Lá pelos idos da década de 1990, por sugestão de minha mãe, dona Marlene, que encontrou o cantor e compositor Geraldo Vandré alimentando pombos numa praça do centro de São Paulo, escrevi um perfil dele para a revista na qual trabalhava. VIP era então recém separada de Exame, não tinha ainda mulheres seminuas na capa e ele acabou estampando o lugar que os homens nunca mais teriam de novo naquela publicação.
Foi um grande esforço de reportagem, que só levei a cabo pela insistência de dona Marlene, fã apaixonada do artista que marcou sua geração. Durante dois meses, eu cotidianamente passei bilhetes por baixo da porta do apartamento de Vandré, que não tinha telefone, nem mesmo campainha. Até que, um dia, quando eu já estava pronto para desistir, ele me ligou (de um orelhão).
O resultado disso foi talvez a reportagem mais completa que se tenha feito sobre ele, na qual Vandré, num período de lucidez, me mostrou (literalmente, de violão na mão) as músicas que compunha no seu exílio pessoal dentro do Brasil. Explicou seu ponto de vista sobre o período histórico do qual se tornou ícone - a resistência à ditadura nos anos 1960 - e falou da convivência com o próprio mito. Depois disso, ele voltou à tona na imprensa somente uma vez, em uma entrevista à TV Globo, em 2010, na qual falava basicamente as mesmas coisas que já tinha dito a mim, mais de uma década antes.
Há cerca de dois anos, me ligou o jornalista mineiro Jorge Fernando dos Santos, dizendo que escrevia um livro biográfico de Vandré. Foi uma conversa de menos de cinco minutos. Recentemente, saiu o livro: "Vandré, o Homem que Disse Não". Feita sobretudo com recortes do que saiu na imprensa, é um bom apanhado da vida de Vandré, mas não aprofunda nada, nem traz novidades. Passa por isso a impressão de ter apenas explorado o trabalho dos repórteres que conseguiram ter contato com Vandré e a imagem do próprio Vandré.
No livro, há várias referências à reportagem que escrevi. Em certa passagem, Santos diz que eu teria caído em "contradição". Escrevi em dado momento que Vandré "podia ter pensado assim", mas também "podia ter pensado " de outra forma. Coloquei no condicional, porque ninguém tem como garantir que sabe como os outros pensam, ainda mais no caso de Vandré. Eu estava admitindo que não sabia o que ele pensava e aventava duas hipóteses que eram possíveis, ambas. Isso não é "contradição".
Essa palavra incomoda, primeiro porque não é cabível, segundo porque usada sem fundamento parece querer desmerecer ou contaminar a fonte do qual bebe o próprio autor. Se alguém acha que eu caí em contradição, não deveria se apoiar tanto naquele meu trabalho. Há reproduções do meu texto na VIP que ocupam praticamente uma página inteira de livro, incluindo a descrição que fiz do apartamento de Vandré.
Mais preocupante é a falta da reportagem. Alguns brilhantes perfis já foram escritos sem que o perfilado tivesse concordado ou sido entrevistado. É o caso, por exemplo, do célebre perfil de Frank Sinatra assinado por Gay Talese na revista Esquire. Talese passou um bom tempo em Las Vegas, sem conseguir falar com Sinatra, que se recusou a recebê-lo. No entanto, conversou pessoalmente com tanta gente próxima de Sinatra, fez tão boa reportagem, que a entrevista com o próprio se tornou praticamente dispensável.
Este não é o caso de "Vandré, O Homem que Disse Não", escrito dentro do gabinete com material já publicado. É verdade que Vandré é uma figurinha carimbada. Porém, se tivesse falado mais com quem estava em torno, ou aproveitado o que ouviu ao telefone, sem resumir-se ao que leu publicado, talvez Santos pudesse acrescentar algo de novo. Mas não.
Vale a pena ler o livro? Sim, se você é um fâ de Vandré ou se não sabe nada sobre ele. Pelo sucesso que fez, pela mistificação ao seu redor, pelo seu temperamento enigmático, ele continua sendo um personagem instigante. E o livro é um eficiente clipping de tudo o que saiu sobre ele.
Ao contrário do que o livro de Vandré faz parecer, e do atual quadrante do jornalismo, mais baseado no meio virtual, a reportagem não morreu. A mesma Geração Editorial, que publicou o livro de Vandré, lançou recentemente também "20 mil pedras no caminho", do jornalista Jorge Tarquini. Focado na trajetória de um viciado em crack, o livro é reportagem pura. Uma história humana, reveladora, e chocante, do começo ao fim, como retrato da realidade.
Minha opinião sobre Vandré? Ele continua sendo um homem de protesto, ainda que isso signifique renegar o seu papel na década de 1960, dizendo que fazia apenas música, e não protesto. Vandré é como diz uma de suas músicas mais conhecidas: gosta mais de confundir que de explicar.
Com a autoridade de quem fez alguns clássicos da música popular brasileira, criados num tempo em que era mais famoso e ganhava mais dinheiro que o Chico Buarque, ele não deixa de ter suas razões para viver na negação. Muitas vezes, olhando o mundo como está, a gente pensa se quer mesmo fazer parte dele. Para esse mundo, como artista, e cidadão, Vandré continua dizendo não.
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