terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A mais livre das mulheres

Quando eu pensava em escrever meu primeiro romance, aos 18 anos de idade, costumava dirigir de São Paulo até Suzano, onde ficava a chácara de minha tia Malfisa, que lá morava com meu avô e muitas histórias repletas de perigo.

Ali, por algum tempo, no final da década de 1960, com risco da própria vida, minha tia havia escondido um grupo de amigos, guerrilheiros contra a ditadura. Todas as vezes em que eu a visitava lá, pensava que, de certa forma, a chácara continuava meio esconderijo.

Tia Malfisa falava de política com convicção, mas, para ocultar aqueles que o regime chamava de "subversivos", era preciso também muita coragem e generosidade.

Um de seus primeiros empregos foi o de revisora no Diário da Noite e assim conhecia muitos jornalistas, a maioria dos quais, de uma forma ou outra, defendia a liberdade - a começar pela liberdade de expressão.

Ser livre, então, era perigoso - e ela era a mulher mais livre que nós da família conhecíamos. Fazia uma porção de coisas que naquele tempo - e falo da década de 60 - eram pouco comuns para mulheres. Fumava. Tomava cerveja. Falava o que pensava. E nunca casou.

Lembro dela entrando em nossa casa, um apartamento térreo no bairro da Liberdade, no jogo final da Copa do Mundo de 1970 - não haverá outra igual, pois aquela tinha Pelé, pela primeira vez havia transmissão direta em cores pela TV e o povo brasileiro estava meio cansado de sofrer.

Tia Malfisa, que adorava futebol e acima de futebol o Palmeiras, irrompeu porta adentro com um bando de amigos, agitando bandeiras, cantando e pulando de cerveja na mão - e o jogo, que se afigurava uma goleada, ainda nem havia terminado. Saíram incontinenti para a rua, inebriados pela vida, como se fosse carnaval. Eu tinha apenas seis anos e lembro de pensar: quando for adulto, quero ser assim.

Ela só andava de fusca, e andou de fusca a vida inteira, mesmo quando o carro virou peça de museu. Quando eu ainda era criança, pediu o fusca de meu pai emprestado e deu uma batida feia. Saiu ilesa, daquela vez, e lembro de meu pai desolado, olhando o ferro retorcido que antes era um veículo, sendo depositado no pátio que servia de garagem.

Não escapou tão bem de outra batida, em que prensou o braço esquerdo. Dali em diante carregaria aquele bracinho atrofiado, por muito tempo quase imóvel. Mas continuava dirigindo o fusca, usando um braço só.

Segundo minha mãe, minha tia nunca casou por ter tido na juventude uma grande frustração amorosa - supostamente, enamorou-se de alguém sem saber que era casado. Mas acho mesmo que ela gostava de ser livre - e livre ficou.

A bem da verdade, chegou a tentar o casamento durante dois anos, com Jurado, um sujeito muito simpático, mestiço de japonês, louco por ela. Como a tia não tinha filhos, sempre que eles vinham em nossa casa visitar, Jurado nos trazia presentes - para mim, e minha irmã, Lara. Só queria agradar. Mas a tia passara dos 40 anos, estava já acostumada demais a viver sozinha e logo achou a vida conjugal uma amolação.

Não tendo filhos, acabou tendo muitos. Eram as crianças da escola, como professora e depois diretora. E eram como filhos os muitos sobrinhos, de quem sempre foi tão próxima. Especialmente de minha irmã Lara, caçula da sobrinhada. Para os sobrinhos, era uma mãe melhor que uma mãe. Porque, como tia, podia ser mãe, sem dar as broncas nem ter os grilos de mãe.

Minha tia era uma das poucas pessoas que me defendia em qualquer situação, mesmo quando eu estava errado, mesmo quando a pessoa com quem eu brigava era a irmã dela, a minha mãe. Talvez por isso, era também das poucas pessoas que tinham o direito de falar qualquer coisa comigo - e eu escutava sem discutir.

Tinha aquele poder de fazer a gente, mesmo depois de adulto, se sentir ainda amado e querido como criança. Talvez por ter passado toda a minha infância perto dela, ela fazia eu me sentir como nos tempos em que, na Casa Verde, abria a porta do quarto dela, que dava para a rua, com uma escada feita de lajota vermelha. Eu passava o dia brincando e vinha suado, deitar ali, para refrescar as costas na lajota, sempre fresquinha, ou esperar passar a chuva de verão, e voltar a brincar.

