segunda-feira, 25 de novembro de 2013
A morte e a morte do seu Alvarino
Três meses atrás, era a informação, que teria vindo de uma tia da minha mulher:
- Seu Alvarino morreu.
Que tristeza sem tamanho. Perguntei de quê. De câncer, disseram.
Ninguém menos indicado para morrer de câncer. Quando penso no câncer, penso na vida contaminada das cidades, nas pessoas amarguradas ou estressadas, nos alimentos perniciosos e no ar mefítico das metrópoles. Todas essas coisas que, para mim, sem nenhuma confirmação médica, ocasionam essas disfunções celulares no ser humano. O seu Alvarino, não. Era um puro, de vida, de alma. Até na cara. Albino, tinha o cabelo e a cara brancos. Um anjo, e sábio, porque já estava meio velho.
Plantava. Tinha um viveiro de mudas, em São Bento do Sapucaí. Foi uma das primeiras pessoas que conheci na cidade, quando lá comprei um sítio, faz já 15 anos, ou mais. Uma alma boa. Uma vida boa. E câncer. Câncer! Aquilo me tirava qualquer confiança na vida.
Alvarino estava sempre entre suas plantas, chapelão na cabeça. Fala mansa. Andava com sua velha Caravan caindo aos pedaços sempre cheia de verde saindo pelas janelas, como se fosse o motorista de um grande vaso enferrujado. Vendeu para mim as plantas que coloquei no sítio com tanto carinho.
Certa vez, me deu uma porção de mudas de árvores.
- Os passarinhos estão vindo para a cidade porque já não tem muita árvore de fruta silvestre no campo - disse ele. Fiquei maravilhado em ver aquele homem com uma preocupação que já escapa ao ser humano corporativizado: os passarinhos. - Te dou de graça, se você plantar.
Paguei, fiz questão de pagar. E plantei. Amora. Pitanga. Pêssego. Um monte de coisa. Tudo para os passarinhos.
Certa vez, a meu pedido, Alvarino foi no meu sítio. Tirou pedras que as crianças tinham enterrado nos vértices de velhas jabuticabeiras. Limpou galhos e troncos do musgo parasita que as cobria. Devagar, com amor e atenção, como quem dá banho em uma criança.
- É preciso tirar sempre essas oportunistas - disse ele. E me alertou: - Deixa sempre também molhado em volta, um pingo, sempre. Jabuticabeira gosta de água.
E as árvores nunca foram tão bem. Naquele ano, deu jabuticaba como nunca. (Os passarinhos comeram mais do que eu).
Aceitei a morte do seu Alvarino como um desses fatos tristes da vida, que nos tira as melhores pessoas. A cidade já não seria a mesma, pensei. A vida já não seria a mesma.
E cerca de um mês depois, já dando aquilo como favas contadas, ao passar pela cidade, cruzei rapidamente com o velho viveiro. Com um rabo de olho, avistei mas não acreditei. Estava lá ele, seu Alvarino. Caminhando ali entre as plantas. No meio de uns empregados.
Primeiro, pisquei os olhos: achei que tinha me enganado. Depois, brequei o carro. Deixei-o encostado de qualquer jeito na calçada e voltei vinte metros, a pé. Entrei no viveiro. Feliz como nunca, diante daquela ressurreição.
- Seu Alvarino! Me disseram que o senhor tinha morrido!
Ele estava magro, de cara chupada, movimentos ainda mais lentos que os de sempre. Confirmou que tivera câncer. Passara maus bocados, num hospital de São José. Mas não tinha morrido, não. Estava vivo. E melhorando.
Foi um milagre: eu exultava. Conversei com ele um pouco, contei que tinha mudado para outro sítio, um pouco mais distante. Precisaria de mais plantas. Queria reflorestar a cabeceira da água. E disse que estava muito satisfeito pelo fato de ele estar ali. Fui embora revigorado.
Muito bem. Digo agora a que vem isto tudo. Hoje, abro o Facebook, três meses depois. E dou com a notícia: "Seu Alvarino morreu".
Pensei: Ah, não. De novo?
- Tem testemunha? - perguntei a minha mulher.
- Três pessoas diferentes já confirmaram.
