segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Meu romance preferido



Existem os livros preferidos dos leitores. E os preferidos de um autor, entre seus próprios livros.

A quem pergunta qual de meus livros é meu preferido, uma só resposta: Campo de Estrelas. Talvez não seja meu melhor livro, em técnica, resolução ou mesmo ambição. Certamente é o que foi pior lançado. Todos os romances de um autor falam ao seu coração. Ele é meu preferido por uma só razão: as pessoas que envolve.

A primeira delas: meu pai. Claro que o pai do livro, inspirado nele, é quase ele. Claro que a viagem do livro, entre pai e filho que juntos rumam por terra a Macchu Picchu, foi também uma viagem de verdade. Coisas da literatura, a fantasia que acrescentei ao romance às vezes me parece muito real, tanto quanto a realidade pode parecer às vezes fantástica ou fantasiosa. O mendigo misterioso, travestido de rei em farrapos, foi um personagem que vimos de fato em La Paz. Que eu e ele não esquecemos.

Meu pai diz que não se lembra de detalhes que eu conto no livro. Fatos que eu tenho como reais podem ser mesmo fruto da imaginação. E ele lembra de coisas que já me escapam. Nunca saberemos ao certo. Já lá vão mnuitos anos, há a traição da memória e a diferença de pontos de vista. Mas foi estranho esse encontro de memórias por meio do livro. Foi estranho o simples fato de meu pai ter lido o livro. Ele, que me fazia ler todas as noites, antes de dormir, quando eu era um projeto de gente (ainda sou).

Sim, meu pai lendo um livro que escrevi. E, depois de ler, me deixou uma mensagem. Esta:

"Querido filho, prezado autor Achei lindo e comovente este final. É claro que sou suspeitíssimo não apenas por ser personagem, companheiro de personagem e pai do autor. Mas sobretudo admirador do estilo e sobretudo da coragem de se revelar publicamente. Fica sendo um livro de aventuras, diário de viagem, literatura juvenil, novela romântica, tudo dependendo da página em que o leitor estiver."

*

Outro personagem caro do livro é o do médico, identificado como Roger. Houve um Roger de verdade - Eric Roger Wroclavski, que tratou do pólipo na bexiga de que fui vítima, me salvando a vida.

Eric morreu há cerca de um ano, vítima de câncer na próstata, que descobriu quando já era tarde demais - ironia cruel, caiu pela doença que tratava. Eric era um herói, que lutava diariamente acima de forças humanas para salvar a quantos pacientes podia. Não sabiamos que ele mesmo sofria do mal que combatia diariamente, pois a ninguém contou da doença. Nem à família. Nem aos médicos que com ele trabalhavam.

Fui ao hospital visitá-lo. Li para ele os trechos do livro em que aparece. Achou que eu devia ter posto o nome dele de verdade. Se eu soubesse o que ele sabia, pensei, teria escrito um romance muito melhor. Nem o mais imaginativo ficcionista poderia imaginar que o médico estava mais doente que o pacioente, e as perguntas que me fazia sobre a vida, literatura e como encarar a vida tinham para ele interesse capital. Comungávamos do mesmo medo.

Depois de saber que ele era um homem marcado para morrer desde o início (ficamos doentes na mesma época), todas as nossas conversas ganharam para mim um novo sentido. "Você devia ter me contado", disse eu. Eric riu. Mal se movia na cama, e riu. Eric salvava vidas, mas só temporariamente. Só os livros podem eternizar realmente as pessoas. Essa é a pretensão da literatura - perenizar estrelas tão fugazes com um brilho capaz de ficar no tempo. O sentido desse meu Campo de Estrelas, onde está reservado lugar para todos nós.

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