Por viver solteira, minha tia sempre morou com meus avós; quando meu avô ficou viúvo, e velhinho, pode-se dizer que passou a viver com ela. Deixaram a casa térrea da Casa Verde e mudaram-se para Suzano, onde ela lecionava.

Eu aparecia com meu gravador K-7 na mão, para passar o dia ali. Colocava o gravador, ouvia meu avô cantar, e no meio das canções, colhias história de família com que aos poucos ia tecendo Filhos da Terra, cujo título original, Iusfen, era o nome dele - José - no dialeto bolonhês.

Às vezes, ele parava de cantar para esfregar as pernas com limão - um remédio caseiro que neutralizava a coceira das varizes, dizia .

Minha tia cuidava dele, ou ele dela, enquanto lá fora fazia um sol de rachar. Ela me ajudava na comunicação, porque meu avô, já passado dos 90 anos, não apenas estava surdo como àquela altura monologava às vezes sem direção.

Foi a paciente testemunha de todo o trabalho que tive para começar Filhos da Terra, um romance que mostra a dura cepa daqueles italianos que encontraram um Brasil ainda bruto e selvagem. Fazia muitas coisas como antes, como matar as galinhas no quintal da Casa Verde dando um tlec no pescoço, ou estrangulando-as com o pé sobre o cabo da vassoura.

Nascida no campo, gostava da roça e, na cidade, sentia-se prisioneira. Gostava de viajar, viajava conosco sempre, e mesmo já muito idosa ia para o sítio da montanha que hoje está na guarda de minha irmã - gostava de ficar sozinha, precisava do campo, precisava de paisagem.

Essas raízes de contadina, que brotavam nela vindas de um passado que no romance parece hoje um pouco mitológico, estão na realidade no sangue, na educação, no exercício do amor passional - tudo aquilo que nos une em família, com uma identidade só.

Um amor turbulento, excessivo, por vezes destrutivo, que por vezes parece raiva, ou ódio, ou desamor, mas é no mundo um amor como não tem outro maior.

Tia Malfisa faleceu ontem, no único dia da vida em que lhe faltou o coração. Disse à irmã, minha tia Mafalda, que dormira mal, sentia-se fraca, não queria dar trabalho e era hora de partir. "Já vivi muito", disse ela. Foi tia Mafalda, com quem ela morava nos últimos anos, quem isto contou, a minha irmã.

A coragem que me falta nesses momentos foi aquela com a qual, resoluta, tia Malfisa foi buscar sua paisagem no céu, mais livre do que nunca, nos deixando desolados nestes tempos de pandemia, que não permitem sequer um adeus.

Em Filhos da Terra, quando Iusfen - o narrador - lamenta ser o último e mais inútil dos irmãos, é lembrado de que era por ele, por meio de suas histórias, que todos viviam, na memória e na ação. De tia Malfisa, também penso o mesmo, da forma como aprendi, e que em família se ensinou: enquanto viver um de nós, todos viverão.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Um amigo reaparece no ar

Éramos só dois meninos, aos nove anos. Eu ia na casa dele: era meu melhor amigo, na época. Um japonesinho tranquilo, alegre e simples, com quem eu gostava de conversar.

Voltávamos para casa juntos, a pé, vindos da mesma escola, na Aclimação, por aquelas ruas com nome de planeta: Urano, Saturno, Plutão. Ele parava primeiro, porque a casa dele era antes. Assim, nos despedíamos todos os dias. Ele entrava e eu seguia adiante.

Até o dia em que, diferentemente dos outros, encontramos a mãe dele na porta do prédio. Ela então me disse que Renato não iria mais para a escola e não poderíamos nos ver mais. E me pediu para não procurá-lo. Nunca mais.

Não entendi.

No dia seguinte, explicaram na escola que ele estava com câncer. Leucemia. Eu era pequeno, não entendia do assunto. Nunca mais vi Renato, nem tive notícias. Acreditava que tinha morrido.

Esta semana, fui procurado por Carlos Alberto, um colega do antigo Jardim Escola Aclimação, que me convidou para entrar num grupo da nossa turma pelo WhatsApp, tantos anos depois.

