sexta-feira, 9 de abril de 2021

A poesia e a profecia

- Depois desse livro, você nunca mais vai viver com mulher alguma.

Estou na varanda do apartamento de Pedro Paulo Sena Madureira, o bruxo do Engenho Velho, diante da mesa de vidro na qual repousam os originais do livro-poema que foi, por algum tempo, meu trabalho secreto.

Acabamos de repassar os comentários que ele fez no poema em prosa, um único poema, que dá um livro inteiro - e que ele, cuidadosamente, revisou. Estamos ainda sob o impacto dos últimos versos, depois dele declamar praticamente o livro inteiro para mim mesmo, seu autor.


Olho as árvores de Higienópolis, cujo verde balouçante deixa passar os raios de luz.

- Por muito tempo, pensei que ter um relacionamento, uma mulher que compreendesse, entrasse profundamente no significado, fosse a coisa mais importante da vida - digo. - Hoje vejo que toda essa dedicação foi inútil.

- Mas, se você não tivesse passado por essas mulheres, não teria chegado aqui - diz ele, e põe delicadamente a ponta do indicador sobre o calhamaço. 

Um livro, terrivelmente pessoal. Nele, falo da vida, da minha e de todas as vidas. É meu Poema Sujo, não na forma, ou no tema, mas na ambição, ou na "atitude", como diz PP. 

O texto dispara memórias e sentimentos em profusão. "Você está aqui", tinha me dito ele, depois de lê-lo pela primeira vez por, ao celular. "Triste. Sombrio. Com maravilhosos raios de sol".

PP diz ter mergulhado no texto "vinte vezes". Entrou no meu mundo, tão fundo quanto eu mesmo posso ir, onde estão os mistérios do nascimento, da vida, e quem sabe, da morte. 

E é uma honra que ele tenha tratado o livro como seu achado. Conversamos sobre o que está ali, na conexão íntima que esse tipo de obra produz, o mesmo tipo de diálogo que ele já teve com autores tão importantes, de quem ele se tornou, pela janela aberta da literatura, também amigo íntimo, além de editor.

Foi assim com gente como Clarice Lispector, Pedro Nava, Adélia Prado, e outros. Fez comigo o trabalho que fez com eles. E fala com a experiência de quem conhece tão bem a espécie.

- O poeta é monotemático - ele prossegue. - Se você seguir nessa seara, não haverá mais nada na sua vida. Isso ocupa tudo. Nenhuma mulher dá, nem vai dar o que você precisa. Não há nada desse tamanho que possa te saciar, nenhuma pessoa. Só mesmo a poesia, ou a arte, para quem entende, conhece e vive nessa dimensão.

Ouço a profecia, mas não estou preocupado. Na profunda revisão da vida que tenho feito, eu me sinto cada vez mais próximo de mim mesmo, e do centro de tudo, afinal, que é o que eu faço. A arte, na forma literária, é a minha mulher, a minha companheira,  a minha amante, a minha confidente. É ela, afinal, quem me conhece e me reconhece. E nela me vejo, como um livro-espelho.

Nós, que esperamos reconhecimento, amor, compreensão, entendimento, compaixão, nós que olhamos não a vida, mas o seu significado, temos de aceitar um dia que só matamos essa sede no regato que nós mesmos criamos. E mais em lugar algum.

O resto - ou o "outro", principalmente quem está tão perto, que logo deixa de te enxergar - com o tempo se mostra traidor, prosaico, distraído com as pequenas misérias do mundo. Menor.

A conta do fim do mês, o sobrinho, a ginástica, a roupa, a comida, até mesmo a comida: nada toca a realidade que importa. O monstro do tempo, fazendo crescer seus ramos, até que eles entram pela janela, rastejam no chão e se enroscam nas tuas canelas.

Não temos tempo, e o que temos tem de ter significado. Precisamos dar significado às pessoas, à vida e tudo o que vale o tempo, contra o a impermanência e sua marcha inexorável.

Nessa luta, pela qual estamos cercados todos os dias, ainda mais nestes tempos de peste, vamos certamente perder. E não há consolo, solidariedade, nem mesmo companhia. 

Encarar isso de frente, enquanto todos se distraem, e ainda assim sorver o gole do vinho, sorrir com o canto da boca e abraçar o que virá, requer coragem.

Por isso, tantos sofreram. Clarice morreu na miséria e miseravelmente. Nava se meteu embaixo do relógio carioca, que foi capa de seu último livro, A Cinza das Horas, e deu um tiro na cabeça. 

