Sento no chão da pérgola da casa do meu pai, Alípio: conversamos ao ar livre, porque ele tomou só a primeira dose da vacina contra o vírus e eu ainda não. Volto e meia venho vê-lo, a certa distância: sinto falta das conversas pessoais, das quais eu sempre tiro alguma coisa. É como visitar um velho oráculo, o único talvez capaz de me entender - e aceitar.
Não falo muito, imerso em reflexões inconfessáveis, mas ele dá um jeito de entrar nos assuntos importantes, à sua maneira, como quem não quer nada. Dessa vez, me diz que está lendo sobre os elétrons, como sempre um pretexto, às vezes surpreendente, para falar de algo mais.
- Descobri que é impossível estudar os elétrons - disse ele. - Porque quando olhamos para o elétron, o comportamento dele muda.
Partindo dessa constatação científica, passamos a discutir a ideia de que pessoas são matéria, no fim das contas, e, como tal, sujeitas às mesmas propriedades físicas.
Dessa forma, deduzimos que uma pessoa que vive conosco nunca é exatamente aquela pessoa, tal qual existe por si mesma. É a pessoa como a vemos, e não só. A pessoa muda, sob a influência da nossa presença e do nosso olhar.
Chega Cláudia, mulher dele há trinta anos, período em que casei e me separei várias vezes. Traz uma cadeira de plástico para mim e uma mesinha, onde me serve o café. Esperamos um pouco, até ela se afastar.
Papai não é adivinho, ou pelo contrário, deve ser, porque de todo modo tenho pensado ultimamente em como aquelas pessoas com quem vivemos tanto tempo possam ser tão diferentes, sozinhas, do que são quando estão ao nosso lado. Às vezes, se tornam, mesmo, deploráveis.
Se elas são mesmo isso, me pergunto por que nos aproximamos delas, em primeiro lugar.
- Existe o papel e a persona - lembra meu pai. - Os atores sabem disso muito bem. O papel é aquilo que está escrito. A persona é como o interpretamos. Quem vê o outro, vê a persona, construída para aquele papel. E que não funciona fora dele.
Penso que então escolhemos alguém menos pelo que a pessoa é, e mais por como ela se mostra para nós. Depois, ela passa a ser aquilo que queremos, desejamos ou precisamos que ela seja.
Quando duas pessoas estão juntas, sob influência mútua, aquilo funciona. Tem gente com sorte de que isso dure a vida inteira. Para outros, funciona por algum tempo, até que a persona cansa, tendendo a voltar à sua própria natureza.
Então, aquela pessoa com você dividia a vida e os sonhos, sem a influência da nossa presença e do nosso olhar, de repente deixa de existir. Às vezes, ela quer mesmo desaparecer do seu olhar, para poder ser o que ela é, de novo. E é preciso entender.
Penso que por vezes podemos ser muito bom juntos, enquanto isso dura. E que aquela pessoa jamais foi, nem será a mesma. Ninguém mais terá alguém que só existiu a seu lado - e jamais será igual.
Para mim a vida ainda é inexplicável e não plenamente observável, como a matéria pura. Porém, me tranquiliza pensar que o passado ao menos existiu, de alguma forma, enquanto durou. Que não foi tudo mentira, não foi engano. Foi algo real, ainda que por algum tempo, sob a influência mútua de duas presenças que se completavam. Acreditar que foi tudo um grande erro é duro demais.
Cai a noite, e saio da casa do meu pai para a rua. Penso que eu sempre fiz isso, transformar a vida ao meu redor, vivendo no mundo das ideias, das pessoas, dos sentimentos, do interesse por tudo, e atraindo outros para isso. Trazendo as pessoas queridas para perto, dividindo a mesa, celebrando a vida.
Penso que não quero qualquer coisa de volta, porque a resposta não está no passado, está em mim. É de mim, do meu olhar, da minha física influência, que surge tudo, sempre. Quero apenas seguir em frente, sendo eu mesmo, fazendo o que sempre fiz.
E nada mais.