sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Um amigo vira uma estrela

Nos lançamentos dos meus livros, sempre aparece gente com uma história inesperada, que vem pedir algo estranho, ou contar algo surpreendente. Nada, porém, teve sobre mim impacto maior que aquela vez.

No dia 20 de maio de 2016, lancei na livraria da Vila, no Shopping Higienópolis, meu livro "A Conquista do Brasil". Na fila de autógrafos, apareceu então uma antiga colega de faculdade, Rosângela, que colocou sobre a mesa um livro diferente: Campo de Estrelas, romance lançado pela editora Globo, quase dez anos antes.

- Queria que você autografasse este, para o meu marido - disse ela. - Ele se chama Shin.

- Mas não é esse o livro que estou autografando! - eu disse.

- Tem que ser esse...

Rosângela contou estão sua história. Seu marido tinha sido diagnosticado com um câncer de pâncreas. No hospital, para distraí-lo das dores, ela resolveu ler para ele. Escolheu Campo de Estrelas. Todos os dias, lia para Shin um pedaço do meu romance.

Estranhei ela estar sozinha, ali. Pensei que Shin pudesse já ter morrido. Ou que poderia estar ainda no hospital.

- O que aconteceu com ele?

- Está aqui! - disse ela. - Mas pediu para eu vir no lugar dele.

- Traga ele aqui -, pedi. - Quero conhecê-lo.

Rosângela saiu. Atendi mais duas ou três pessoas na fila. Voltou Rosângela, com Shin. Fiz-lhe o autógrafo e levantei para conversarmos.

- Thales, me desculpe, mas eu não estava com coragem para vir falar com você - ele disse. - Você não sabe como seu livro foi importante para mim. No hospital, todos os dias, eu queria viver até o dia seguinte, para saber o que aconteceria na história.

Para quem não sabe, Campo de Estrelas conta a viagem aventuresca de um pai com o filho para Machu Picchu, narrada pelo filho, quando ele se trata de um câncer. A inspiração, claro, sou mesmo, que tive um pólipo na bexiga em 2003.

- E o que você faz? perguntei.

- Eu sou médico - disse Shin. - Chefe do departamento de cirurgia do tórax do Hospital das Clínicas.

Aquilo me deixou profundamente impressionado. Um médico, achando que eu o "salvara"?

Shin me lembrou de Eric, o médico que me atendeu, quando fiquei doente. Eric escondia de todo mundo - incluindo da própria mulher, também médica, assim como dos filhos, e toda a sua equipe - que ele mesmo tinha câncer de próstata, incurável.

Descobrimos a doença, eu e Eric, mais ou menos na mesma época. Ele dizia que eu tinha "sorte", por ter descoberto a doença a tempo de curá-la. Eu não entendia nossas conversas, nas quais ele me fazia muitas perguntas. Achava que estava interessado em mim.

Eric virou personagem em Campo de Estrelas. No romance, identificado como "Roger", narro como ele trabalhava como louco, tentando salvar todas as pessoas que podia. Atendia em seu consultório até as duas da manhã e às seis já estava no hospital, operando.

Só revelou estar doente em 2008, quando deu entrada no Einstein, onde operara milhares de pacientes. Todas as nossas conversas, então, mudaram de sentido. Eric me fazia perguntas, mas queria as respostas para ele mesmo. Entendi o que quisera dizer ao afirmar que eu tivera "sorte" de descobrir a doença a tempo. Ele mesmo não a tivera.

Eric vivia seus últimos anos de vida numa corrida para salvar quem podia. E não desperdiçava um minuto.

- Se você tivesse somente algum tempo de vida, o que faria? - perguntou ele, quando o visitei, no hospital. - Tiraria férias?

- Escreveria - eu disse.

- Então. Continuei fazendo o que eu faço.

Ao lado do leito, de onde ele continuava comandando sua equipe, li para ele algumas páginas de Campo de Estrelas, nas quais ele aparecia.

- Você devia ter colocado o meu nome - disse ele.
Foram as últimas palavras que Eric Roger Wroclawski proferiu para mim.

