quinta-feira, 28 de março de 2019

Escritor não é profissão

Por vezes, me identificam assim, numa entrevista: "o escritor Thales Guaracy..." Ou me perguntam como é "ser um escritor".

Pode parecer estranho, mas isso para mim não tem sentido. Nunca escrevi na ficha de hotel, onde se coloca a profissão: "escritor". Nunca me referi assim a mim mesmo, nunca me apresentei dessa forma, a ninguém.

Escrever não é nada. Pelo menos, em si. Importante, para mim, são as ideias. Escrever é pensar. O resto é datilografia.

Não me defino, portanto, como escritor. Sou jornalista profissional, formado na USP. Sou bacharel em Ciências Sociais - antropologia, sociologia e política - formado também na USP. 

Na ficha, escrevo: "jornalista", para facilitar, já quem não tem muita gente que sabe o que é um cientista social. E só. (Bem, hoje em dia tem muita gente que não sabe o que é jornalista).

Você pode ser um engenheiro e escrever um livro. Isso não é ser escritor, é ser engenheiro. O mesmo se passa com um médico, um advogado. Eu escrevo também romance. Para mim, nem o romancista é escritor. É um romancista.

Como jornalista, cientista social, e também romancista, coisas que parecem tão diferentes, eu na realidade sou uma coisa só: um pensador. E, por saber como os romanos que a palavra voa, a escrita fica, ("verba volant, scripta manent", o ditado em latim), escrevo.

Escrever é a consequência do que somos, do que fazemos, e não um propósito, um fim em si. O que importa é levar adiante as ideias. E melhorar alguma coisa do mundo, quando podemos, um pouquinho.

O que escrevemos hoje estará para a civilização do futuro como estão para nós, hoje, os hieróglifos egípcios. Porém, se não fossem os hieróglifos, talvez nada se saberia do Egito, e não fosse a escrita talvez nunca tivéssemos chegado, no mundo, a alguma sabedoria.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Um charuto no Hof

Quando fui editor de livros, eu tinha de frequentar regularmente a Feira de Frankfurt, uma cidade meio sem charme da Alemanha, mas que tem um dos meus lugares favoritos no mundo: o bar do Steigenberger Frankfurter Hof. Ou, simplesmente o Hof - mais célebre hotel da cidade, reduto histórico onde se encontram jornalistas, editores e autores, todas as vezes que o circo do mercado livreiro faz sua parada na cidade.

No hotel tradicional, marcam-se encontros, alguns de trabalho, outros para conhecer pessoas e rever amigos. Por duas ou três noites, durante o período da feira, o hotel se ilumina não apenas com os velhos candelabros como o burburinho das discussões de negócios no salão principal, tão cheio de histórias que envolvem a própria história do livro.

Da primeira vez que fui, lembro de ficar ombro a ombro com uma jovem italiana que pedia no bar do jardim uma garrafa de água, enquanto eu tomava nas mãos uma flute de champanhe.

- Mas você só bebe água? - perguntei.

- Não - ela disse, com um sorriso. - Mas é melhor assim, porque tenho de estar sóbria, amanhã tenho um compromisso de trabalho com um editor logo cedo.

Qual não foi nossa surpresa, e diversão, quando no dia seguinte, pela manhã cedo, ao aparecer no salão dos agentes literários para a primeira da série de reuniões do dia, descobri que o encontro dela era... Comigo. Foi assim que conheci Giulia Mignani, que na época trabalhava na agência inglesa Numberg e depois se tornou editora em Milão, na Mondadori.

O bar do Hof: ilha na intolerância 
No Salão do Hof, comemorei junto com as moças da agência Balcells o Nobel concedido naquela mesma noite ao escritor peruano Mario Vargas Llosa. Uma noite especial também para mim.

Eu tinha acabado de entrar na editora, sabia que estava perdendo Llosa como autor para outra editora, com o vencimento de antigos contratos, que soubera desde a minha chegada que não seriam renovados. Naquela noite, graças a uma boa lábia, à champanhe e o entusiasmo das agentes, consegui manter algumas obras de Llosa na Saraiva-Benvirá, agora impulsionado pelo Nobel, por algum tempo mais.