É duro ter uma tristeza duas vezes. Duas mortes, da mesma pessoa, em tão pouco tempo.
Acho que sempre que passar ali, na estrada, na altura do viveiro, vou dar uma olhadinha. Só pra ter certeza. Ou na esperança de ver o amigo, vivo, de novo. Outro milagre. A morte e a morte do seu Alvarino ainda não me convenceram. O mundo precisa das pessoas boas. E isso devia ser mais forte que esses golpes do destino.
Só me conforta pensar que o Alvarino deixou muita vida por aí. Não só por seus filhos, mas pelo que fez pelos outros e pela natureza. Com aquele seu jeito sem pressa de viver, até mesmo de cobrar a conta, de quem não liga para o tempo. Existe muita coisa que ele literalmente plantou, ou ajudou a plantar. Com seus cabelos brancos, as mãos brancas, as botas sete-léguas, o chapelão de palha.
Essas sementes estão por aí. E, com o tempo, podemos colher.
Caraca! Que texto bacanudaço!
ResponderExcluirAté me senti amigo íntimo de Seu Alvarino. E fiquei com vontade de plantar mais uma árvore.
Parabéns, Thales. E sinto muito pela perda.
parabéns pelo texto..nao te conheço..mas conseguiu explicar em palavras um sentimento bacana...
ResponderExcluirMaravilhoso este texto. Conseguiu traduzir em palavras o sentimento de muitas pessoas. Sentiremos saudades deste homem valoroso.
ResponderExcluirbelo texto...e eu que nem conheci o Sr Alvarino, me emocionei. Sei que meu amigo Galileu o conhecia , e fiquei triste por ele quando li a notícia.
ResponderExcluirSeu Alvarino deixou sementes, e isso foi sua missão . Que linda missão de vida! Parabéns!
Texto lindo, conseguiu traduzir em palavras um sentimento muito profundo. Com certeza sentiremos falta falta desse homem valoroso em seu viveiro.
ResponderExcluirEu tive a benção do convívio. Vô querido dos meus filhos, que a eles transmitiu muita sabedoria e amor. Meu sogro do coração...Agora nos deixou, foi deixar o céu florido e perfumado. Ficam a saudade e a graça de ter podido conhecê-lo...
ResponderExcluirO texto é muito emocionante, chorei ao fazer a leitura e não consigo ler sem chorar, pois onde diz : . Entrei no viveiro. Feliz como nunca, diante daquela ressurreição. Isto é o que gostaria que acontecesse, pois uma pessoa como o Alvarino ., ficara no nosso coração para sempre. Poderia ficar escrevendo um texto extenso a respeito do que foi este meu cunhado>AMIGO< , desnecessário dizer que o VAZIO já toma conta de todos da família.
ResponderExcluirSou amigo e contemporâneo de seus dois filhos, poderia contar aqui tantas histórias quantas são as lágrimas que descem pelo meu rosto agora. Você o descreveu bem, uma pessoa de alma pura, de fala serena, capaz de tomar e comunicar uma decisão como um pai dando um conselho, independe de qual fosse. Não tenho dúvidas que sua conexão com o que mais belo Deus nos deu de presente, faz dele alguém muito bem vindo na casa do Pai. Descanse em paz meu amigo.
ResponderExcluirEu como filho desse grande Homem, sinto nesse momento muita tristeza pela sua falta, mas ao mesmo tempo feliz pelo o que escrevem Dele, pois Ele realmente foi essa pessoa descrita no texto. Choro mas tenho a certeza de estive ao lado Dele nos momentos mais dificeis, infelizmente sem poder curá-lo, porém tenho a certeza que por mais falta que Ele faça a todos, ninguém irá sentir como eu, que praticamente vi sua partida, SAUDADE MEU GRANDE PAI, nossas noites, sei que o Sr. sabe que tudo que eu podia eu fiz e com muito amor, bendita hora e bendito dia (25/11/2013), que o Sr. resolver nos deixar, nunca VOU ESQUECER, minhas noites de sono ainda são interrompidas com sua linda IMAGEM. SAUDADE.
ResponderExcluirSeu Alvarino realmente foi um grande homen! Parabéns pelo texto e pela linda homenagem. A vida só nos perpetua, quando plantamos principalmente o amor!!!
ResponderExcluir