quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Eu, o polêmico, e a Assírio & Alvim


O café fumega em cima da mesa na livraria Martins Fontes da Paulista, onde um amigo vai tirando o chapéu e já senta querendo dizer o que andam falando de mim. 

- Você anda muito polêmico - diz ele. - Tão falando aí que você é machista e misógino. E também que você mora em Higienópolis, é muito rico e anda de Mercedes.

Dou risada, é claro. Moro em Higienópolis, de fato, mas no resto vejo em funcionamento as perversidades desse mundo de hoje, em que as pessoas já expressam seu preconceito sobre o que não conhecem, sem sequer dar um google e consultar a wikipedia.

Isto vem desse mundo novo onde eu caí meio de paraquedas, desde que me tornei editor no Brasil do selo Assírio & Alvim, principal publicador de poesia de qualidade em Portugal, que tem aqui muitos, qualificados e opiniáticos leitores.

- Que mais?

- Falam também que você anda se aproveitando da editora portuguesa para publicar seus livros.

Não é a primeira vez que sou um estranho no ninho e causo algum alvoroço. Ao contrário, estou até acostumado a navegar em mar encapelado. Já ouvi de tudo, pelas coisas que escrevo ("escrever é fazer inimigos", diz o professor Fernando Morais) e sei perfeitamente que o brasileiro gosta de falar mal de tudo, especialmente quando não tem conhecimento de causa. 

Por coincidência, está saindo agora a segunda edição de meus dois primeiros livros de história (A Conquista do Brasil e A Criação do Brasil), que reforçaram a minha impressão de que a vocação para a cizânia brasileira vem de longe. Mais precisamente, de quando havia neste território uma míriade de povos que falavam mais de mil línguas diferentes e viviam se matando entre si, tão divididos a ponto de perderem a guerra para uns portugueses gatos-pingados.

Hoje há nessa seara de debates virtualmente impulsionados  muitas tribos bem modernas. O pessoal que é aficcionado de poesia se reúne muito, em saraus, mesas e congêneres, e tudo isso é regulado por grupos de interesse que acreditam poder ditar o que é bom ou ruim, o que inclui nos dizer como devemos escrever ou o que devemos fazer no nosso trabalho.

Esses grupos de hoje em dia, e não digo só da poesia, como de tudo, servem para cancelar, maldizer, avisar e domesticar pessoas novas, estranhas ou rebeldes, de modo a servir a seus interesses. Eu acho todos os interesses legítimos, mas espalhar mentiras e maledicências não é a melhor forma de protegê-los. 

Há algumas coisas verificáveis a meu respeito que quem não me conhece, se tiver real interesse, poderá facilmente saber. A primeira delas é que eu respeito e mais, aprecio o diferente sob todas as formas - sexos, cores, idades, categorias e classes -, que eu defino apenas como gente.

Eu me orgulho de pertencer a uma geração que transmutou a antiga ditadura militar no Brasil numa democracia, geradora dessa liberdade de que hoje desfrutamos, em que cada um pode falar o que quiser, ainda que seja para o mal, e defender seus direitos e interesses. Essa é inclusive a história que eu conto num de meus poemas em livro, Asas sobre nós, publicado pela Assírio & Alvim, misturada a uma novela de amor e que reflete, creio, esse espírito da minha geração.

Colaborei como jornalista e editor, numa redação de revista em que virávamos madrugadas acreditando estar mudando o Brasil e o mundo - e mudamos, mesmo. Como autor e editor, ainda sou jornalista, o que me permite defender e fazer muitas coisas diferentes entre si, algo que hoje parece ser desqualificado propositalmente por quem quer impor uma ideia única. Em que pese haver o mau jornalismo, o próprio jornalismo e os fatos (isto é , a realidade) passaram a ser atacados na sua essência pelos monopolistas da moral e da opinião.

Eu posso ser um machista misógino, mas na Assírio & Alvim publiquei o livro Sal, da Mar Becker, sobre o universo feminino e a família tal qual ela a conheceu em Passo Fundo, e que está aí nas paradas de sucesso, assim como o Pangeia, da Mariana Basílio, outra  poeta extraordinária, vencedora do Prêmio Biblioteca Digital. Como romancista, escrevi "Anita", sobre Anita Garibaldi, um ícone da luta feminina que poucas mulheres conhecem ainda hoje.

Falam por aí muita coisa contraditória,  o que faz tudo ser verdade, ou tudo mentira, ou pelo contrário. Dizem que sou de direita, porque escrevi um perfil em livro do João Doria, que esteve no centro da crise toda da pandemia, no seu tempo de governador. Mas escrevi também sobre o bispo Edir Macedo, e nem por isso tenho afinidade com a Igreja Universal. Tem gente também que diz que sou comunista, porque escrevi Xal, a história da Adriana Graças Pereira, menina de rua que virou líder de rebelião em presídio feminino. E por aí vai.

