- ... Então ficamos em águas de bacalhau - diz Maryia, enquanto dirige o pequeno Peugeot rumo ao Porto, onde vamos ensaiar o espetáculo com música ao piano por Enoé Ferrão, poesia minha e ela, Mariya, como minha intérprete.
Dou risada.
- Que foi? - pergunta ela, surpresa. - Nunca ouviu?
Explica então que, como o bacalhau fica longo tempo na água, para dessalgar, os portugueses usam essa expressão quando tudo anda meio parado.
- Ah.
É um prazer estar entre os portugueses, não somente pelas cidades tranquilas, os cenários espetaculares, o valor que dão à cultura, e como sou recebido em toda parte, com gentileza e admiração pelo que faço.
Portugal está também nessa mentalidade, que está nas expressões, impregnada nas grandes e pequenas coisas, que vão se mostrando no dia a dia.
Mesmo em Lisboa, capital do país, há algo de cidade do interior, como temos ainda no Brasil. Nada de correria e pressão. Há um clima de civilidade e sanidade no ar, que nem a pandemia do coronavírus abalou.
Às vezes é irritante pegar senha da fila no banco, ou ouvir do funcionário que, simplesmente, não dá. É preciso ainda mostrar vacinação e circular de máscara para entrar em ambientes fechados, mesmo em restaurantes, onde se tem de tirar a máscara de qualquer modo, para comer. Porém, há algo de mais saudável na forma como o português lida com tudo isso.
Os portugueses não estão muito interessados na vida corrida contemporânea, nem em queimar etapas. As coisas aqui ainda passam pelas pessoas.
Há filas nas lojas do cidadão, onde se tiram documentos e o CPF português, com o qual se pode alugar um apartamento ou abrir uma conta bancária. A burocracia é pouca, mas estrita.
Não interessa se você acha o processo injusto ou desnecessário. Geralmente ele dá emprego a alguém e não há um espírito competitivo demais nem interesse para eliminar a presença humana das suas tarefas tradicionais.
As pessoas se cumprimentam e não estão com pressa para nada. Há lojas que fecham para o almoço e deixam aquela placa na porta com o horário da volta.
Na Casa das Artes, onde faremos o espetáculo, a pessoa que cuida da divulgação teve um AVC e ninguém mais além dela tem o mailing de divulgação da instituição. Ninguém parece também preocupado em resolver isto antes de saber o que acontecerá com o funcionário.
Ouvi o relato segundo o qual a dona de um teatro, ao fazer uma turnê, fechou o estabelecimento, como se um teatro pudesse entrar em férias, junto com o dono. Coisas impensáveis, talvez, em outro lugar.
Em contrapartida, esse mundo menos exigente com o tempo e tolerante com o que hoje achamos serem falhas tem uma contrapartida. Há cuidado e respeito em tudo e todo mundo é gentil, mesmo na rua.
Há tempo para tudo. Incluindo sentar, conversar com o dono da padaria, ou sentar no anfiteatro ao ar livre de Gaia, onde as pessoas ouvem música, veem o por do sol, namoram e apreciam um dos mais espetaculares cenários do planeta - o Douro lá embaixo, rumando para o mar entre as escarpas escaladas pela cidade do Porto.
Esse espírito está em todas as coisas e se exige mesmo de quem acabou de chegar ali, com espíritos outros. O jornalista Paulo Markun, colega, amigo e que foi meu autor, conta que tentou passar afoitamente por uma senhora na rua e tomou uma lição.
- Quer licença? - perguntou ela.
- Sim.
- Então peça!
Penso nisso ao entrar num restaurante vazio, em contraste com as ruas sempre apinhadas de gente, principalmente nas mesas dos bares e restaurantes das calçadas, sempre cheias de música e alguns pedintes tão educados que dá vontade de pedir dinheiro também a eles.
- Boa noite! - diz o atendente, com um sorriso, possivelmente, sob a máscara anti-Covid.
O jantar: vitelo assado ao vinho, com batatas no bafo, vinho da casa e, de sobremesa, doce da casa - bem ao gosto de infância, um creme com raspinhas de bolacha maizena, tradicional no país.
No final, pago a conta e o rapaz pergunta se a comida estava boa. Ao ouvir os elogios, se despede.
- Então ainda é uma boa noite!
Viu?
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