*

Eric faleceu em 2009, mas Shin ainda estava bevm vivo. Fui a um jantar em sua casa, organizado por Rosângela, uma jornalista com pendores artísticos, como eu. Como aconteceu com outras pessoas, meu livro produziu uma reaproximação. Daquela vez, porém, havia um sentido maior. Rosângela colocou a mim e a outros amigos dentro de casa para trazer alegria a Shin, mas foi para nós que ela acabou trazendo outro espírito.

Tive a a oportunidade de conviver mais com ele quando, com Rosangela e um grupo de amigos da faculdade, Shin foi até nosso sítio para uns dias de descanso. Estava bem disposto, em uma fase entre tratamentos. Nunca deixava transparecer dor, tristeza, angústia, sofrimento.

A simplicidade e os hábitos orientais - tirar os sapatos dentro de casa, a humildade, o respeito ao próximo, a atenção - se juntavam à modéstia em relação ao que ele fazia. Para mim, isso tornava Shin um homem maior.

Havia naquele coreaninho abnegado algo de heroísmo. Contava para isso sua incrível serenidade diante da ironia do destino, por não dar poder, àqueles que salvam, de salvarem a si mesmos.

Shin faleceu esta manhã de sexta-feira. Teve vida extraordinariamente longa após o câncer, pelo tipo de doença que o acometeu. Desde que eu o conheci, pôde ainda ver o nascimento de uma linda netinha, com quem conviveu. Completou sua bela família, com filhos e aquele espírito que se parece com a paz dos jardins orientais. Viajou. Lia diariamente o livro que Rosângela foi escrevendo, todos os dias, enquanto ela o escrevia.

Para mim, ficou um exemplo quase impossível de seguir. Poucos têm a dignidade de Shin diante da morte. Eu não sou capaz de aceitar assim, em paz, o fim. Eu me revolto, blasfemo, luto contra o inevitável. Não aceito a injustiça da condição humana, que nos dá a vida apenas para tirá-la, depois que lhe emprestamos algum significado.

Por isso, escrevo, como Eric, incansavelmente, como se tudo fosse acabar amanhã. (E agradeço, pois depois da doença puder ver nascer e crescer meu filho e ter muitas alegrias que jamais tinha sequer imaginado).

Sei que não podemos morrer miseravelmente. Os orientais, como Shin, crescem diante dos fatos cabais. (Quem tem medo morre como um cachorro, diz um ditado samurai). Têm o poder da resignação.

Shin via a vida como passagem. Os orientais, na morte, libertam-se do sofrimento terrestre e seu espírito plana no tempo. Somos partes do universo e continuamos fazendo parte desse imenso organismo que ninguém explica.

Essa é, para mim, a maior forma de fé.

Vá, querido amigo. Mas, talvez, eu nunca mais vá querer reler Campo de Estrelas, porque as estrelas já são tantas que ando a carregá-las com o peso todo do céu.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Lazinho e o relógio

- A gente está aqui emprestado. A hora que ficar bom, vai embora.

Zoel está com as pernas verdes, de roçar grama. Chateado, como eu. Acabamos de perder um colaborador. E um amigo. Usa a sabedoria da roça para nos consolar.

Lazinho. Depois de oito anos, não sei o nome inteiro dele, mas não interessa, porque na roça as pessoas têm um nome só. Quando cheguei a esta montanha, me ajudou a arrumar as coisas. Um homem tranquilo, positivo, trabalhador.

Vivia para a família. Construiu duas casas, melhores que as dele, mas morava na mesma, de sempre. A primeira, deu para a filha mais velha. A outra, alugava para turismo. Mestre de obra, era um faz tudo – pedreiro, encanador, marceneiro. Conselheiro nas coisas do mato, que ele conhecia todas, de cobra a minhoca, de flor até raio. Com o tempo, além de ajudar, foi ficando amigo.

Tinha também a sabedoria da roça, que tem mais valor, a meu ver, pela simplicidade, que vem da proximidade maior com o campo, a natureza. Aqui as plantas vicejam e morrem. Vem a seca e depois a chuva. O homem do campo aceita os ciclos. E que faz parte deles.

Lazinho recebeu assim a notícia do câncer que o levou em dois anos: como quem vê o inverno chegar cedo, este ano.