- Estamos procurando pelo Renato, você sabe dele?

- Nunca soube o que aconteceu com ele, mas é pouco provável que esteja vivo - eu disse. - Sempre penso no Renato e gostaria de descobrir o que aconteceu.

Carlos Alberto sabia algo que eu não sabia - o sobrenome de Renato. Procuramos por Renato Ishigami. E assim ficamos sabendo que ele viveu mais 41 anos, contra o improvável, ou melhor, o impossível.

Seu pai, Takashi Ishigami, escreveu um texto, publicado na internet sob o título "Um Inverno rigoroso", contando a história e o papel que ele atribuiu ao budismo na realização do inacreditável. 

"Após inúmeros exames, sem resultados, os médicos acharam que o melhor era extrair o nódulo para que fosse analisado", escreveu Takashi, daqueles dias. "Fizeram uma biópsia e foi diagnosticado linfossarcoma, câncer nos gânglios linfáticos, três vezes mais agressivo que a leucemia. Os médicos deram-lhe um curto prazo de vida, de três a doze meses, porque, de um modo geral, a evolução da doença em criança é rápida e fatal. 'Não existem no mundo casos conhecidos de sobreviventes dessa doença', afirmou o médico categoricamente."

Takashi narra a saga da família nos hospitais, até perder a esperança, diante da desistência inclusive de uma clínica americana que se oferecera para o tratamento de Renato. E seu mergulho pelas religiões, à procura de um milagre. 

Takashi encontrou conforto no budismo, pela busca da reafirmação da crença com base em resultados comprováveis. A situação desesperada de Renato transformou a família. Takashi primeiro teve de convencer a mulher, que era católica, a entrar em uma corrente de fé. Até nisso o budismo traz sabedoria: pai e mãe são "como uma carroça", a família não anda sem as duas rodas irem para a mesma direção.

O texto é cheio de ensinamentos e incríveis esperanças para quem se vê diante do inevitável. A família Ishigami passou a dedicar sua vida a rezar. De um estado cadavérico, passando pelo sofrimento de morte, purgando não apenas a doença como o que seria o “carma” familiar, Renato recuperou energia e ganhou novamente vida. Em dois anos, foi considerado curado.

"Um Inverno Rigoroso” é um texto tocante, especialmente para quem tem filhos. Mostra sobretudo a força da humildade perante a vida. E a beleza de uma religião que integra o ser humano ao universo em todos os tempos e mostra que não há por que desistir.  “Nunca houve inverno sem depois chegar a primavera”, escreve Takashi, citando um pensamento budista.

Há nas suas memórias de pai também certo fatalismo, como na história da médica que queria internar Renato para que morresse com menos dores no hospital, e brigou com a mãe dele, quando esta se recusou a aceitar a morte do filho e o levou, moribundo, para casa. 

Quis o destino que essa mesma médica fosse mais tarde levada, por coincidência, ou mistérios insondáveis, à casa dos pais de Renato - onde o encontrou vivo, feliz e pleno de saúde. E foi embora chorando, de pernas tremendo, diante do "inconcebível".

Renato formou-se na FGV, casou-se com uma fisioterapeuta e teve um filho, Guilherme. Viveu bem  até 2009, quando teve um primeiro AVC, sequela do tratamento radioterápico na infância, que ressecou suas artérias do pescoço, comprometendo a oxigenação do cérebro, anos depois. Veio a falecer em 2013, aos 50 anos. 

Depois da ressurreição, a morte. Terá vivido pouco, ou muito? Não sei. Não sei também se fiquei feliz ou duplamente triste. Feliz, por saber que Renato viveu, apesar de sua história tão sofrida. Teve felicidade e deu à sua vida um sentido maior, inspirando outras pessoas a persistir, mesmo quando não há esperança.

Ao mesmo tempo, fiquei desolado. É estranho uma pessoa morrer para você duas vezes. Coisa rara em mim, sempre cheio de razão sobre tudo, fico sem saber o que pensar.

Sei o que sinto. É como se eu deixasse Renato na porta de casa, novamente, outra vez. Sigo em frente, para minha própria casa, que fica mais adiante. 