Quantos daqueles que encaram o bicho do tempo passaram a vida calmos, quietos, mansos aos pedidos e demandas alheias, suportando a mediocridade instalada em todo canto, com a qual procuramos conviver quando, de fato, a cabeça passa longe? 

Quantos cederam à anestesia geral, para escapar à necessidade vital de movimento, buscando golfadas de ar, o verde da mata, a distância estelar?

- Somos agora amigos íntimos - diz PP. Ele agora trata meus familiares, vivos e mortos, personagens do texto, como seus próprios parentes. A voz meio embargada denuncia a convulsão que foi sair da cosmogonia pessoal que emana daquele maço de papel.

Sim, estamos sozinhos, mas não solitários, enquanto houver arte. E gente como nós, ronins do pensamento, sem destino e senhor, emprestando a nossa espada imaginária a quem dela mais precisar, na batalha em que a vitória é cair de pé.


quinta-feira, 8 de abril de 2021

Versos sobre o horizonte


Um banco no jardim mais bonito do mundo, em Ravello, na Itália, há muito me serve de inspiração. 

Lembra que é preciso experimentar a vida para escrever melhor - e que, escrevendo, experimentamos melhor a vida. Aqui está gravado o célebre poema de DH Lawrence, que foi hóspede de Villa Cimbrone, lugar de muitas histórias, entre elas um dos contos do meu A Quinta Estação:

Lost to a world in which I crave no part
I sit alone and commune with my heart:
Pleased with my little corner of the earth
Glad that I came, not sorry to depart.

E aqui escrevi também os versos que aparecem em A Quinta Estação:

Aqui faço meu pouso, pés cansados
A mente de asas pesadas de pensar
Só o coração voa entre penhascos
No descanso que abriga céu e mar.

Esse é o espírito, esse é o lugar.




O peso das próprias palavras


São 11:30 da manhã e entro no apartamento em Higienópolis de Pedro Paulo Sena Madureira, o Oráculo do Engenho Velho, com seus tapetes, obras de arte e castiçais de cristal, para olharmos juntos o meu livro-poema, que ele considera agora seu achado, e de que anda cuidando como se fosse o seu bebê.

Sentados à mesa de vidro da varanda, ele repassa comigo página por página, mostrando todas as suas observações na obra que ele diz já ter lido e relido "vinte vezes".

Fez esse mesmo trabalho com poetas que lançou, como Adélia Prado. Eu não esperava merecer tudo aquilo, mas como se trata de PP, editor dos maiores poetas  e romancistas brasileiros, nem eu posso duvidar dele.

E, estremecendo, fico ouvindo PP ler em voz alta o texto, que ele interpreta e, às vezes, corrige.

Cortou algumas estrofes inteiras, de vez em quando acrescentou palavras, e faz questão de declamar as partes de que gosta mais, que são muitas. De vez em quando, ele interrompe a leitura para falar de algo que o poema lhe evoca, como o suicídio de Pedro Nava, de quem era editor e amigo próximo. 

Ficamos assim três horas e meia, até que chegamos ao verso final.

Silêncio, um instante. Sentimos, eu e ele, o peso do que escrevi, e que PP, com a pontinha da caneta aqui e ali, como o grande editor que é, ajudou a realçar.

- Suas ex-mulheres deveriam ler isto aqui  - ele diz. - Será que lerão?

- Acredito que não - respondo. - É coisa demais para elas.

- Meu bem - diz ele, como costuma fazer com quem lhe é mais caro. - Depois deste livro, você... É. Demais.

A sombra e os raios de luz

Volto à casa de Pedro Paulo Sena Madureira, meu primeiro editor, oráculo do Engenho Velho, que terminou de ler os originais que lhe entreguei.

Está aceso, com aquele olhar que eu conheço, de bandeirante que sacudiu a bateia e achou umas pepitas de ouro.

- Você está craque - diz ele. - Dominando todos os gêneros. 

Adorou o livro de história contemporânea, resultado do trabalho de um ano e meio. Porém, seus olhos brilham muito mais pelo livro em poema que lhe entreguei e devorou de uma sentada, intitulado Além da Memória. 

- Isto é você - ele diz. - Triste, sombrio, com maravilhosos raios de sol.

Quer me mostrar as correções e observações no primeiro livro, que faz à moda antiga, rabiscando de caneta o papel. Mas quer que eu volte outro dia, para fazer o mesmo com o poema. 

