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terça-feira, 21 de março de 2017

Um bilionário de meia furada

Era 1986 e o bilionário americano David Rockefeller, então presidente do banco Chase Manhattan, resolveu visitar o MAM, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, durante uma passagem por São Paulo. Eu, então aos 22 anos, entusiasmado e inexperiente repórter da seção de Nacional do jornal Gazeta Mercantil, fui destacado para tentar arrancar dele uma entrevista, se tivesse a oportunidade. E tinha que ter, porque, caso contrário, estava frito. Repórteres sem sorte não duram muito no emprego.

Esperei Rockefeller na marquise do parque, perto da entrada do museu, ao lado de um verdadeiro batalhão de outros jornalistas - avisados, assim como meu jornal, pela assessoria de imprensa do museu. Lá veio Rockefeller, num terno escuro, com sua cara de americano mais que americano, os cabelos grudados à cabeça com gel, nariz afilado, passo de lorde, sem se assustar nem um pouco com os jornalistas brasileiros, ao contrário. Para minha surpresa, fui eu o único a lhe fazer perguntas, por uma razão muito simples: era também o único a arranhar alguma coisa de inglês.

Surpreso com tanta gente na sua frente, mas um único interlocutor, ele me perguntou se eu tinha aprendido a falar a língua nos Estados Unidos. Respondi que não conhecia o país: o que sabia de inglês tinha vindo de um mero curso intensivo no Cel-lep. Ele pareceu um pouco desapontado. Explicou que estava ali para ver o Museu porque sua família tinha contribuído com grande parte do acervo e queria ver como estavam as coisas. Eu, porém, não estava muito interessado em arte. Num jornal de negócios, só queria fazer perguntas sobre economia.

Enquanto conversávamos, caminhando, reparei que um fotógrafo da Folha de São Paulo ia rolando no chão, ao nosso lado, feito um cachorro amestrado. Fiz de conta que não vi. Rockefeller também. Quando o banqueiro entrou no museu, fui perguntar o que tinha dado no fotógrafo.

- Você não viu? - ele disse. - O homem está com uma meia furada! Eu tinha que fazer a foto!

Eu não pude publicar a foto - mas não deixei de publicar, no texto, aquele episódio anedótico.

Como herdeiro de um dos maiores impérios de negócios dos Estados Unidos, Rockefeller representava bem a aristocracia americana. Seu bisavô, o lendário John Rockefeller, fizera fortuna com petróleo e ganhara tanto dinheiro que no final a maior empresa do grupo, com os passar dos anos, se tornara o banco. Isso não impedia Rockefeller de conversar normalmente com um repórter brasileiro quase monoglota nem andar de meia furada.

Ontem, deu nos jornais a notícia de que David Rockefeller morreu, aos 101 anos de idade. Era o último neto vivo do fundador da companhia. Os Estados Unidos hoje são outros, os negócios também, e com ele vai embora o último remanescente de toda uma geração empresarial que eu vi passar e ajudar a construir o mundo como o vemos hoje, para o bem e para o mal. Rockefeller era amigo do secretário de Estado Henry Kissinger e a influência do seu banco, ou melhor, do capital americano, era tamanha que sua importância equivalia à de um chefe de Estado.

Assim como os homens de calibre, o jornalismo hoje em dia também tem um peso muito menor no mundo que no passado. E funciona muito diferente. É raro um repórter fazer plantão em qualquer lugar à espera de uma entrevista. Em geral o entrevistado já emite suas opiniões num blog pessoal e a imprensa digital copia aquilo e cola. Por fim, eu mudei. Já fui vezes sem conta aos Estados Unidos. Morei um ano em Nova York e conheço o país de cabo a rabo. Fui o primeiro editor da Forbes no Brasil, consultor do Discovery Channel e dirigi o Grupo Playboy na Editora Abril, o que sempre me manteve em contato direto com americanos. Jamais, porém, procurei Rockefeller, como ele me convidou a fazer. Talvez devesse ter ido vê-lo. Agora, é tarde demais.

Não sou do tipo saudosista, que vai dizer que antigamente era melhor. Mas essa pequena notícia sobre a morte de Rockefeller num canto qualquer do espaço virtual me lembra que era, pelo menos, mais divertido.


quinta-feira, 11 de junho de 2009

O homem que queria saber tudo


Entre em uma sala de aula de uma faculdade de jornalismo, pergunte aos estudantes: quem já ouviu falar em Getúlio Bittencourt? E eles ficarão quietos.


O jornalista é como a notícia que ele publica: no dia seguinte, é página virada. Mas eu vou dizer alguma coisa sobre Getúlio Bittencourt, que eu conheci há mais de vinte anos, na redação da Gazeta Mercantil.


Getúlio pousara na Gazeta como uma estrela do jornalismo. Ganhara ainda mais prestígio com um prêmio Esso que lhe fora conferido por uma entrevista com o presidente João Figueiredo, homem avesso à imprensa, de cujas idéias ele fizera um impressionante retrato, celebrizado pela declaração do general-presidente de que ele preferia aos homens o cheiro dos cavalos.