E sei que não o verei mais, mas acredito que, como Renato, ninguém morreu, nada morre. Somos essa história que vai para casa, uma casa que se respira no ar.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Manchas da vida sobre o chão

Colocando os quadros na parede de casa, volto a olhar para eles com a velha cumplicidade, nesse reencontro que às vezes temos com a gente mesmo - cada quadro um momento e seu significado. Mas este, o cavaleiro... Este, é difícil ainda hoje de olhar.

Penduro, com coragem. A data de quando o pintei - pela primeira vez, digamos - é 1997. Nesse ano, eu ainda terminava de escrever meu primeiro romance, Filhos da Terra. E, no pouco tempo de descanso, comecei a desenhar e pintar personagens do livro, talvez como uma forma de ajudar que tomassem vida.

Saiu um cavaleiro, dos muitos que estão no romance - um imigrante italiano, de colete, visto por trás. Eu o dei a minha mãe, por ser o romance inspirado na história e nas histórias de meu avô: uma saga de imigrantes telúricos, que fizeram fortuna e depois perderam tudo com o café.

Minha mãe aceitou o quadro, o livro não. Quando eu disse que o romance era inspirado na história de vovô, ficou furiosa. "Mas seu avô, não tem nada a dizer sobre ele", vociferou.

Ela tinha seus amargores com o pai. Falava dele, às vezes, com raiva. Uma vez, quando reclamei que não me dava beijos, como outras mães, respondeu com estas palavras: "você queria o quê? Meu pai matava meus cachorros a paulada".

Assim eram os italianos da Bolonha: capazes de te dar a própria camisa suada, por amor, mas um amor endurecido na lida do campo, na aridez da terra, na luta contra tudo e contra todos, muito difícil de explicar.

Quando lancei o romance, em 1998, em uma livraria de São Paulo, todo mundo apareceu - amigos de infância, colegas de trabalho, todos os familiares. Minha mãe, não. Andávamos meio brigados. E aquele livro... Para ela, aquele livro, não.

Para mim, foi um grande momento. Eu tinha passado muito tempo e empenhado muito sacrifício para aquilo acontecer. Desde os 18 anos, ia visitar meu avô, ainda vivo, muitas vezes, na chácara onde morava, em Suzano, com minha tia Malfisa. Aproximando-se do último dos seus 96 anos, ele estava surdo e falava sozinho. Cantava para mim modas de viola e músicas que tinham vindo com os italianos, com mais de um século de existência. Às vezes, eu lhe fazia perguntas, anotando num caderno.

Dizia-lhe, aos 18 anos, que queria escrever um livro. Ele ria. Para ele, não importava. "Isso está em você", dizia.

O livro não importava para ele e parecia não importar a minha mãe. Assim ela fazia parecer e foi assim durante toda a vida. Passaram-se os anos e ela jamais disse uma palavra sobre Filhos da Terra. Até uma tarde, poucos dias antes de suas morte, no hospital, ao fim de dois anos em que se descobrira com câncer.

Eu estava sentado na cadeira, diante da cama, e ela me olhava, fixamente. Por fim, falou.

- Filho, você é um fraco - disse. E aí, pensando um pouco, acrescentou: - Mas, se não fosse assim, talvez não escrevesse coisas tão bonitas.

Falou então tudo o que pensava dos meus livros. Por último, falou de Filhos da Terra.

- Fico admirada com sua imaginação - disse ela. - O engenheiro perseguido pelo vento. Como você pensou nisso?

Pouco depois que ela morreu, passamos eu e minha irmã Lara a cuidar das coisas que estavam no apartamento dela. Quadros que eu tinha pintado e lhe dado de presente voltaram para as minhas mãos. Entre eles, o cavaleiro de Filhos da Terra.

Levei a tela para o sítio, onde pretendia escondê-lo em algum lugar. Mas, de repente coloquei o quadro no chão, junto com as tintas, enfiei nelas as mãos e descarreguei nele tudo o que sentia. Tristeza, frustração, tudo - sobretudo, acho, raiva.

Essa foi a segunda vez em que pintei esse quadro.

O romance está na estante, e muita gente diz que ainda é a melhor coisa que escrevi.