- Este é maravilhoso, mas vamos olhar juntos, precisamos tirar alguns excessos, porque pode ficar perfeito. 

É muito bom trabalhar junto com alguém - especialmente se esse alguém é quem considero ainda o melhor editor brasileiro.

E porque é dessa cooperação entusiasmada de alguém que te conhece, dá valor e está genuinamente ao seu lado que precisamos para continuar.

PedroPaulo me ajudou a colocar em pé Além da Memória. Me deu certeza de que valia a pena trabalhar no texto como poema, não prosa.

Agora Além da Memória está pronto. O julgamento do editor está feito. Fica agora 



Um livro e a ressurreição

Páscoa, dia da ressurreição, vou à estante e abro pela primeira vez o exemplar de O homem que falava com Deus, que dei a minha mãe, e acabou voltando para mim com outros de seus livros, quando ela morreu - doze anos atrás.

Ela nunca me falou sobre o livro, exceto no fim, quando estava no hospital. Vejo agora que o texto está cheio de marcas, onde ela, que era professora e me ensinou a ler e escrever, como sempre, assinalou imperdoavelmente tudo o que não achou bom ou estava errado.

E deixou também marcas em algumas coisas de que gostava. Releio a dedicatória que lhe fiz e este livro, hoje, é meu presente de Páscoa.


Romance histórico ou livro de história?



Para mim,  escrever livros de história e romances históricos são ambos válidos e desempenham função semelhante. Escrevo ambos. A escolha de uma forma ou outra depende de onde está o foco do que quero contar.

No romance, o foco é mais no indívíduo, com suas ideias e paixões - essas coisas que podem mudar o mundo, isto é, que fazem a história. Mas isso requer muitas vezes uma investigação mais subjetiva ou subjacente aos fatos.

Já nos livros de história, os fatos ganham mais relevo e dependem de objetividade. Porém, a informação detalhada e o enredo procuram fazer a época se tornar tridimensional, portanto mais perto da realidade. E um bom enredo pode provocar uma leitura compulsiva como a de um romance.

O romance não prejudica nem exclui o rigor histórico. Em Anita, não há nenhum fato conhecido da história que é distorcido ou contrariado. A ficção entra nos lugares onde não há registro e corrobora a história. Dá nuances que, embora criados pela imaginação, parecem fazer tanto sentido que ao fim o leitor não verá outra história possível de Anita Garibaldi que não seja essa.

Nos meus romances históricos, a história pode ser mais pano de fundo, como em Filhos da Terra, que fala sobre a imigração italiana no Brasil, com personagens reais, embora tenham nomes trocados e ganhem pinceladas da ficção. Podem também tratar de personagens históricos reais, como Anita Garibaldi (Anita), ou Prestes, Lampião, Padre Cícero, Rondon e outros (Amor e Tempestade). Nesse caso, os personagens reais devem parecer reais, mesmo na recriação literária, e nada pode ferir o fato histórico.

Não é um trabalho fácil. Tanto no romance como no livro de história, a missão é mergulhar o leitor naquilo que pode estar mais próximo da verdade, seja ela objetiva, seja a subjetiva. Tentamos dar à história toda a dimensão humana.

A história é feita por pessoas, com motivações que às vezes fogem à nossa compreensão. Desvendar a história que não conhecemos da história é uma grande arte, cuja perfeição sempre está mais ali adiante.

#thalesguaracy
#romancehistorico
#livrosdehistoria
##anitaoromance
#amoretempestade
#aconquistadobrasil

 


 

terça-feira, 6 de abril de 2021

Curare: dos tupinambás para os hospitais no Covid-19


Conta o meu médico, Virgílio Pereira, que no Einstein, hospital onde trabalha, utiliza-se o curare - um paralisante muscular - nos pacientes intubados de Covid-19, para evitar que rejeitem o equipamento, fisicamente intrusivo. Com isso, os pacientes não precisam ser amarrados, solução considerada agressiva ou desumana por muitos, como acontece em hospitais com menos recursos ou recursos esgotados.

Com isso, ganha um uso bem contemporâneo algo que já era conhecido pelos tupinambás quando no Brasil chegaram os europeus, tanto na caça quanto na guerra. Embido em flechas e lanças, o curare paralisava e deixava à mercê a presa e o inimigo, como vai contado em A Conquista do Brasil (1500-1600), hoje em sua quinta edição.

Mais um caso em que o passado se faz presente, parte porém de uma outra guerra, e dessa vez como instrumento da medicina.