O que pouca gente sabe é que Getúlio tinha sido protocolarmente proibido de gravar a conversa. Dono de uma memória prodigiosa, transcrevera a longa entrevista de cabeça. E, das páginas inteiras de jornal que rendera o encontro, nenhuma palavra foi contestada.

Nascido pária, Getúlio era autodidata. Vivia aprendendo e gastava a maior parte do ganhava com livros, de maneira obsessiva, até perdulária. Baixinho, de voz fina, com cabelinho pixaim, era uma figura que poucos levariam a sério à primeira vista, o que o ajudava a prestar atenção em tudo, principalmente em conversas alheias, sem ser notado. Em circunstâncias que reuniam muitos jornalistas em busca de notícias, estava sempre longe das aglomerações, conversando com uma fonte ao pé do ouvido. Era esse o seu estilo.

Uma atitude definia bem seu jornalismo. Quando um entrevistado lhe perguntava o que ele queria saber, respondia, simplesmente: “tudo”. Era um concorrente difícil, sobretudo para mim, repórter principiante, que na época da Gazeta apenas começava a disputar com ele diariamente o espaço da primeira página do jornal.

Getúlio não foi apenas jornalista, mas uma figura ambivalente, que como muitos outros repórteres políticos acabou sendo envolvida pelo mundo do poder. Aproximou-se do ex-presidente José Sarney, graças não apenas à sua inteligência e qualidades profissionais como pelo interesse comum nos mistérios infensos à Razão.
Cerebral, Getúlio estudava astrologia como um pequeno cientista, o que para ele não era uma contradição. Chegou a escrever um livro, No Azul do Céu Profundo, em que expunha mapas astrológicos de políticos célebres e estabelecia relações entre o zodíaco e a política. A empresa por meio da qual recebia seus rendimentos chamava-se "Júpiter", elemento do sistema solar ao qual associava o sucesso financeiro que ele, gastador compulsivo, jamais alcançou.

Como a crença muitas vezes é que move a realidade, a astrologia de Getúlio realizou proezas bem concretas. Por suas previsões, transmitidas a Tancredo Neves pelo deputado Thales Ramalho, teria sido modificado o horário de funcionamento do colégio eleitoral que elegeu o primeiro presidente civil do Brasil depois da ditadura militar, em janeiro de 1985.

Levado ao Planalto, Getúlio foi um jornalista que salvou um jornal. Por sua influência astrológico-corporativa no governo, saiu um empréstimo do Banco do Brasil à Gazeta Mercantil, então em dificuldades financeiras, que lhe valeria anos de sobrevivência - e um lugar para Getúlio como correspondente do jornal nos Estados Unidos, onde ficou por uma década, depois de encerrada a gestão Sarney, como se faz com um benfeitor que merece uma boa embaixada.

A vida é cruel quando atinge as pessoas onde está seu dom. Tira as mãos de um pianista, como fez com o hoje maestro João Carlos Martins, ou a voz de um locutor, como aconteceu com Osmar Santos. A vida parece feita para testar o ser humano no seu máximo. E deu a Getúlio um tumor no cérebro, que nele não era apenas o escritório, um local de trabalho, como um centro de recolhimento, um mundo próprio, muitas vezes tortuoso e obscuro, onde se pode dizer que funcionava também seu coração.

Faleceu Getúlio Bittencourt, com apenas 57 anos. Uma página do jornalismo brasileiro foi virada. Amanhã, serão outras as notícias do jornal. Mas fica alguma coisa para a história, que registra uma perda importante, sobretudo pela falta de alguém que sabia muito bem contá-la.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Lição para o futuro


O fim de um jornal melhor que os seus donos

A imprensa anda de luto pela Gazeta Mercantil, o jornal que estertorou nas mãos da CBM, Companhia Brasileira de Multimídia, de Nelson Tanure. Seu fim não se dá pela crise da imprensa, que vai abalando grandes jornais do mundo, a começar pelo New York Times, nos Estados Unidos, com a prevalência crescente da internet sobre a mídia impressa. É apenas um caso de má administração e incompreensão da natureza de um negócio. Com a Gazeta, vai se encerrando parte da história do jornalismo brasileiro, mas ela ainda nos dá uma lição, sua última contribuição para o futuro.

Comecei a trabalhar na Gazeta em 1986, recém-saído da faculdade, depois de rápido estágio na TV Bandeirantes. Instalada num edifício da rua Major Quedinho, a Gazeta era um jornal venerável, considerado leitura obrigatória no mundo profissional. Sua circulação era menor que a da Folha de S. Paulo e de O Estado de S. Paulo, porém seu público era mais qualificado.

