sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

A Ucrânia e um futuro que chegou


O que nos trouxe ao mundo de hoje, no qual as democracias novamente perdem espaço para regimes autoritaristas, como o que avança sobre a Ucrânia, pode ser compreendido, fato por fato, em A Era da Intolerância - livro que publiquei ano passado, pela editora Matrix. Para mim, dele ficou sobretudo esta reflexão.

No fundo, o problema do mundo é que sempre temos dificuldade de tomar medidas amargas, preventivamente, quando tudo está indo bem. Foi assim no avanço da liberdade, da democracia e da economia liberal, que gerou grande riqueza e progresso.

Se está indo bem, para que a preocupação com o futuro? Assim, os problemas decorrentes da própria liberdade foram crescendo. As pessoas vivem mais, a população aumentou exponencialmente. A tecnologia ajudou, mas cortou emprego.

Tudo isso foi gerando em todo o mundo um grande passivo acumulado. Ela se traduz na forma da miséria, da exclusão e da tensão social. Dava para ver que isso aconteceria. Mas como era algo para o futuro, pouco fizemos. Só que o futuro chegou, é agora.

Como sempre, a humanidade espera a situação ficar ruim para tomar alguma providência amarga. Só que essa providência não pode ser a guerra. Ainda mais num tempo em que a crueza da morte num conflito desses chega a nós em tempo real.

A Ucrânia tem uma democracia frágil, que como a de muitos países não resolve a crise, a ponto de ter eleito um presidente que é quase um anti-presidente, uma figura de protesto. E há uma disputa sobre a influência no país entre o mundo ocidental, mais democrático, e a Rússia, com quem a Ucrânia tem de fato uma proximidade histórica.

Kiev, que hoje é invadida pelos russos, já foi célebre bastião da defesa dos então russos soviéticos contra a invasão da Alemanha hitlerista. Dessa forma, não é simples definir a Ucrânia, exceto o fato de que um país pertence aos seus cidadãos, identificados como nação por sua identidade territorial, cultural e histórica.

A situação da democracia no mundo, e os meios de tornar eficazes as políticas para solucionar a crise, na Ucrânia e no mundo, merecem discussão e ação. Mas ação não é a guerra, porque na guerra ninguém tem razão. E, quando essa linha se quebra, perdemos todos.

Mais? Link:
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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Para entender a Rússia - ou não

Canhão histórico no Kremlin
Pra nós que fomos à Rússia na Copa de 2018, fica difícil imaginar o país novamente em guerra. Mas isso não é novidade para eles, que há não muito tempo fizeram uma guerra (e perderam) no Afeganistão.

Os jovens na Rússia falam inglês, tocam rock nas praças, são uma geração globalizada, como no resto do mundo.

Ainda assim, não havia plena liberdade de expressão. As pessoas falam pouco. Há um clima de muita ordem, mas também de um certo medo.

Em Kazã, aonde fui com meu filho ver o jogo do Brasil, ouvi que o Cazaquistão tecnicamente é um país independente (como a Ucrânia). Porém, as pessoas falavam do governo como se pertencessem à Rússia. Tentei que me fizessem explicar como funcionava isso na prática e não consegui.

Fiquei com a impressão de que eles consideram a Rússia ao mesmo tempo como outro país e o seu país, de uma forma não excludente. A Rússia seria assim uma espécie de federação - uma nova roupagem para a antiga União Soviética.

A cordialidade do russo não significa que eles sejam contra a guerra, contudo. A Rússia é bela e tem cidadãos estoicos, capazes de dar a vida pelo que entendem ser o bem comum. Eles defendem o país de qualquer forma, diferentemente do brasileiro.

No estádio em Kazã, pude testemunhar isso. Quando o Brasil perdia, os torcedores russos olhavam para o lado e ficavam indignados com os torcedores brasileiros, que estavam calados. Então o estádio inteiro começou a torcer para o Brasil. Mas eram os russos, que gritavam: "Brasilia" Brasilia!"

Esse espírito coletivo na adversidade, na qual somos tão pouco solidários, chama a atenção, no país. Lembrei disso ao assistir a ótima séria sobre Chernobyl, especialmente o momento em que os mineiros são chamados a ir para a morte, jogar cimento no coração da usina que está derretendo o solo, numa fissão descontrolada. São chamados, e vão.

Ainda assim, é difícil pensar numa guerra dessa proporção em pleno Século XXI, nem importa se há alguma razão. Nos dias de hoje, qualquer guerra é absurda.

Se Putin tinha algum apoio, deve desmanchar como Chernobyl. O mundo não merece isso. A começar pelos ucranianos. Apesar do que diz o governo russo, as cenas que estamos vendo não são de instalações militares destruídas.

As vítimas são gente comum, famílias em sangue, civis mortos estendidos pela rua. Virou um caos a vida num país que ontem já tinha problemas o suficiente.