Certo dia, a mulher, Cida, mentiu que não tinha recebido a mensagem de Virgílio, meu médico, que tem casa perto da nossa e o ajudou a encaminhar-se no tratamento. Lazinho percebeu que ela estava sem coragem de dar más notícias e insistiu em saber a verdade.

- Se a gente tem de morrer -, ele disse -, pelo menos o meu já está marcado.

É difícil aceitar a perda de uma pessoa. Para mim, a natureza é revoltante, inaceitável. Mas aqueles que estão próximos dela, têm no nariz o cheiro de orvalho da noite e da grama molhada sob o sol da manhã, tiram o leite puro e depois a carne do gado, esses mais do têm coragem: são a coragem.

Eu e Lazinho andamos muito no mato, treinamos na besta, para caçar javali, que nunca caçamos, fizemos reformas e projetos que nunca se realizaram. Aparecia um problema, chama o Lazinho. Não tinha problema, também.

Aqui em casa muitas vezes Lazinho sentou, tomamos um dedo de cachaça, jogamos conversa fora. Aqui o sol entra pela varanda, bate na mesa, ilumina a conversa e a gente esquece o relógio. Aqui, eu só lembro do relógio porque, agora, falta alguém na cadeira, que está vazia na minha frente. E sei que ele não voltará para trás.

sábado, 26 de outubro de 2019

Na "China"

Mais um trecho do meu próximo livro, capitulinho intitulado..."Na China".
Em quarenta anos, poucas vezes fui à Liberdade; mas quis mostrar o lugar onde nasci a André. Levo meu filho para visitar a feira de domingo; ele tem pouco mais de três anos. Vamos de metrô, que tomamos na estação Sumaré; trocamos de trem na Sé e descemos na Liberdade. É a primeira vez que ele anda de metrô; os vagões estão vazios, mas ele prefere ir em pé, para ter a sensação da velocidade.
A ladeira da Rua dos Estudantes, onde ficava o prédio onde nasci, era um território perigoso, cheio de mendigos e bandidos, onde não se podia ir nem à luz do dia; a parte alta, porém, vibrava com os turistas de fim de semana, que enchiam as ruas decoradas com lanternas vermelhas.
Andamos pela feira de artesanato, na praça da Liberdade; coloco ele em meus ombros, para enxergar por cima da multidão. Andamos entre barracas de frituras, bonsais, bijuterias e objetos de bambu.
Almoçamos num restaurante de pernas cruzadas sobre o bandô; ele adora yakissoba, porque como bom italianinho aceita qualquer tipo de macarrão. E vai comigo ver o jardim japonês na ilha rodeada por carpas coloridas que enfeita um lado do salão..
Expliquei-lhe a certa altura que tinha nascido e vivido ali quando tinha a idade dele.
- Você então nasceu na China?
Tento esclarecer que era apenas o bairro japonês, mas ele, maravilhado, continua achando que está em outro país.
Depois de uma curta caminhada, com a preguiça das horas de digestão, decidimos para casa de táxi. Quando o taxista acelera, André pergunta, sentado no banco traseiro, ao lado da mãe:

- Vamos voltar para o Brasil?




quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Por que escrevo


Estou terminando de escrever um livro, que deve ser meu próximo, o mais difícil (para mim mesmo) que já escrevi. Divido ou antecipo aqui um pequeno trecho, que fala sobre a própria dificuldade de escrevê-lo. (E esse aí da foto sou eu mesmo, piqueno, objeto dessa obra).

"Deveria ser fácil, mas assumir os erros e enfrentar a nós mesmos para mudar e melhorar é uma tarefa ainda mais difícil que enfrentar os outros. Mudar é doloroso, pois no caminho temos de encarar quem somos, nossos medos, nossas falhas.

Precisamos de humildade para aceitar que não sabemos tudo, que temos problemas e que nossa felicidade depende dos outros. Isso fica muito evidente quando temos filhos. É por eles, até mais do que por nós mesmos, que devemos tentar ser melhores.

Aprendi a duras penas. O exercício de escrever é um processo de reflexão, do qual acabamos dependentes. Escrevemos não por vaidade, ou por exibicionismo, ou para ficar na posteridade, mas para viver. Seja como autor de livros de ficção como de não ficção, eu me obrigo primeiro a quebrar a casca da ostra, a encarar a verdade interior.