O quadro, uma vez eu joguei no lixo. Foi resgatado pela minha mulher. Agora lido melhor com ele. É mais um quadro na parede de casa. Não é mais ele que me faz lembrar.

sábado, 20 de junho de 2020

Um negro avança na imensidão

Quando vendi meu sítio, o futuro comprador trouxe livros para que eu lhe desse autógrafos e queria porque queria ficar não apenas com a casa, mas com tudo: os móveis, os tapetes, os quadros, enfim, tudo. E eu disse que era impossível, porque aquele tudo ali era a minha vida, e ela ia junto comigo, aonde eu fosse.

Cada coisa aqui de casa tem alguma história, quando não fui eu que fiz, como este quadro que acabo de pregar na parede agora de um apartamento, em São Paulo: um guerreiro masai, andando na savana, que pintei  ao retornar da África, por volta de 1998.

É uma cena que eu vi, pintei de memória, e me traz ainda muitas e importantes recordações.

Eu tinha ido com um grupo de jornalistas brasileiros conhecer as reservas naturais do Quênia. Saímos de Nairóbi numa van e entramos por uma estrada de terra que dava na reserva de Masai Mara.

O céu estava pesado, com jeito de chuva. E vi o masai, de lança em punho, com seu perfil longilíneo, avançando a pé e sozinho naquela imensa pradaria selvagem - o retrato mais primitivo da intrepidez humana.

Aquele dia foi cheio de aventuras, impregnadas daquela atmosfera que eu conhecia dos livros de Hemingway. Como o céu prometia, dali a pouco, de fato, choveu. As estradas do Quênia são de uma terra finamente arenosa, que os ingleses chamam de black cotton soil - solo de algodão negro. Na chuva, aquilo vira um lamaçal terrível.

Tivemos de descer da van, metendo o pé naquele território infestado literalmente de leões e outros bichos não menos perigosos. Só a vontade hercúlea de chegar explica como empurramos o veículo por oito quilômetros até o destino, subindo ladeiras e cortando riachos, levando aquele barro preto na cara.

Por sorte, a certa altura surgiram uns negros do meio do mato, com pinturas de guerra, mas que adoraram saber que éramos brasileiros. "Brasil? King Pêle, king Pêle!" - diziam. E nunca fiquei tão feliz por sermos a terra nativa de Pelé, cuja fama, como pude testemunhar, é sem limites.

Chegamos ao acampamento no final da tarde. A chuva tinha passado e deixou um belo por do sol. No alto de uma colina, nos esperavam os ingleses do hotel, que mantinham na reserva um acampamento digno do velho colonialismo britânico, com tendas providas de travesseiros penas de ganso, lençóis indianos e um negro aquecendo a água do banho do lado de fora num tambor sobre o carvão.

Tinham preparado para os jornalistas uma impecável recepção. Montaram uma mesa de bufê sob um dolman, de onde se avistava o horizonte africano, sanguíneo e fresco como se pintado por Raimundo Correia.

Coberto de lama negra dos pés à cabeça, fui me aproximando do chefe da recepção, um inglês de longos bigodes e cachimbo, elegantemente trajado com sua roupa cáqui de safari e botas reluzentes de montaria, provavelmente compradas em Saville Row.

- Sorry - disse eu, declinando do aperto de mão. - I hope next time we can show up dressed properly .

Naqueles dias, além de fugir de um elefante em fúria, entrar em barrancas a pé perigosamente para ver hipopótamos de perto e ficar horas a fio esperando um guepardo terminar seu almoço para poder descer da van e tirá-la de um buraco, tivemos a oportunidade de conhecer os masai mais de perto.

Nosso guia, Peter N'Guru, era um sujeito falante e simpático, que tinha uma cicatriz atravessada na barriga, resultado de um dia em que dirigia uma camionete no meio da ravina e só viu o rinoceronte quando ele atravessou a porta com o chifre, jogando carro e motorista para longe.

Embora aquilo fosse proibido, Peter conseguiu dar um jeito de nos levar pra dentro de uma aldeia. O cacique, um negro com bem mais que dois metros de altura sobre o caniço das pernas, me levou para dentro de sua casa, uma choça como as outras, feita de estrume seco de gado, dividida em duas metades.

Na primeira, ficavam as vacas, para eles tão importantes que não podiam ser deixadas do lado de fora. A outra metade da casa era também dividida ao meio. Na primeira célula, pelo respeito e a idade, ficavam os avós. Na célula restante, um quarto do espaço total, amontoava-se todo o resto da família - pai, mãe e filhos, geralmente vários.

