Certa vez, há muito tempo, visitei o escritor Luis Fernando Veríssimo em sua casa no bairro de Petrópolis, em Porto Alegre. A conversa, em si, foi muito desinteressante; embora seja muito produtivo e divertido quando escreve, Veríssimo é pessoalmente um sujeito lacônico - o encontro não durou mais que quinze minutos, por falta de assunto. Entrar na casa dele, porém, foi algo fascinante. Eu tinha a sensação de que a conhecia - e, aos poucos, entendi que a conhecia mesmo.
Trata-se da mesma casa onde morou seu pai, Erico, que o filho deixara exatamente como estava, e é descrita num livro de memórias que já foi publicado com dois títulos diferentes: Solo de Clarineta, ou O Homem no Espelho. Lá, Erico vai falando de como cada livro lhe permitia comprar algo para a casa. Cada peça da mobília representava um livro; quando olhava para o sofá, a cômoda, os tapetes, ia vendo... Clarissa, Olhai os Lírios do Campo...
Os objetos contam também uma história, ainda mais aqueles que nos permitem escrever os livros, e com os livros refletir sobre a vida - além, claro, de pagar as contas. Estou mudando de casa, e na mudança me dei conta de que guardei a maioria das máquinas de escrever com que trabalhei. Vou colocando as peças lado a lado, agora em cima de uma nova estante, e vejo um filme; cada uma vai contando a história de algum livro que escrevi e de um tempo que vivi. A cada máquina, um livro; a cada livro, um pedaço de memória, da minha vida e de uma época. São também um retrato da extraordinária evolução do próprio próprio instrumento da escrita, desde a velha máquina de escrever ao laptop contemporâneo. Minha sensação é de que a vida vai virando história. O tempo é vertiginoso; que esforço enorme de trabalho em meio a tantas mudanças!
Tiro a poeira que recobre a capa da Olivetti-Underwood Studio 44, a primeira máquina em que escrevi. Lembro da sensação de trabalhar nela, do orgulho; sonhava com ela desde menino, quando entrava no escritório de meu pai, enfumaçado por horas por seu cachimbo recheado do fumo achocolatado que incensava o lugar. Eu navegava entre as brumas até encontrá-lo, guiado apenas pelo tacleteclaque familiar que vinha da mesa onde ele trabalhava. Meu pai escrevia, sozinho, na sua neblina; essa lembrança me acompanhou quando comecei a transcrever na sua Studio, aos 17 anos de idade, as gravações das histórias que meu avô contava, e que, mais tarde, eu transformaria em meu primeiro romance, Filho da Terra.
Desenhada por um arquiteto, o italiano Marcello Nizzoli, com o engenheiro Giuseppe Beccio, a Studio 44 era fabricada em Barcelona, na Espanha. Tinha qualidades incomparáveis; era uma máquina de design harmonioso, com linhas que carregam a personalidade dos anos 1960, a última década realmente classuda da História; era pesada o suficiente para se manter firme na mesa, com teclas que pareciam impulsionadas por algo além dos dedos: um conjunto com o equilíbrio perfeito para se escrever.
Como lembrança, guardo ainda algumas páginas originais de Filhos da Terra, um livro que levaria sete anos para ser concluído. Comecei a escrevê-lo ainda na casa de meu pai, na mesma máquina que ele usava. Eu o terminaria em outras máquinas, quando já morava sozinho, mas compraria para mim, já numa loja de antiguidades, uma Olivetti igual.
Mesmo no tempo da máquina de escrever, eu já gostava da ideia de pode escrever em qualquer lugar. Admirava por isso Jack London, que dizia que o escritor é o único trabalhador a levar o "escritório embaixo do chapéu". Na verdade, aonde ele ia, seguia atrás seu fiel criado, o japonês Nakato, carregando a máquina de escrever do patrão. Sem poder me dar a esse luxo, antes de chegar ao lap top, ainda experimentei a Olivetti Lettera 82, cópia da Hermes Baby, com o mesmo design, menor e mais leve que a Studio: foi a primeira máquina de escrever realmente portátil.
O que parecia uma vantagem, porém, era o seu maior defeito; suas teclas não tinham força para bater no papel e o carro era tão leve que o conjunto pulava sobre na mesa, dificultando o trabalho. Foi lançada em 1983, e tentei fazer nela alguns trechos de Filhos da Terra, mas não rendia muito; assim, voltei à velha Studio 44, onde escreveria a segunda versão do texto, já convertido de mera transcrição das fitas de meu avô em um verdadeiro romance.