Depois, aceito o que nunca faço: me expor. Escancarar as portas da alma, sem segredos, é uma forma de mudar, superar a dificuldade de estabelecer uma ponte para o mundo. Ao escrever, ajudamos a nós mesmos; ao publicar o que escrevemos, a intenção é ajudar também os outros na mesma situação. O que vemos nos livros pode ser informação, ciência ou arte, mas em última análise é o aprendizado com a experiência humana, que dividimos uns com os outros.

Aquele que abre o coração expia seu sofrimento em busca de redenção. Dá o primeiro passo para a admissão de que é um ser humano. E descobre, ao abrir os braços, que os outros o acolhem. Saber que não estamos sozinhos no mundo e receber esse retorno, tanto quanto dá-lo, traz um grande alívio."

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

O futebol e os garotos

Leão na bola: bom, briguento e vaidoso
O futebol sempre foi mais que o futebol. Nele se encontram os grandes sentimentos do homem, suas virtudes, suas falhas, num laboratório cercado por quatro linhas de cal.

O esporte me ensinou muito sobre vitórias e derrotas e também que a presença é o maior bem que podemos ter. Papai ia ao futebol com vovô e uma de suas memórias mais caras de infância foi um jogo da Copa do Mundo de 1954 - um Itália e Argentina em que o goleiro portenho, chamado Vaca, fez inesquecíveis milagres.

Eu gostava de sentar com ele na arquibancada do Pacaembu, num canto da arquibancada que não custava muito caro, e o futebol era sempre pretexto para conversas e algumas horas de companheirismo despreocupado. Um tempo que tinha algo de cumplicidade entre homens, mesmo sendo eu apenas um menino, o que fazia eu me sentir muito importante.

Naquele tempo em que o Palmeiras tinha a poderosa "academia", derrotas eram raras – o time ficou dois anos invicto, entre 1973 e 1974, quando foi bicampeão brasileiro. O torcedor tinha mais mais liberdade, especialmente dentro do Parque Antártica, o antigo estádio do Palmeiras. No intervalo do jogo, mudávamos de lado na arquibancada, para ficar mais perto do campo de ataque. Como o Palmeiras sempre dominava a bola, a maior parte do jogo acontecia no campo do adversário.

Eram todos grandes jogadores, mas eu, desde cedo, admirava e tinha como ídolo Leão: o audaz, esbelto e briguento goleiro do Palmeiras. Não gostava de perder de jeito nenhum. E era vaidoso. Até então, os goleiros usavam uma roupa cinza ou preta, como a dos juízes. A regra diz que o goleiro precisa ter um uniforme diferente do time, não necessariamente preto. Leão aproveitou-se disso para envergar uma camisa azul, que se tornaria tradicional no clube por longo tempo.

Tive uma camisa daquelas, de algodão, com o escudo do Palmeiras sobre o plexo solar. Numa loja de esportes da Líbero Badaró, meu pai comprou para mim também luvas emborrachadas de goleiro, meio grandes para minhas mãos pequenas. Posso sentir até hoje o cheiro do couro e borracha.

Passava horas sozinho, chutando a bola contra a parede, e saltando para pegá-la de volta. Não há sensação mais maravilhosa do que voar na bola, fazendo a “ponte” – a defesa mais plástica do futebol, em que o goleiro se estica completamente no ar. Defender uma bola com a “ponte” era como fazer um gol.

Mais tarde, ao jogar na Casa Verde, ia sempre para o gol. Meu primo, que tinha seis anos mais que eu, estava sempre nas peladas da rua, do colégio Nossa Senhora das Dores e, depois no Matarazzo, o time do bairro, que jogava no antigo campo do antigo Guarani da Casa Verde, na várzea do Tietê. Como eram meninos mais velhos, para não me machucarem, ele me mandava sempre para o gol.

Aqueles eram outros tempos do futebol; havia ainda algo romântico no esporte. Lembro das difíceis partidas contra o Juventus de Milton Buzzetto, um técnico especialista em retrancas, que nos faziam sofrer – e algumas vezes, perder a cabeça.