Quando a intolerância e a ambição matam o bom senso, voltamos à selvageria. Isso não pode acontecer. O caso da Ucrânia é um alerta de que se deve sempre defenestrar os tiranos do poder o quanto antes, de modo a evitar que cometam algum desatino pior.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Elzas e outras


A última vez que vi Elza foi na abertura de uma Flip, em Paraty, há alguns anos. Já estava debilitada e chegou carregada até o palco.

Eu estava na plateia  ao lado da Raissa Castro, editora da Verus, e lembro bem de tudo por causa de um incidente que muitas mulheres acham acontecer só com elas.

Durante o espetáculo, uma mulher, que devia cheirado ou bebido grande quantidade de alguma coisa, começou a dizer que queria me agarrar. E, a certa altura, passou literalmente por cima da Raissa, que estava sentada entre nós, e me agarrou mesmo, subindo por cima de mim como um macaco, tentando me beijar. O espetáculo meio que parou, naquela confusão. A mulher foi retirada de cima de mim à força, por um segurança. 

Aquilo deixou certo constrangimento no ar, mas pude ver o fim do show. Mesmo fragilizada, Elza continuava com sua poderosa voz e, sem sair da cadeira , galvanizava a plateia.

Coisas da vida de editor, que acaba vendo, ouvindo e passando por tudo - do belo ao bizarro. No fim, valeu por testemunhar duas coisas: como uma mulher pode ser e fazer tudo o que se atribui a homens, e a exibição de uma das maiores artistas brasileiras, capaz de provar que o esplendor não tem idade.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Um grande ano

Para mim, 2021 foi um ano maravilhoso.

Lancei dois livros para mim muito importantes. Xal, a história da menina de rua que vira líder de rebelião no presídio, é um livro chocante e, para mim, grande parábola dos desafios de hoje. A história de Adriana é um triste Brasil que o Brasil tem de resolver. E isso começa pela nossa conscientização.

A Era da Intolerância fala de outra das minhas grandes preocupações: a influência do mundo global sobre o nosso mundo particular. Fala das grandes transformações da nossa era.
Talvez seja um livro para ser lido daqui a vinte anos, mas, ao estudar para escrevê-lo, aprendi muito. 

Ele mudou minha maneira de ver a era contemporânea. E reafirma os valores da liberdade e da igualdade, minha razão de viver.

2021 foi também um ano de grandes encontros. Fiz um espetáculo de poesia e música no Porto. Em Portugal, fechei um negócio que me abre novas perspectivas. Conheci lugares e pessoas sensacionais. 

Viajei longe, no mundo e para dentro de mim mesmo.

Sobretudo, 2021 foi para mim um ano de amadurecimento extraordinário. Resultado de experiências nem sempre fáceis, descobri um novo e instigante caminho, que me faz ver de novo o futuro com alegria e entusiasmo.

O aprendizado e o auto conhecimento, que trazem a possibilidade de mudar tudo e construir um futuro melhor, fizeram de 2021 um ano revelador e, como consequência, de extraordinário impulso criativo. 

Escrevi mais dois livros, que me descortinam uma nova etapa da vida, e sobre os quais poderei falar em breve.

Dessa forma, estou muito otimista em relação a 2022. Não só por mim, mas pelo exemplo de que, às vezes depois de grande sofrimento, e apesar de perdas e decepções que deixam marcas fundas na vida, podem existir tempos ainda melhores.

Essa mudança só depende de nós. Não se pode esperar pelo que acontece em Brasília ou o que não depende da gente. O Brasil e o mundo começam por cada um.

Claro que ninguém faz nada sozinho. Por isso, quero agradecer aos muitos amigos e pessoas queridas que acompanharam de perto essa minha transformação e me deram um fundamental apoio este ano. Tiveram paciência comigo, me deram comida, me deram carinho, me deram abrigo e me deram o seu bem mais importante, que é a presença.

É bom ainda ter gente em que se possa confiar. É bom ter gente verdadeiramente ao seu lado. Não precisarei nomear ninguém aqui, pois essas pessoas sabem quem são. A elas um especial muito obrigado.

E a todos os meus votos de que em 2022 tenhamos um ano de realização de sonhos, com saúde e mais harmonia, duas preciosidades da vida que urgentemente precisamos resgatar.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Britânico lembra o Brasil do que é Brasil


O Brasil anda pra baixo, em crise econômica e de ânimo, desacreditado de si. Foi preciso um britânico para lembrar o Brasil do Brasil.

Lewis Hamilton, 7 vezes campeão mundial, teve neste neste domingo passado (13.nov.2021) o seu dia de Ayrton Senna. E o Brasil teve de volta o seu dia de Brasil.

Há vitórias que definem os melhores. Há vitórias que criam as lendas. Ontem, Hamilton foi Ayrton e foi o início da sua própria lenda.