Sobre publicar meus próprios livros, a verdade é que eu tenho livro publicado por diversas casas editoriais. Meu último romance saiu pela Record. Os livros de história (dois estão sendo relançados, depois de várias reimpressões da primeira edição, e o terceiro deve sair em janeiro), estão na Planeta. Já publiquei pela Editora Globo, pela Objetiva, num selo que está hoje com a Companhia das Letras, com a editora Matrix (um livro que fala sobre a Era da Intolerância, por sinal), a Moderna... A lista é grande.

E por que a Assírio & Alvim? Primeiro, é bom que se diga, eu não estou me aproveitando de ninguém para lançar livros meus, até porque a editora é minha, e não de portugueses. Talvez valha a pena contar essa história. É interessante.

Há três anos, na minha primeira visita a Portugal após a pandemia, começava a pensar em publicar poesia, algo que no passado escrevia apenas para mim mesmo, achando, como muita gente, que não dava dinheiro - e, como eu vivo de vender livro, isto ficava em terceiro ou quarto plano.

Meu primeiro editor, Pedro Paulo Sena Madureira, hoje professor de literatura e arte, foi quem me incentivou a publicá-la, depois que lhe mostrei duas versões de um mesmo livro - uma em prosa, outra em poesia, com o título de Além da Memória. Trabalhou no poema, leu inteiro para mim em voz alta, fez comigo o mesmo trabalho que com Adélia Prado, que lançou na antiga Nova Fronteira. Essa história está relatada aqui e aqui.

Em Portugal, fui atraído na feira de Lisboa pelo estande da Assírio & Alvim, dentro do pavilhão da Porto Editora. Que livros maravilhosos! Mas foi algo passageiro. Como negócio, eu pensava mais em uma parceria para lançar o selo da Porto no Brasil e falei com seus editores. 

Sabiam que eu tinha sido diretor editorial da Saraiva, onde fiz um selo e um prêmio literário (Benvirá), um negócio que cresceu muito, inclusive com o lançamento de novos autores. Consultaram pessoas do mercado a meu respeito e me deram um voto de confiança. Em vez do selo Porto, porém, espontaneamente, me ofereceram... Assírio & Alvim.

Lembrei do estande maravilhoso com aqueles títulos todos e pensei: assim como na Saraiva, quando fiz para os autores o trabalho que fazia para meus próprios livros, gostaria que os autores brasileiros fossem valorizados assim, como na Assírio de Portugal, onde eles são tratados como um patrimônio nacional. 

Os portugueses celebram sua cultura, nesse sentido, de uma forma admirável. Sobretudo para gente como nós, brasileiros, que nos habituamos a viver divididos, atirando em nós mesmos, de maneira que nossos artistas e a civilização brasileira permanecem sempre sob ataque, o que vem só em nosso prejuízo, tanto dentro como fora do país. Para maldizer também o Brasil, como brasileiro, creio que essa é uma das causas da nossa pequeneza, apesar do tamanho das nossas riquezas.

Fiz com a Porto Editora um acordo de licenciamento da marca, operada por uma editora (Autores e Ideias) que é minha, com algumas vantagens operacionais para obter conteúdo. Em vez de lançar livros de interesse geral, minha primeira ideia, preferi manter a linha editorial da Assírio em Portugal, brilhantemente dirigida pelos seus editores, de quem me tornei real amigo e admirador.

Comecei a lançar os livros, com esta parceria, mas recursos próprios. E, como todo lugar novo onde a gente aparece, e em que ninguém tem a obrigação de te conhecer, passei aos poucos a entender a necessidade de lidar com o enviroment e explicar a minha intenção.

Não é o capricho de um milionário. Sou autor, filho de jornalista e professora, ganho a vida escrevendo desde os 19 anos de idade, e acho que tenho também uma missão informativa e educacional. Seria ótimo ter bastante dinheiro, não para comprar um Mercedes, mas para fazer mais livros. A minha pequena pretensão de colaborar com a cultura, dessa forma, prossegue na medida do possível.

Agora mesmo estou lançando Dobra, de Adília Lopes, um livro de mais de 1000 páginas que, importado de Portugal, custa 600 reais. Aqui, estou lançando por 159 reais. 

Consegui apoio do governo português para lançar algumas obras, o que me permite transferir esse benefício ao leitor, reduzindo o preço.

Para mim, essa é a função do subsídio estatal: dar acesso ao produto, e não encher a burra do empresário.

Há muitos autores que são editores e vice-versa, inclusive dos próprios livros. Eu poderia fazer meus livros de poesia, assim como os outros, num selo diferente. Aliás não é má ideia e tenho pensado em reeditar meus livros mais antigos como faz o José Roberto Torero, que está relançado seu backlist num simpático selo chamado Padaria de Livros.

Acho que não faz sentido eu ter uma editora de poesia e publicar os livros num concorrente, até porque me tornei, nesse segmento, também concorrente. 

Fui a Portugal pensando em fazer um livro de poesia e voltei com a editora inteira, uma dessas coisas estranhas que frequentemente acontecem comigo. Porém, procuro abrir esse caminho que criei para mim também a outros. Estão todos convidados, portanto, a embarcar nesta viagem, sempre em mar encapelado, mas que me anima a procurar um bom porto, para nós e este país.

 



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