Os masai se alimentavam sobretudo do sangue do gado. Aproveitavam tudo - os ossos, para fazer instrumentos, e o couro, usado nos escudos com que saíam savana afora.

Para ir de aldeia em aldeia, andavam, ou corriam - daí os quenianos serem imbatíveis nas provas de maratona. Correr, para eles, é como para nós pegar o carro.

Aos quinze anos, como rito de passagem da adolescência para idade adulta, tinham de matar um leão. Não era sentido figurado, mas isso mesmo: matar, de fato, um leão.

A certa altura, apareceu a polícia. Como nossa visita era ilegal, os policiais levaram o chefe para o interrogatório - uma bronca, segundo me explicaram, e ele estaria de volta, porque os masai, como os índios no Brasil, eram inimputáveis. O homem levantou a perna do tamanho de uma vara de salto e sem nenhum esforço subiu no caminhão da polícia florestal. Ainda o vi, altaneiro, balançando selva afora.

Tal foi a impressão que tive dos masai, quando os conhecia, mais de perto: a mesma desse quadro, quando os vi de longe, que me lembra que o homem é, e sempre foi, a maior força da natureza.




sexta-feira, 19 de junho de 2020

O romancista encara suas fontes


Eu estava em Nova York, tempos depois de lançar A Quinta Estação, quando tocou o celular. Era uma ex-namorada, que ligava do Canadá.

- Meu pai leu o seu livro.

- Ué, achei que ele não gostava de mim.

- Disse que o livro está cheio de sexo!

- Mas é uma obra de ficção e ninguém está identificado...

- Como não? Agora só me chamam de Sofia!

Lembro dessa história ao folhear A Quinta Estação, um daqueles livros que, por ser contemporâneo, acabam criando alguns problemas. Tenho um amigo que, quando lanço um romance, pergunta; “Quem vc f... dessa vez?”

Um de meus filmes favoritos, “Desconstruindo Harry”, de Woody Allen, fala justamente desse problema do autor. De forma análoga ao que faz como cineasta, Allen se coloca no papel de um escritor que usa todo mundo que conhece como inspiração para seus personagens. Acaba criando uma confusão só ao seu redor. E não conto mais nada, para não dar spoiler a quem não viu.

Por sorte escrevo muitos romances históricos e, quando as inspirações são colocadas no passado, as pessoas não percebem tanto onde contribuiram sem querer para a história.

O fato é que, em qualquer época na qual qual seja ambientado, todo livro é produto das experiências de um autor, que frequentemente envolvem outras pessoas. E estas por vezes não gostam de se ver retratadas ali, ou da forma como você as retrata. Um romance tem sempre um ponto de vista, que é o ponto de vista do autor.

- Nesse livro aí você acerta conta com muita gente – Certa vez me disse um ex-cunhado, que é juiz. – Como a gente se defende de você?

Tem gente, por outro lado, que se enxerga lá nos livros mesmo sem ter nada a ver. Seja como for, é difícil entender o que sai da cabeça do escritor como uma recriação ficcional, que serve a uma função dentro da história, e por vezes tem de ser propositadamente adaptada.

A Quinta Estação é meu campeão de problemas nesse campo. Uma vez, uma leitora me mandou uma mensagem indignada.

- Mas esse livro só tem a perspectiva masculina dos relacionamentos!

Tentei explicar que era essa mesmo a ideia: cinco contos de amor, narrados do ponto de vista masculino. Afinal, o que há de errado com o ponto de vista masculino? Se eu sou homem, por que não posso ter um ponto de vista masculino?

Eu gostaria de mostrar que os homens pensam, sim, sobre relacionamentos, apesar da fama em contrário. Homens sofrem de amor, ficam magoados, e, no fundo, se queixam tanto as mulheres, talvez mais, por incompreensão. Porém, tentar convencer a moça foi inútil.

Às vezes, é verdade, faço referências que são pura e inocente provocação. Em Filhos da Terra, por exemplo, homenageio um amigo meu, o doutor Eduardo Reis, colocando seu nome num personagem que é um bacharel de porta de cadeia, especializado em livrar a pele dos larápios. Uma daquelas pequenas sacanagens que a gente só faz com grandes amigos.