Tomou punições, teve de largar em 20º no treino, acabou em 5º; punido de novo, largou em 10º e ganhou a corrida. Pegou a bandeira brasileira e levou-a tremulando na volta do triunfo, depois ao pódio. Emocionante, especialmente para quem já viu essa “cena” no passado, a começar por ele mesmo.

Foi preciso um piloto britânico de uma equipe alemã para lembrar o Brasil do que é o Brasil. Ou o que pode ser o Brasil.

O país de Ayrton, das vitórias impossíveis, o país do homem que não desiste, o país do homem que sai das cinzas e mantém acesa a esperança. Ontem o britânico Hamilton, pulsante como um brasileiro, foi Ayrton –e, repito, foi Brasil. Resta ao Brasil ser ele mesmo.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Garibaldi, Anita e uma cidade




Quando Giuseppe Garibaldi tomou Bolonha, na campanha de reunificação da Itália, entrou nas catedrais em pata de cavalo, contava meu avô José, por ouvir assim a história pelo pai dele, Mauro. 

Revirou as igrejas e nelas teria encontrado poços - pozzo razzore, dizia meu avô - com facas, cheios de ossos, todos de moças, que sumiam sem se saber até então onde iam parar.

Essa história, contada no meu romance Filhos da terra, sobre a imigração italiana no Brasil, pode ser ou não verdadeira, mas é no que os bolonheses daquele tempo acreditavam. 

O que explica muitas coisas: o anticlericalismo do bolonhês, sua forte politização e tendência para o anarquismo e o comunismo, ligados ao ateísmo, sua defesa da liberdade - a palavra que está junto ao leão no brasão da cidade - e seu amor a Garibaldi.

A figura de Garibaldi está presente em todas as cidades italianas, mas as histórias de meu avô me fizeram muito próximo desse personagem extraordinário, talvez o mais extraordinário da história, e eu sempre o associei a Bolonha. 

Garibaldi está também no meu romance Anita. E aqui, nessa estátua em Bolonha, que para mim tem um significado especial, porque é a cidade das histórias de família. Por coincidência, o primeiro lugar onde fiquei em Bolonha, hospedado a trabalho, foi no hotel logo atrás do monumento, o Tre Vecchi.

Em Bolonha, os Fiorini como meu avô locupletam as placas que homenageiam os partigiani mortos na segunda guerra. Estão no campo, onde lavraram a terra, na comida, que me fala da infância, na história.

Aqui, por tudo isso, eu fico muito sentimental. Especialmente quando sento à mesa, em qualquer restaurante, e me sinto de volta à cozinha de minha avó Dileta. #anitaoromance #filhosdaterra #livros #lendo

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Escrever é como fazer amor

Quando entregava um livro aos editores, Monteiro Lobato costumava colocar, antes do texto, um recado aos revisores: avisava quais eram os sinais utilizados na língua portuguesa. E os mandava colocar no texto, aonde quisessem.

Escrever não é saber pontuação, nem mesmo saber português. Escrever é pensar no teclado, imprimir as ideias. O trabalho é ter a informação e as ideias e desenvolvê-las.  As ideias se propagam de muitas maneiras, mas a mais elegante, eficaz, perene e influente é escrevendo.

Eu uso isso, verdade, como desculpa para todos os erros que cometo, num atentado não deliberado, mas não muito arrependido, ao bom português. Troco onde por aonde e vice-versa. Esqueço o "em" antes do "que". E por aí vai.

Conheço as regras, mas no fluxo acelerado do pensamento muitas vezes elas vão ficando para trás. E como sempre vem ideia atrás de ideia, o tempo para a revisão vai ficando para trás.

Talvez alguns estranhem a comparação, ou a achem de mau gosto, mas escrever é como fazer amor. Se você ficar pensando na parte mecânica do ato, como um engenheiro, e não um amante, a coisa não sai.

Escrever, fazer amor e dançar têm isso em comum. Fred Astaire certamente nunca pronunciou as palavras "dois pra cá, dois pra lá".

Se a ortografia não é minha arte, prezo ainda menos pela datilografia. Escrever não é datilografar. Cato milho com dois dedos de cada mão há mais de trinta anos trabalhando em jornalismo e escrevendo romances de 500 páginas. A
 invenção do corretor ortográfico é uma benção mas não resolve tudo.

Sei que minha estenografia digital é irritante, talvez deselegante para com a língua pátria, e uma complicação. O ideal é entregar o serviço perfeito, limpo, profissional. Porém, o cuidado com a língua é mais próprio do revisor, do professor ou do acadêmico.

E uma coisa é certa: quando o dançarino é talentoso, trabalhador, ou ambas as coisas, e as ideias fazem efeito, como o amor do bom amante, sempre aparece alguém disposto a ajudar.