Passei então a uma Olivetti Praxis 20, animado com a ideia das máquinas elétricas, que pareciam um grande avanço sobre as mecânicas; as teclas eram mais suaves e acreditei que com isso escreveria mais rápido. Escaldado pelo meu primeiro romance, que anunciara um autor caudaloso, ueria algo que tornasse menos cansativas as horas e dias e semanas a fio de trabalho. Era uma máquina pesada como uma bigorna, e na realidade não representava real avanço sobre a velha e charmosa Studio 44, que recuperou novamente seu lugar.
A era que precedeu o computador foi bastante experimental; comprei, ainda, uma invenção de pouca duração, que hoje pode ser considerada uma raridade de museu: uma Panasonic Thermalwriter KX-W50TH, máquina que escrevia com raios de calor. Apresentava até 15 caracteres na tela de LCD, que podiam ser corrigidos antes de passarem para o papel. Imprimia o texto em papel sensível à luz, como o do fax. Logo se relevou inviável, porque o papel de fax era caro, e incômodo: vinha enrolado e se prestava, no máximo, a escrever bilhetes. Abandonei-a rapidamente, deixando-a quase sem uso; hoje é uma espécie de mosca branca da coleção.
Terminei de fato Filhos da Terra já na era do computador; um desktop montado no Brasil com peças importadas e marca balão que se tornou velharia pouco tempo depois de ser montado. E depois, numa Toshiba 1.000, o Fusca dos primeiros laptops. Quase não tinha memória interna; na tela negra funcionava o antigo sistema DOS, pré-história das telas contemporâneas com sistema Windows. Ele se desvalorizaria tão rápido e tanto que um amigo, ao colocá-lo à venda pela seção de classificados de um jornal, receberia em troca, como a melhor oferta, uma gaiola de passarinho. O meu deve ter ido para o lixo, desfalcando assim o meu acervo de uma peça fundamental.
Meu livro seguinte de ficção, A Quinta Estação, de 2003, foi escrito num já "ultramoderno" Canon Innova Boook 10C. Tinha um processador Intel de 33 MHZ, 170 Mega no HD, 4 Mega de RAM e, espetacular para a época, tela colorida. Além de ser pequeno e prático, apresentava uma grande novidade - foi o primeiro a ter Mouse embutivo no teclado, uma bolinha do tamanho da unha. Quase não possuía memória interna - ela ficava num disco externo. Seria o precursor do Compaq aonde eu escreveria o Sonho Brasileiro e terminaria gloriosamente Amor e Tempestade.
As máquinas de escrever possuem um estranho poder. É como se tivessem um pouco de vida própria; nos conectamos a elas, como um amigo ou parceiro que escreve junto com a gente; é como se lhe devessemos algum crédito pela obra concluída. Lembro das horas em que escrevia no Compaq, em pé, no quarto do apartamento onde morava em Nova York; eu tinha fortes dores nas costas, depois de meses de trabalho, e já não podia me sentar; fiquei tanto tempo olhando para aquela máquina que provavelmente é a coisa para a qual mais olhei na vida; só podia me enamorar. Não consigo achá-lo, como acontece com um amor perdido, e ele me faz falta.
Claro que a mágica da escrita se realiza dentro da nossa cabeça; é confortador, porém, pensar que há uma máquina capaz de nos ajudar. Hoje escrevo meu próximo livro num laptop Toshiba, que comprei há cerca de 6 anos, quando ainda morava nos Estados Unidos; trata-se de uma evolução miraculosa do Toshibinha que valia uma gaiola de passarinho, embora eu saiba que já padece de uma certa caduquice tecnológica. É bom trabalhar numa máquina com a qual temos familiaridade, como uma calça velha e sapatos confortáveis. Cato milho, como se dizia antigamente, quer dizer, escrevo com apenas quatro dedos; sou escritor, e não datilógrafo. A máquina, porém, favorece o trabalho; é relativamente pesada para um computador portátil, e suave ao teclar. A máquina de escrever ganhou infinitas outras funções com a tecnologia, mas para mim o que importa ali é o milagre básico, que ainda se realiza todos os dias, quando sentamos, eu e ela, na solidão que só nós conhecemos tão bem.
Cara, que barato isso!
ResponderExcluirSenti saudades de minhas duas únicas máquinas de escrever, que foram vendidas como sucata para reciclagem.
Cada vez que eu vir um de seus livros, me lembrarei também dessas suas fotos.
Você acabou de linkar parte de suas memórias.