sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O Jabuti e o Japonês


Na semana passada, recebi – não sem surpresa – a notícia de que Nihonjin, ganhador do primeiro Prêmio Benvirá de Literatura, tinha ganhado também o Jabuti de Melhor Romance de 2012. O que era para ser simplesmente uma notícia prazenteira veio embrulhada num caso rumoroso, provocado pela atitude do chamado Jurado C, cuja identidade hoje se conhece, e que deu notas de aluno malcomportado a gente como a presidente da Academia Brasileira de Letras na disputa final, como uma espécie de lição exemplar.

O que se seguiu foi ainda mais extraordinário: uma avalanche de despropósitos que cascatearam pela imprensa, alarmante tanto pelo que se disse como pelo que não se disse. Numa subversão da importância das coisas, a revelação dos meios pelos quais se chegou ao resultado se tornou mais relevante do que o prêmio em si. Eu, como editor do livro, procurei ficar de fora dessa discussão, por achar que prêmios deviam ser recebidos – não se deve contestar quando os perdemos por que não se pode tirar o mérito do vencedor, assim como também não deveríamos precisar nos defender quando ganhamos. Nessa edição do Jabuti, eu também perdi em outras categorias, onde achava ter até mais chance. Mas não acho que cabe contestar.

Ninguém duvida da lisura do Jabuti, ainda que se possa criticar a forma pela qual o Jurado C influi decisivamente no resultado. O Jabuti, se tem um pecado, é o excesso de transparência. É raro um corpo de jurados de um concurso qualquer onde se tenha unanimidade. Numa área em que escolhas são subjetivas, cada um em geral tem sua preferência e procura influenciar a decisão de modo a prevalecer seu ponto de vista. Ao divulgar as notas dos jurados, a organização do Jabuti, por vontade de transparência, acabou apenas por mostrar como as coisas são feitas por dentro – como as decisões são tomadas. E um prêmio é como a linguiça – talvez seja melhor não ver como aquilo é feito.

Quando organizamos na Saraiva o Prêmio Benvirá de literatura, um concurso de originais, estabelecemos que o vencedor não seria escolhido por mim ou mesmo pelo nosso corpo de editores, mas por um trio de jurados. Entre os 1.932 concorrentes, colaboramos com os jurados com a indicação feita de forma criteriosa de 10 originais, embora eles pudessem solicitar o exame de qualquer original ou autor inscrito. Em vez de um envelope fechado com notas, a decisão exigiu discussão. No dia marcado, os três se juntaram numa sala da Saraiva, a portas fechadas, com uma única recomendação, feita por mim: “Só saiam daí com um acordo”. Ninguém sabe o que foi discutido lá dentro. O que saiu, após cerca de 20 minutos de conversa, foi o nome de Nakasato como vencedor.

Eu acho esse método melhor, mas acho que não se pode condenar os critérios do Jabuti: são critérios. O prêmio de Melhor Romance sempre foi o alvo central de polêmicas. No ano passado, criticou-se a escolha de Chico Buarque para livro do ano, justamente pelas alegações de que, não tendo vencido em sua categoria, Leite Derramado não poderia ter sido livro do ano; disseram que Chico ganhara pela fama, não pelo conteúdo da obra, em si mesma. E por aí foi. Os critérios foram mudados. Dessa vez, um autor que é absoluta novidade, desconhecido do grande público, vem de Apucarana e abocanha o prêmio máximo da literatura no país. Em vez de dizerem que afinal surgiu uma novidade, como provavelmente quis o Jurado C, ou questionarem outras categorias, nas quais foram aplicadas as mesmas regras, multiplicaram-se as insinuações de que o Jabuti de romance não pode ir para um estreante.

Aqui, preciso defender o meu autor. Oscar Nakasato não é um estreante qualquer. Venceu um concurso de originais com outros 1931 concorrentes de todo o Brasil. Nunca um prêmio voltado para originais foi tão disputado. Entre os concorrentes, estavam autores consagrados, muitos publicados pelas melhores editoras do país, incluindo finalistas do próprio Jabuti em que ele se saiu também vencedor. Nakasato não fez nada para ganhar o prêmio Benvirá, além de inscrever-se no concurso, em 2010. Certamente não venceu graças ao nome ou à fama em outras áreas. Venceu, simplesmente, porque escreveu um livro extraordinário, até então desconhecido pelo mercado.