Num jogo assim, uma briga se transformou numa batalha campal. Foram expulsos todos os jogadores do Palmeiras, menos, salvo engano, o olímpico Ademir da Guia. O juiz deu vermelho até para Leão, que estava no gol, longe da confusão, mas correu metade do campo para entrar na briga. Na partida seguinte, com a suspensão dos titulares, o Palmeiras entrou em campo somente com reservas; no lugar de Leão, jogou um goleiro com nome de astro de cinema: Raul Marcel.

Torcidas podiam levar bandeiras aos estádios e torcedores de times diferentes conviviam lado a lado, de forma mais ou menos civilizada.
Não havia tanto dinheiro no futebol, e os jogadores que iam para a Europa, uma economia mais forte, onde os atletas passaram a conseguir contratos milionários, eram mais raros. Os craques do Brasil jogavam no próprio país e havia grandes partidas, tanto nos campeonatos estaduais, onde os times do interior eram fortes, quanto no Campeonato Brasileiro.

Poucos jogos passavam na televisão, e os jogos da cidade não eram transmitidos ao vivo, já que não havia a TV a cabo; com sorte, à noite se podia ver o “videotape” da partida. Por isso, ir ao estádio era mais barato, frequente, e importante.

Embora o Palmeiras da minha infância fosse um time vitorioso, não importava o resultado da partida, desde que eu e meu pai estivéssemos juntos. Essa era a essência do futebol. Com o esporte, aprendemos a suportar melhor, até com bom humor, os maus resultados. Todos os torcedores se rendem a um certo saudosismo, a pensar que o futebol de sua infância era melhor, porque está misturado a nossas melhores lembranças.

Pode ser que as crianças de hoje achem o mesmo no futuro e este tenha sido para elas o melhor tempo do futebol. De todo modo, com os escândalos de corrupção, derivados das fortunas que correm nos jogos de azar agora feitos por redes virtuais, as tentações do demônio são maiores, ainda que a índole do ser humano sempre tenha sido a mesma.

Hoje, meus heróis continuam a ser os mesmos de antigamente; não sou capaz de enxergar novos ídolos, mas sou fiel aos mesmos, diante dos quais, ainda, me sinto criança. 

Ave, Leão.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

A Linha da Vida: a longa história de um breve romance


Em dezembro de 2009, fui conhecer a então nova Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e fiquei extasiado diante daquelas prateleiras cobertas de livros e, no centro, o auditório envidraçado que parecia flutuar entre as estantes, obra do arquiteto Isay Weinfeld.

– Ah! – exclamei, ao lado do proprietário da loja, Samuel Seibel. – Dá vontade até de escrever um livro aqui dentro!


Samuel olhou para mim, divertido, e provocou:

– Por quê não?

Surgiu então a ideia do “Escritor na Livraria”. Samuel reservou para mim uma mesa, ao lado do auditório, no amplo mezanino da loja; eu passaria ali um mês, numa espécie de reality show.

Escreveria um livro naquela mesa e meu computador estaria conectado a outra tela, voltada para o lado contrário. Assim, as pessoas que circulavam pela loja poderiam ver o que eu estava escrevendo: um livro sendo escrito em tempo real.

Escrever é por definição um trabalho solitário; gostei da ideia não apenas por fazer algo diferente, como pelo fato de que o processo de trabalho poderia contribuir para o romance que eu vinha justamente imaginando.

Na época, eu andava sob o efeito da leitura de Kafka, e de uma frase, que acreditava ter lido em algum lugar, talvez Kierkegaarde, segundo a qual a felicidade depende da incerteza. Claro, imagine se todo mundo soubesse como irá morrer: a condição para ser feliz é não saber.

Tinha de ser um livro curto, de impacto, um desafio para mim, autor de livros de fôlego; com aquela estranheza, simplicidade e força dos livros de Kafka.


O tema da incerteza ganharia força pelo método: eu permitiria que as pessoas pudessem ler e interferir durante o trabalho, de maneira que eu mesmo não saberia qual rumo a história tomaria.

