ousavam abandonar o chapéu. Para as mulheres, havia blusas de gola rulê, saias ou calças justas e curtas, que deixavam de fora a canela. O cabelo era armado com altas doses de laquê.

Mesmo quem era pobre, naquele tempo, se vestia melhor que os ricos de hoje. Vejo as fotografias de minha mãe e suas irmãs em casa de meus avós, ou em lugares como Campos do Jordão, e penso que aquela foi a última era da elegância. O consumo de massa ainda não destruíra a roupa de alfaiataria, nem espalhara o jeans para o uso comum, assim como a camiseta. Naquele tempo, usava-se ainda roupa social no dia a dia. E as pessoas se vestiam de forma diferente umas das outras.

O jeans, conhecido ainda como “calça rancheira”, apenas aparecia. Quando eu era pequeno, meu pai tinha só uma, guardada no fundo do armário, por seu pouco uso. Era grossa, dura e desconfortável. Criado pelos mineradores para o trabalho árduo nas minas nos Estados Unidos, o jeans era feito de índigo, uma lona grossa para ser utilizada no campo ou operários no serviço braçal. A disseminação do seu uso coincidiu com o início da democratização da roupa e da sua transformação em artigo rapidamente descartável, segundo os interesses da indústria de massa.

Embora meu pai não tivesse dinheiro, jamais deixou de lado um certo comportamento aristocrático, enraizado na família desde um tempo em que meus bisavós possuíam fazendas cheias de escravos na região de Piracaia, perto da divisa com São Paulo. Meu avô, que fugira de casa na juventude, depois de brigar com a madrasta, e vivera vida aventureira, tivera sido destituído da herança por um irmão trapaceiro. Porém, jamais se queixara de sua condição, do irmão, do dinheiro – de nada. Papai fazia o mesmo.

Uma vez casado e obrigado a virar-se por conta própria, ele tinha de viver no meio da ”gentinha”, mas era diferente dos outros – ele, sim, tinha perspectivas de sair dali. Educado graças ao gosto pela leitura, herdado de vovô, mesmo depois do golpe de 1964, que mudara sua carreira de maneira abrupta, acreditava prosperar no jornalismo. Mesmo não sendo tão culta quanto ele, mamãe estava ligada à educação pelo trabalho como professora. Além de interesses e ideais em comum, ela tinha a energia, o espírito de iniciativa e calor para ajudar e impulsionar o marido.

Era um casal admirável; eles estavam próximos pelo amor, pelo objetivo em comum da família e por características que, mesmo onde havia diferenças, se completavam na direção do bem comum. E talvez seja assim com todos os casais; uns administram a vida a partir da união inicial para convergir ainda mais ao longo do tempo, outros divergem até que a distância entre ambos fica tão grande que torna a separação inevitável.

Eles se casaram para sempre, num tempo em que “para sempre” começava a ser muito relativo – eles apenas não sabiam disso, ainda. Além das mudanças da tecnologia e da política, aqueles anos turbulentos da década da 1960 marcaram também o início de uma profunda mudança de comportamento e mentalidade. A geração de meus pais foi a primeira a colocar a felicidade como um bem sem barreiras, fossem religiosas e psicossociais. E como um bem eminentemente individual, acima, portanto, da família antes sagrada.

A manutenção do casamento deixou de ser tão importante; nessa geração, foi aprovado primeiro o desquite, depois o divórcio. A separação se tornou comum e este foi um passo decisivo para a criação da era de independência e individualismo que chegou ao auge nos anos 2000. Um modelo que, todavia, criava também seus próprios problemas, como o anterior.

As mudanças de comportamento tinham forte influência nas artes, muito rica naquele período. Os Beatles, banda inglesa que deu início ao fenômeno de massa em escala mundial, começou sua carreira usando gravata e terno preto; terminou de cabeleira e roupas largas que indicavam a liberdade de criação, pensamento e conduta. O estilo que se tornou conhecido como “bicho-grilo”, teve seu auge depois do festival de música de Woodstock, em 1968 e inaugurou o que se passou a chamar de “contracultura”.

A gíria da época se tornou muito característica; por conta da Jovem Guarda, que imitava no Brasil os Betles dos primeiros tempos, com suas músicas meio inocentes de juventude, ficaram famosos os bordões como “mora”, ou “morou?” (entendeu?). Vinha de “é uma brasa, mora”, frase criada por um jovem talento que encantava as multidões: Roberto Carlos. Tudo o que causava espanto vinha acompanhado da expressão “putz”, de “putz grila”. 

A influência das artes no comportamento e vice-versa em escala mundial apenas começava. Ainda havia pouco contato cultural com a Europa e os Estados Unidos. A TV incipiente tinha programação local e eram privilegiados os que tinham a oportunidade de conhecer o exterior – os aviões transcontinentais eram poucos, caros e demorados.

