O poeta e dramaturgo Marcelo Ariel está na mesa do II Festival de Poesia promovida pelo departamento de Letras da USP, com o tema "poesia contemporânea". Tarde quente de sexta-feira, há uma breve paz entre cartazes da guerra ideológica, pregados nas paredes da honorável escola. Com um chapéu de palha de lavrador e camiseta de Miles Davis, ele fala.
Fala, não; ou não apenas fala. Coloca som de pássaros como sonoplastia, canta, declama. Diz que ele mesmo, Ariel, é o cavalo de Exu e seu objetivo é a destruição, para a substituição da realidade por um "mundo digno". Lê um poema inédito: o "vazio vai iluminar o Brasil".
Acaba de lançar um livro pelo Círculo de Poemas (A água veio do sol, disse o breu), onde há poesia que poderia ser chamada de "negra", por tratar do tema e promover essa voz. Para ele o negro não é um tema político, é a vida. "Como ser um negro II" é o poema em que ele escreve como sua própria mãe, até o dia em que nasce, um livro que pretende "não terminar nunca".
A poesia de Ariel, porém, vai além dos temas da diversidade: ela é ponto de partida para o universal. Não defende um interesse, um gênero, uma raça: sua poesia é filosófica, humanista, geral. Expulso da escola, ele diz ter se formado na rua, a "universidade desconhecida". Diz representar o "pensamento coral" e fazer parte de um "oceano de vozes contrárias".
Tem o privilégio de pertencer à corrente dos poetas contemporâneos ainda vivos, o que lhe permite estar em todos os lugares, ao mesmo tempo em que, como um poeta sem tribo, ou da tribo de um só, está em lugar nenhum. Ele me confirma algo que digo há muito tempo: o poeta é um ponto infinito.
Os vivos se ligam ao seu tempo, e isso deve ser a "poesia contemporânea". Ariel escreve sobre os "transe-entes" da vida, que não enxergam o que ele enxerga e, portanto, não sabem ou não entendem viver. Em busca da clarividência, evoca novos significados e combinações da palavra, suas conjugações, produzindo novos sentidos para o mesmo. Invoca os mistérios inexplicáveis. "O corpo é o nosso pajé", diz ele. É um feiticeiro e também um Quixote, contra os moinhos da ignorância.
A busca semiológica da poesia no mundo de hoje quer, diante de tanta informação, encontrar novos significados, ou que sejam de novo verdadeiros. Num mundo sem verdades, ou de pós-verdades, a própria palavra perde seu sentido original: porém, da sua recombinação, vêm novas edificações mentais e emocionais.
A diferença de Ariel para outros é que ele usa a beleza da expressão para rasgar a realidade. Há no seu desconcerto a intenção de destruir o mundo conhecido: um sentimento que não é do negro, mas da contemporaneidade. Intencionalmente ou não, essa realidade rasgada como papel picado forma uma nova massa reciclável, transformada em energia, fonte do mundo de Ariel, ou pelo menos do mundo como gostaria que fosse.
A poesia contemporânea não existe: existe só o poeta, o vivo e o morto. E a arte, a única realidade, objeto de seu trabalho. Na sua confecção, Ariel não inventa palavras, como os neologistas do construtivismo, que desconstruíam e reconstruíam a palavra como tijolos semânticos de edifícios inesperados. Mas a usa como arma, até contra ela mesma. "O problema é a linguagem" diz ele. "Precisamos fazer um curto circuito da linguagem."
Coloca o desafio de trazer o sonho para a realidade. "Essa é a grande viagem", diz. Nesse esforço geral para transformar o visto em não visto, Ariel ataca a ordem com fúria niilista. O Breu do título do livro "é nossa memória mais antiga", explica. É a escuridão, mas ele deixa entrever um pouco de fé: a regurgitação do velho pode produzir não apenas algo reciclado, mas o novo, e o melhor.
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