Quando me instalei na livraria, eu sabia apenas duas coisas: o título, provisório (“Ensaio sobre a incerteza”), e a frase inicial (“Você quer mesmo saber?”). O título cairia ao longo do trabalho, mas a primeira frase persistiu.

Eu começava 11 horas da manhã e encerrava o trabalho por volta das 18:00, num expediente normal de trabalho, incluindo sábados. A pessoas passavam, primeiro, desconfiadas; aos poucos ganhavam coragem e vinham falar comigo, para entender o que estava acontecendo.

No final da tarde, o resultado do trabalho era publicado em um blog, pelo qual os clientes da loja poderiam continuar acompanhando diariamente o andamento da história.

Com o tempo, as pessoas começaram a participar e colaborar de verdade. Vinha, sentavam na minha frente, faziam perguntas, davam sugestões e contavam experiências próprias.

Assim, fiquei sabendo que o nome que eu havia escolhido para a cigana não podia ser o que estava lá no início; troquei-o para Rosa, que, conforme fiquei sabendo, é um nome cigano.

Surgiram jornalistas para gravar entrevistas, fotografar e escrever sobre o evento; eles também liam o que eu escrevia, faziam a crítica e comentavam sobre o que mudava na história.

Lembro especialmente de uma mulher, que sentou à minha frente e contou longamente sua história. Tinha nascido numa cidade ribeirinha do Amazonas, uma vila de pescadores, distante da civilização. Certa vez, quando tinha nove aos de idade, ciganos passaram por ali; uma cigana velha a tinha visto, lera sua mão e dissera que ela ainda seria muito rica e viveria na capital.

Para quem habitava as barrancas do rio, na beira da floresta, aquilo parecia absurdo. Na adolescência, porém, ela visitou Manaus para realizar um sonho de criança: conhecer o teatro Amazonas. Lá, encantou um rico médico carioca com quem rapidamente se casou; foi morar no Rio, teve filhos e há quarenta anos eles formavam uma família feliz. “Eu acredito em ciganas”, ela me disse, antes de ir embora.

O curso da obra ganhou outra interferência importante, que mudou o rumo da história. Naquela época, o noticiário começava a repercutir as denúncias sobre o médico Roger Abdelmassih, dono de uma célebre clínica de fertilização em São Paulo, acusado de violar suas pacientes.

O assunto ficou por dias nas conversas dentro da livraria. Um médico inspirado em Abdelmassih (o doutor Perez, ou o “Monstro”, como as vítimas de Abdelmassih o chamavam) foi incorporado à história. O dr. Jekyll da época deu um novo elemento ao romance.

No mês que passei na livraria, conheci seus funcionários, que gostavam muito do que faziam; era bom conversar com eles sobre música, livros e arte em geral; passeei pelo shopping de carrinho de golfe com Papai Noel, de quem me tornei amigo. Vi Paolla Oliveira pelada, sozinho na sala de cinema, numa tarde em que uma tempestade de verão apagou a luz do bairro e não pude trabalhar – o Cidade Jardim tinha gerador e, além dos elevadores, o cinema era a única coisa que funcionava.

Encerrei o trabalho no dia 24, véspera de Natal, como planejara, deixando o livro incompleto – para escrever em casa o trecho final, que as pessoas só poderiam ler quando fosse publicado.
Eu estava satisfeito. E cansado: não é fácil obter a concentração necessária para escrever, com gente em volta interrompendo a toda hora, embora eu, como jornalista treinado a escrever em redações com mais de uma centena de pessoas, e romancista trabalhando em casa com filho pequeno, soubesse lidar com a perturbação razoavelmente bem.

O evento foi um sucesso: promoveu a nova loja e cheguei a ser convidado para repetir a proeza numa livraria em Lisboa, a convite do Sapo – o maior portal da internet em Portugal, que queria transmitir a redação do livro em tempo real com uma câmera “24 horas”. Agradeci, mas recusei: repetir o feito, ainda mais longe da família, por trinta dias, seria demais.

Como as surpresas do destino do qual trata, A Linha da Vida ficou parado no estágio em que encerrei o trabalho na livraria, por um longo tempo. Em novembro de 2009, quase ao mesmo tempo em que começava o meu reality show literário, recebi um convite para ser diretor editorial da Saraiva, então a maior rede de livrarias e uma das maiores editoras do Brasil.