Outra: também em Filhos da Terra, coloquei o nome da minha mãe e de minhas tias nas sete filhas do delegado que não deixava nenhuma casar antes de desencalhar a primeira. Elas adoraram o livro. Mas um tio que teve seu  nome trocado com o de um irmão ficou chateado comigo.

O que as pessoas não pensam tanto é que ninguém se expõe mais do que o autor, às vezes onde menos parece. Ainda assim, como não podemos ser tudo nem viver tudo, acabamos aproveitando a experiência dos outros.

Por isso, o interesse verdadeiro pelo outro, com o entendimento e aceitação de toda a diversidade humana, é essencial para quem escreve e também nossa vantagem. Essa preocupação serve ao trabalho e serve à vida, porque ela melhora muito, fica muito mais rica, quando temos um interesse genuíno pelas outras pessoas. E mais: temos compaixão. Sem base na realidade, sem nos colocarmos na pele do outro, nenhuma história teria credibilidade. E paixão.

A todos aqueles que me ensinaram alguma coisa na vida, que me me deram amor, ou com quem dividi aventuras, experimentos e mesmo alguns erros, deixo meu reconhecimento agradecido.

Indo para o papel ou não, todos podem ter a certeza de que tudo o que compartilhamos continua vivo dentro de mim. Se também compartilho algo dessa experiência em livro, é porque acho isso tão importante que pode servir a mais alguém.

E, por favor, não tenham medo de me contar coisas. Eu não mordo. Só, às vezes, escrevo. Discretamente.


terça-feira, 16 de junho de 2020

Minha companhia silenciosa

Algumas vezes na vida, morei sozinho – e desta vez recorro ao psicólogo americano Anthony Storr, que publiquei em português como editor na Saraiva, para quem estar sozinho não significa necessariamente ser uma pessoa solitária.
Pelo contrário. Storr nos lembra que a ideia de que as pessoas só podem ser felizes juntas, coabitando no casamento, é uma invenção relativamente recente na história da Humanidade, datada da era vitoriana para cá.
Diz Storr que são muitas as fontes da felicidade, podendo ser escolhidas de acordo com cada um. O importante é nos sentirmos bem e encontrarmos a melhor forma de viver em cada um dos períodos da vida.
Estar em uma nova casa, desta vez, acabou me reaproximando de velhos amigos, que de vez em quando visito. Saem dos livros que enchem as estantes e carrego comigo aonde vou morar, alguns deles há muitos anos.
Dali vem ao meu encontro Storr, falecido em 2001, mas que ainda hoje me ajuda e acompanha no que de outra forma seriam apenas desorientados solilóquios existenciais.
Uma biblioteca é um cemitério de papel, com a diferença de que dali os mortos se levantam tanto quanto os vivos, no frescor humano, plenos de ideias, sentimentos e energia vital. Conversam comigo, quando folheio as páginas onde colocaram, estou certo, o melhor que tinham de si. Contam histórias, fazem confissões, trazem experiências, conhecimento, vivência humana.
Fico feliz e um tanto aliviado de estar hoje também entre eles – o meu canto da estante em que me coloco dentro de mais de uma vintena de livros escritos ao longo da vida, nos quais, pelo tempo em que os escrevi, dei, certamente, o melhor de mim.
Digo a todos estes meus amigos, espalhados por cerca de 3 mil volumes, carregados trabalhosamente de mudança em mudança, que não os abandono, nem abandonarei.
E que não me esquecerei de um dia juntar-me a eles, de maneira definitiva, para ressuscitar da mesma forma que hoje ganham vida, assim que eu me sento, bastando abrir o tablet ou, neste caso, a palma das mãos.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Os livros e o louco sobre a montanha


Lá por volta de 1998, trouxe para o sítio que tinha acabado de comprar, nas montanhas de São Bento do Sapucaí, o Zé Luís - um encanador de metro e meio de altura, que se tornara tão meu amigo quanto um colaborador imprescindível, para me ajudar naquela que seria a primeira grande revolução da minha vida.

Em São Paulo, eu morava numa cobertura do Morumbi, com um deck para a piscina que vivia dando vazamentos - e Zé Luís, pelo tamanho, era o único que conseguia passar pela abertura onde ficava a bomba, para realizar reparos. Volta e meia, chamava o Zé Luís.