Possuía também um braço na TV, o programa Crítica e Autocrítica, capitaneado pelo seu diretor editorial, Roberto Muller, que ia ao ar no domingo à noite. Era uma alternativa para o público que queria ver uma conversa mais séria, ainda que às vezes meio sonolenta, em lugar das mesas redondas de futebol.
Na redação do jornal, havia uma constelação de estrelas do jornalismo, a começar pelo seu diretor, Matias Molina, o secretário de redação, Alexandre Gambirasio, e um time de repórteres tratados como primas-donas: Celso Pinto, José Casado, Getúlio Bittencourt, entre outros - todos premiados e com vasta folha de serviços prestados ao jornalismo brasileiro.
A Gazeta era não apenas um grande jornal de negócios, como uma escola de jornalismo. Isso incluía princípios como a imparcialidade e a honestidade absolutas; a obsessão pela informação correta, segundo elemento essencial para a credibilidade; a busca incansável pela notícia exclusiva, que fazia a diferença.
A disputa aberta e estimulada entre os repórteres pelo espaço da primeira página era uma forma de garantir a perseguição permanente pela qualidade, num mercado em que ainda não havia concorrentes importantes. A Gazeta valorizava o jornalista, que assinava todas as suas reportagens e era tratado como patrimônio da casa, a própria essência do negócio.
Parecia uma fortaleza inexpugnável, e teria sido, não fossem os seus proprietários: a familia Levy, cujo patrono, o deputado federal Herbert Levy, deixara a administração do jornal ao filho Luiz Fernando para cuidar de suas atividades políticas. A gestão fez da Gazeta Mercantil o único órgão de imprensa em que trabalhei a atrasar salário. Porto seguro para a publicidade de bancos e outras empresas que tinham no jornal um veículo perfeito, o uso dos recursos fazia com que volta e meia a empresa entrasse em dificuldades.
Por sorte, naquela época, havia um grupo de empresários que, nos momentos mais difíceis, socorriam o jornal. Sabiam que ele era melhor que os seus donos. Agiam não por amizade, compromisso, ou mesmo medo, mas pelo entendimento de que o serviço prestado pela Gazeta era importante e insubstituível para a comunidade de negócios e o país.
Assim, o jornal prosseguiu não por causa de seus criadores, mas apesar deles; pertencia não a uma família, mas à sociedade. Sempre foi respeitado muito graças ao espírito de corpo dos jornalistas que nele trabalhavam, enquanto seus proprietários eram tratados com reserva.
Lembro de certa tarde em que eu, ainda um repórter principiante, fui fazer uma entrevista com o então diretor do Banco Central, Wadico Bucchi, em São Paulo. Encontrei Luiz Fernando Levy já na ante-sala, à espera de uma audiência. Levy continuou esperando, enquanto eu entrei na sua frente, atendido primeiro.
Para Bucchi, o repórter principiante merecia preferência em relação ao dono do próprio jornal onde trabalhava. Ele sabia que eu estava ali em busca de notícia, fazendo meu serviço para uma publicação de prestígio. Levy estava lá para pedir alguma coisa.
Quando o mercado se torna mais difícil, uma má gestão fica mais evidente e faz a diferença, sempre para pior. Surgiu o Valor Econômico, um concorrente que tomou da Gazeta boa parte de seu principal ativo: os jornalistas. A empresa mergulhou em dívidas e mesmo os seus mais antigos defensores desistiram de salvá-la. Acossado pelos credores, Levy entregou o título a Nelson Tanure, empresário do ramo de transportes, que resolveu investir em comunicação e cobriu-lhe dívidas.
Tanure não tem a mesma familiaridade com as qualidades que fizeram da Gazeta um grande veículo e poderiam recuperá-la. E anunciou que fecharia o jornal por conta da cobrança na Justiça de dívidas trabalhistas anteriores à sua gestão e que, segundo explicou no próprio jornal, não lhe dizem respeito.
Há hoje uma onda de empresários que arriscam tornar-se editores sem compreender a dependência desse negócio de sua matéria-prima essencial – gente. A Gazeta teve seus quadros reduzidos, os salários aviltados. A qualidade do jornal era até miraculosa, dadas as condições de trabalho.
O que assusta hoje na imprensa não é a mudança da mídia impressa para a digital. A verdadeira ameaça ao negócio é a entrada de gente com dinheiro e ousadia, mas sem conhecimento do riscado – sobretudo, da importância da separação entre Igreja e Estado. Para mercadores vindos de outras áreas, é difícil aceitar que não se barganha conteúdo jornalístico por dinheiro, e que a credibilidade, que exige o sacrifício do ganho fácil, é a fonte do sucesso duradouro nesse tipo de negócio.
A Gazeta virará agora uma embrulhada jurídica para que se saiba quem pagará as contas, se Levy ou se Tanure – um tipo de disputa à qual ambos, por sinal, estão habituados. Esse, porém, não é o verdadeiro fim da história. Jornal que sempre analisou em suas reportagens as causas do sucesso e do fracasso empresarial, a Gazeta fez de sua própria trajetória uma parábola do assunto que explorava.
Em sua agonia, a Gazeta deixa como ensinamento o que é capaz de levantar e também derrubar um negócio de comunicação, não importa qual seja sua plataforma – o papel, a TV ou o mundo virtual. E, nesses tempos tão cheios de dúvidas sobre o futuro do negócio da informação, reafirma a convicção de que, enquanto os bons princípios do jornalismo forem praticados, sempre haverá uma imprensa livre e economicamente forte para proteger a sua e a nossa liberdade.