Em janeiro, ao assumir o cargo, com a responsabilidade de desenvolver as publicações de ficção e não ficção da editora, me considerei impedido de publicar o romance: como editor não queria publicar meus próprios livros, porque pareceria conflito de interesses, ou causaria estranheza nos autores de quem eu deveria cuidar em primeiro lugar; em outras editoras, passava a ser considerado concorrente.

O livro permaneceu dormindo. Passou para trás na minha lista de prioridades, mais tarde, quando voltei à vida de autor, concentrado em novos projetos. A Vila acabou fechando sua maravilhosa loja no shopping, talvez por ser tão maravilhosa que fugia um pouco à realidade comercial, sobretudo nestes novos tempos.

Só agora, numa janela entre trabalhos, resolvi revisitar o texto e concluí-lo. Dei-lhe um final, até agora inédito. E decidi publicá-lo como e-book, de acordo com sua história, precursora dos atuais livros virtuais.

O texto se manteve fiel aos propósitos originais: o tema, o tamanho, a busca pelo impacto. Mudou um pouco, contudo, sua direção; criado ao sabor dos acontecimentos, ganhou mais foco quando percebi, afinal, por quê havia me interessado pelo tema e pela história.

Está concluído A Linha da Vida, um breve romance com uma longa história: resta agradecer a todos os que com ele colaboraram, incluindo o Destino.
Juncal, agosto de 2019

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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Como surgiu O Livro Proibido

Em 2003, quando levei O Homem Que Falava com Deus ao editor Pedro Paulo de Senna Madureira, ele disse que ninguém acreditava em livros de autores brasileiros sobre algo que não fosse o Brasil.

- Mas vou publicar mesmo assim - disse ele. - Porque é um livro seu.

Um mês após o lançamento, quando eu ainda fazia a noite de autógrafos, a primeira edição de O Homem que Falava com Deus - surpresa... - já estava esgotada.

Penso nesse episódio quase anedótico agora que lanço, tantos anos depois, um segundo livro que ronda o esoterismo: O Livro Proibido, série de episódios envolvendo um sábio proibido de falar e enterrado nas dunas da história.

Os tempos mudaram. Dessa vez, escolhi lançar o livro somente em versão digital, pelo Kindle da Amazon, como experimento. O sistema da Amazon permite vender o livro em qualquer lugar do mundo. Inclusive na forma impressa, pelo sistema on demand. Infelizmente, o Brasil é um dos poucos lugares onde isso ainda não funciona.

Velhas histórias ganham contemporaneidade, não apenas pela tecnologia, como pelos temas da obra, que me parecem tão atuais, num momento em que procuramos justamente uma luz em meio a um grandes caos político, religioso e cultural, potencializado pelas novas tecnologias.

Continuo gostando de temas esotéricos. Me aproximei deles ao ler, ainda adolescente, ao Sidarta de Herman Hesse, obra que influenciou não somente o que escrevo como o meu pensamento. Gosto da filosofia e da arte orientais. E de sua forma de encarar a natureza e a espiritualidade como uma coisa só.

Gosto do deserto do Sahara, onde estive três vezes, uma delas apenas para fazer a pesquisa para O Homem que Falava com Deus. Em especial, uma parte desse deserto, que chamam de El Rayan, a noroeste do Cairo.

Lá, as dunas são formadas por conchas, porque um dia toda aquela imensidão foi um fundo de mar. Tirei no El Rayan a foto que agora ilustra a capa de O Livro Proibido. Aquele lugar tem, de fato, algo de mágico.

A esses ingredientes, juntei também minha admiração por Borges, para quem histórias antigas serviam como fonte para uma erudição por vezes inventada, produto da mais pura e fina fantasia.

Nos labirintos de Borges, feitos de portas falsas, que parecem tão verdadeiras, ficção e realidade se confundem.

São estes mistérios que estimulam a mente e nos ajudam a encontrar respostas na vida real. Assim como O Homem que Falava com Deus, O Livro Proibido é um exercício de reflexão, tanto quanto um thriller ambientado num tempo milenar, e um jogo, um desafio, ou provocação.

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