Esse relativo isolamento mantinha o Brasil com uma cultura autóctone, muito mais presente na vida dos brasileiros. Esta refletia apenas de longe a influência estrangeira que viria quase a substituí-la mais tarde, com o acesso imediato à informação e a criação do mercado global. A produção cultural brasileira era forte, predominante e rica. A década de 1960 foi uma fase áurea das artes brasileiras, com o maior encontro de gênios criativos numa única época, rebento de um longo período de desenvolvimento, liberdade e elegante despreocupação vindo desde os anos 1950.

Na arquitetura, havia Oscar Niemeyer, que acabara de desenhar Brasília; no paisagismo, Burle Marx. Grandes mestres das artes plásticas, como Di Cavalcanti, Portinari e Aldemir Martins, buscavam no retrato do povo a reafirmação da identidade nacional. Não eram assinaturas em museus, mas artistas vivos, trabalhando, sob a influência do mundo ao seu redor. Na literatura, conviviam Jorge Amado, Graciliano Ramos, Antonio Callado.

A década de 1960 foi também palco de grandes compositores, tanto da geração anterior quanto a mais jovem, todos em sintonia com os acontecimentos políticos e sociais que fariam a arte se alinhar com as bandeiras da democracia e da liberdade. Essa tendência cresceria depois do golpe militar de 1964, flor em meio aos espinhos, bandeira de poesia e liberdade em tempos de brutalidade, espada de idealismo para enfrentar os desafios sociais de um país que não aceitava mais o subdesenvolvimento, uma expressão que caracterizava a visão do Brasil sobre si mesmo nesse período.

O país ainda veria coisa pior, quando as metrópoles se transformariam em bolsões de pobreza e violência muito maiores, mas naquele tempo ainda havia a esperança de melhorar. Ninguém imaginava que levaríamos trinta anos para ter de volta a democracia plena, nem que a ditadura, apesar de uma série de realizações, como grandes obras de infra-estrutura a um custo bastante alto, teria de nos levar primeiro ao caos econômico e social para ruir.

O artista falava de amor e da vida simples, mas erguia bandeiras de um mundo melhor. O Brasil era romântico, tanto nas músicas sobre a saudade e o amor como no sonho de mudar o país e o mundo, alimentado por muitas bandeiras que se mostrariam também ilusórias, como a do comunismo.

Naquele tempo, quando a cultura de massa ainda não nivelara a qualidade por baixo, as canções depuradas, com letras inteligentes, eram também a canção popular. Nesse ambiente, meus pais vibravam com as vozes de João Gilberto, Maysa, Elis Regina, Jair Rodrigues, Wilson Simonal. Viviam ao ritmo das canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Assistiam à progressiva influência do rock, com a cara de uma juventude livre e despreocupada, incorporada pela Jovem Guarda, de onde se lançou Roberto Carlos. E o despontar de talentos ao mesmo tempo populares e intelectualizados como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Podia-se ver agora esses astros refinados em shows multiplicados pela TV cada vez mais acessível e levá-los para casa em discos de vinil, cultura viva que integrava o público na nova tecnologia das vitrolas de “alta rotação”. Os sucessos das rádios eram lançados imediatamente nos “compactos” – discos de vinil pequenos, que os americanos chamavam de “singles”, contendo apenas aquela música, mais outra no verso.

(Colocar a música na vitrola era uma delícia; a ponta do dedo levava a agulha até a faixa a ser ouvida, aquele barulho da agulha pousando no vinil, iííííí, e então a mágica, produto da sensibilidade e inteligência, música para a cabeça, o coração e a alma.)

O artista contra a supressão da liberdade e política mostrava como a luta contra a ditadura não era apenas uma questão política, da esquerda contra a direita, mas do iluminismo contra o obscurantismo, da alegria contra a sombra, da paz contra a opressão.

As cidades acompanhavam as mudanças sociais; o Brasil rural se transformava num país urbano, com uma indústria ascendente e moderna, especialmente a automobilística. O caos das metrópoles, o tráfego intenso, a violência exacerbada e o crime organizado ainda não eram sequer uma hipótese. Crimes de morte chamavam a atenção pela raridade e a brutalidade, sem perder-se na névoa da indiferença, capaz de cobrir tudo o que se torna rotineiro; o início do processo de banalização do absurdo, porém, estava ali.

Eu pouco sabia ainda da vida lá fora; não tinha consciência do que viria, nem mesmo de onde estava. Cresci naquele tempo de mudança, em meio a uma pobreza da qual nunca tive exata consciência, talvez até hoje, nem das dificuldades pelas quais meus pais passavam. Como eles, eu acreditaria sempre numa vida melhor, não com base em previsões, econômicas, mas simplesmente porque vim daquele tempo em que as pessoas viviam sobretudo de sonho."