Tem gente que se esquece de que até Machado de Assis, um dia, foi um estreante. Para Nakasato, com certeza, foi muito mais difícil vencer o Prêmio Benvirá que o Jabuti. É muito maior a façanha de ser publicado pela primeira vez, entre tanta gente que escreve, ainda mais num prêmio tão disputado, que a de um autor publicado ganhar o Jabuti. Com o prêmio máximo da literatura brasileira seguindo-se ao outro, o professor de português de Apucarana se tornou uma espécie de Lula da literatura, saindo do nada para chegar a um lugar onde jamais sequer poderia ter imaginado - uma dessas trajetórias extraordinárias que parecem um conto de fadas. E, assim como Lula, tornou-se uma vítima de preconceito. Se até Chico é apedrejado em praça pública por conta do Jabuti, o que dizer de um autor interiorano com a discreta alma dos nipônicos.

Com uma nota 9,3 de média entre os jurados, Nakasato poderia ter ganho o prêmio sem a ação heterodoxa do Jurado C, ao rebaixar drasticamente a nota dos candidatos ao prêmio mais conhecidos . Nenhuma discussão diminui as qualidades do livro. Com essa recente mania de voltar-se contra tudo, e desprezar o talento nacional, o Brasil precisa de um pouco mais de respeito. E abrir os olhos para uma nova realidade. O Prêmio Benvirá, que mobilizou durante meses os interessados em literatura e tornou-se um marco com seu número recorde de inscrições, revela que existe um imenso potencial ainda inexplorado no mercado, e que começa a se manifestar espontaneamente, graças à liberdade de expressão e de publicação que a internet permite. Velhos valores estão sendo subvertidos. E a antiga elite do mundo do livro resiste ao inevitável, pois no futuro não serão críticos ou editores os agentes definidores do que é ou não é bom. O mercado livre virtual já começou a produzir seus próprios fenômenos. Dá acesso a um professor do interior do Paraná a todo o mercado do livro, do Brasil à Pomerânia. Preparem-se para mais surpresas.

Enquanto a imprensa se ocupava de descobrir a identidade do Jurado C, deixou de ver outras coisas relevantes. Pouca gente sabe, por exemplo, que a Editora Saraiva, por meio do Prêmio Benvirá, distribuiu gratuitamente 25.000 exemplares de Nihonjin a bibliotecas e docentes, um esforço para disseminar a leitura. E isso foi possível mediante o patrocínio da International Paper – um esforço pela educação onde não entrou, portanto, um centavo do governo.

O Prêmio Jabuti, como em outros anos, presta mais uma vez um serviço inestimável à cultura brasileira. Lembra, em primeiro lugar, que é apenas um Prêmio, numa área em que duas opiniões de pessoas diferentes nunca coincidem; não pode nem quer ter, portanto, a pretensão de ser a verdade final sobre nada. Sua função, isto sim, e bem cumprida, é provocar o debate e chamar a atenção para uma área que se manteria, sem ele, inerme. Caberá aos leitores agora conferir as qualidades do livro, saindo da sua posição de conforto ou indiferença.

O episódio nos oferece, desta vez, ainda mais - outro serviço prestado pelo Jabuti para a sociedade brasileira. Ele ajuda a derrubar preconceitos, tanto os que fizeram os protestos contra Chico Buarque no ano passado, quanto os que este ano poderiam desmerecer um verdadeiro talento.

Gostaria de dar os parabéns à Editora Saraiva pelo apoio que deu primeiro à ideia do Prêmio Benvirá e, agora, ao seu seguimento. Computamos até hoje mais de 600 inscrições para sua segunda edição – o prazo vai até 30 de novembro, dois dias depois da festa da entrega do Jabuti. Nossa experiência é que a maior quantidade de inscrições acontece no último dia – até mesmo nas últimas horas. Os participantes gastam todo o tempo possível para trabalhar em seus originais e entregar o que podem fazer de melhor. Não se pode prometer que o próximo vencedor do Prêmio Benvirá levará também um Jabuti. Talvez isso não aconteça nunca mais. Porém, sem dúvida o Prêmio, desde sua primeira edição, se tornou também algo importante no cenário literário e cultural brasileiro – e uma esperança para outros Nakasatos à espera da chance de suas vidas.

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