- Você não pode sumir - eu dizia a ele. - Sem você, não sei o que faço.

Em 1998, eu andava bastante encrencado. Não conseguia terminar meu primeiro romance, travado por uma daquelas paralisias cerebrais que transformam a vida da gente numa crise só. Casado fazia seis anos, me separei. Era o editor da revista VIP, na Editora Abril - pedi demissão. Deixei a casa para minha ex-mulher. Fiquei com a roupa do corpo. Fiz uma revisão geral de vida. E concluí que precisava de ar.

Numa viagem de fim de semana, acabei parando nos altos do Serrano, levado por Tiãozinho, simpático dono de um bar, num jipe que subiu uma estrada então quase inacessível, principalmente na chuva, até o terreno coberto de mato, com uma tapera de dar dó. Porém, o que avistei, dali de cima, mexeu com meus olhos e o coração.

Eu não tinha emprego, nem casa em São Paulo. Tinha, porém, acabado de receber 20 mil reais das vendas de um livro, que tinha feito em parceria com o hoje falecido editor de moda Fernando de Barros - "Elegância". Tião queria 25. Eu disse que tinha 20 e pagava à vista. Fechamos negócio.

Eu continuava sem casa em São Paulo, sem emprego, sem mulher, e estava novamente sem um tostão. Mas ali se desenhava uma nova vida.

Dormi uma noite na tapera, entre aranhas e vidros quebrados. O encanamento não funcionava. Pensei no Zé Luís. Levei-o de São Paulo para me ajudar. Subimos a montanha no carro velho, comprado com o dinheiro da rescisão trabalhista, que substituíra meu belo veículo corporativo. Chegamos levantando uma nuvem de poeira com a patinação.

Quando entramos no terreno, ainda cheio de mato, abri os braços.

- Olha, Zé Luís. Você conheceu minha casa lá em São Paulo, minha vida, tudo. Troquei por isso aqui. Você acha que eu estou louco?

Zé Luís olhou a tapera, o mato, e depois o vale verde, rodeado de montanhas, que pelas manhãs se encobria num lençol de nuvens, deixando fora só os altos de serra. Do outro lado, no horizonte, a Pedra do Baú.

Respirou o ar. E disse:

- Olha, seu Thales, se o senhor está louco, queria ser louco como o senhor.

Conto essa história para dizer que voltei para cá, semana passada, passar parte do meu retiro no meio da pandemia que forçou o isolamento. Estou acostumado a isolamentos. Mas, aqui, como tantas vezes, sinto que não preciso de mais nada.

Desde que aqui cheguei pela primeira vez, muita coisa mudou. Terminei meu primeiro romance, Filhos da Terra, que precisava desse ar livre para sair, e duas dezenas de outros livros de ficção e não ficção. Passei também por outros casamentos. No sítio, apareceram uns outros paulistanos pela redondeza e tem calçamento até na frente.

A casa já não é mais minha - hoje é de minha irmã, Lara, que veio aqui e gostou tanto quanto eu. Estou na companhia de minha irmã, meus sobrinhos, cunhado e meu filho. Depois de doze anos acabei indo para outros lugares. E agora, outros dez anos depois, por razões que a razão desconhece, estou novamente aqui.

Respiro. Quantas vezes pintei, desenhei e descrevi esse cenário? Achei que tinha deixado este lugar, este meu "canto do mundo", como diria D.H. Lawrence, para sempre. Mas volta e meia acabo aqui, sempre em circunstâncias de recomeçar.

Sou muitas vidas e muitos recomeços. E ainda sinto que tenho muito por fazer. Olho adiante e, em vez de cansaço ou desânimo, recolho experiências como material de trabalho.

Não sou mais tão jovem, mas, quando jovem, já pensei que teria menos tempo pela frente do que acredito ter hoje. E sei que a luta me fortalece.

Invento uns versos parafraseando a Canção do Tamoio, de Gonçalves Dias, rabiscando o caderno em cima do joelho.

"Não chores, amigo
Não chores que a vida
Não vence, é vencida
E se parece perdida
Pode recomeçar

A vida é ganhada
Sonhando acordada
É fim e partida
Eterno perigo
É sempre lutar."

Não sei por onde anda Zé Luís, mas ainda sou meio louco. E preciso da loucura, para viver, e trabalhar.