Olá Roberta, tudo bem?
Desculpe invadir o seu tempo, não sei nada da sua vida, nem como você apareceu aqui na timeline, deve ser coisa dos algoritmos.
Você pode perfeitamente me ignorar, ou me bloquear se quiser, mas ainda assim eu vou escrever. É bom escrever, mesmo com a possibilidade de que você não leia, de que ninguém leia, ou de que alguns leiam, mas não compreendam.
Acabei de ver The Pillow Book e queria te agradecer a involuntária indicação. E fazer alguns comentários, de qualquer maneira.
É preciso certo refinamento para apreciar desse filme, certamente: não é só uma só uma questão de gosto, ou de estética, como também de certos sentimentos e preocupações, que a meu ver pouca gente tem.
Não é todo mundo que tem o prazer de ver a vida como ritual (algo que japoneses e chineses fazem tão bem). Para esses, certamente o filme ajuda a gente a pensar e aceitar como a vida é feita de nossas obsessões, que influenciam tudo: o que fazemos, como amamos, enfim, como vivemos. E a vida, assim, certamente, é muito mais rica.
Para mim, que vivo de escrever, há esse interesse adicional, de quem procura dar a tudo algum significado. Somos todos tela em branco e nós mesmos vamos escrevendo o que nos interessa, beneficiários e ao mesmo tempo vítimas de nossas mais particulares obsessões.
A mulher (que linda mulher), o editor (também um obsessivo), o namorado (ah, como é possível sofrer por uma mulher). A atmosfera do filme, como naquela canção em francês (que perturbadora cena de amor).
Ficam as perguntas, que eu sempre me fiz. Será a infância dela, a relação com o pai, que a fez assim? Ou as obsessões vêm da natureza, nascemos dessa forma?
O que fazer com isso: tentar superar ou vencer as obsessões, ou deixar que elas nos levem a um mundo às vezes misterioso?
Para nós, que escrevemos, não importa aonde, sobre o que, ou em cima do quê, escrever se confunde com a vida. A vida acontece e todo o tempo refletimos sobre o que fazemos, escrevendo.
E nada mais bonito, especialmente no amor, que deixar isso marcado no próprio corpo, mesmo com a leveza das palavras que depois escorrem com a água do banho. Assim a matéria, de existência tão banal e efêmera, fica ainda mais bela, e chega a um estado superior.
Só quem transforma a vida em ritual, em símbolo, conhece a si mesmo melhor, e leva uma vida mais profunda e com significado. Temos uma vida só, não é? E são as nossas obsessões, algumas inobserváveis à flor da pele, que tornam essa passagem, para muitos tão sem sentido, em algo que realmente vale a pena.
Thales
PS. Queria te contar, Roberta, que já escrevi nas costas de uma mulher. Saiu este poema, e gostei dele tanto que depois quis copiar:
Quero escrever um poema
Não em uma folha qualquer
Mas na tua pele morena
Poema em forma de mulher
Quero gravar no teu rosto
A certeza de um sorriso
Que espanta todo o desgosto
A luz de que eu tanto preciso
Nos teus seios atrevidos
Desenharei os desejos
Nunca mais reprimidos
Libertados por muitos beijos
Nas tuas pernas indecorosas
Estendidas no nosso leito
Desenharei muitas rosas
O caminho por onde me deito
Nos teus pés retesados
Ao se torcer de prazer
Deixarei registrados
Os extremos que podemos ser
No teu dorso de bailarina
Pousado contra o meu peito
Escreverei a uma menina
Que o torto pode ser o direito
No teu ventre liso e fecundo
Farei versos do mais puro amor
Onde eu deixo o meu mundo
E as sementes do meu ardor
Quero escrever-te em poema
Não para fazer mais um livro
Será, meu amor, um sistema
Capaz de manter-me mais vivo
Gosto, Roberta, do cinema japonês, como de outras coisas do Japão. Especialmente o Kurosawa. Quero um dia aprender o shodo, que é essa escrita artesanal. E quem sabe escrever na pessoa certa. Porque só tem sentido escrever na carne de alguém que não escorra da vida com a água do banho.
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