O que eu mais gostava no Hof, porém, era de chegar cedo, nas horas de silêncio. lha no mar da intolerância na qual se podia fumar charutos à vontade, no bar do Hof sempre reina um silêncio reverencial. Lá, num poltrona de couro, reflexivamente, eu me sentia muito mais à vontade que em meio à alacridade dos encontros sociais.

Fiquei amigo dos garçons e gostava de passar ali um tempo, antes que o salão se enchesse de gente, pelo simples prazer de estar ali. E por me juntar a todas as almas que lá conviveram e fizeram da literatura não apenas o grande reino exploratório da alma humana como um lucrativo negócio.

Assim, distribuía minhas vitoriosas baforadas, satisfeito de deixar também nele lugar, como volutas que vão se tornando invisíveis, um pouco de mim.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Nascido no ano do dragão

Hoje completo 55 anos. Por isso, vou deixar aqui um trecho de um livro de memórias, que está quase pronto, e quero publicar um dia desses. Fala da era de onde eu vim. Fica pra vocês como aperitivo - e para sentir o que significam 55 anos.


"Certa vez, ao trazer minha mãe de volta para casa, depois de uma sessão de quimioterapia no Hospital do Câncer, uma das últimas que ela fez, o caminho nos levou a passar na Rua dos Estudantes. O lugar onde nasci, no final da ladeira onde a Estudantes entra no chamado Baixo Glicério.

- Nosso primeiro apartamento foi aqui, de frente para a rua, no terceiro andar – disse mamãe, apontando.

Eu já sabia - e lembrava. Nosso edifício continuava lá, o mesmo bloco de cimento áspero e cinzento. A porta central dava para o longo corredor interno; do lado direito ficava a entrada da garagem descoberta e, à esquerda, outra porta basculante, onde no passado funcionara um bar, estava fechada. Era um cortiço, não sei há quanto tempo. Ao lado, um imóvel derrubado dera lugar a um beco onde se amontoavam barracos de plástico preto. Gente sinistra espreitava.

Bem que eu gostaria de bater à porta e pedir para olhar lá dentro, mas dava medo descer do carro. Passei reto. A casa onde morei já não estava lá, e sim na minha memória. Tentei avaliar se aquele lugar já era assim ruim ou decaíra com o tempo. Certamente piorara; porém, creio que nunca tinha sido bom. Nem a casa, nem os tempos.

Pelo horóscopo chinês, todos os nascidos no ano de 1964 pertencem ao signo do dragão. Diz o horóscopo chinês que o Dragão é generoso, inteligente e tenaz. Pode alcançar a riqueza, mas não é por ela que trabalha. Gosta da liderança e do poder. Precisa, no entanto, de flexibilidade, tolerância e compaixão. Não sei. Sei que aquele foi mesmo um tempo de soltar fogo pelas ventas.

Em 1964, a Liberdade era região dos “inferninhos” – lugares mal-afamados com dançarinas que faziam programa e nem por isso impediam que logo ali se instalassem algumas famílias como a nossa. As boates de prostituição faziam à noite um barulho distante que me intrigava. 

Com quatro ou cinco anos de idade, perguntei ao zelador, com a candura e a curiosidade das crianças, por que lhe faltava um pedaço do dedo anular direito. Ele me respondeu que trabalhava de guarda numa boate ali perto; certa madrugada, dera um tiro com uma pistola automática e, quando ela cuspira a cápsula da bala, arrancara-lhe aquele terço.

Eu o achava simpático e, ao mesmo tempo, um tanto sinistro. Mantinha sempre fechado o fosso central do edifício, ao qual se tinha acesso por uma porta no longo corredor, como um alçapão na parede. Mais tarde, descobri que ali ele criava patos. Poucas vezes vi a porta aberta: um quadrilátero coberto de guano, com um cheiro repugnante, onde patos velhos e sujos grasnavam e espadanavam aos montes; um lugar onde o sol nunca chegava e pelo qual eu passava rápido, mesmo de porta fechada. Eu não entendia o que faziam ali aquelas aves; ou melhor, intuía que se tratava de um matadouro; foi esse contato que me deu uma primeira e lúgubre noção da morte.

Tornou-se célebre em casa o pato com cerveja preparado pela mãe com uma das crias do zelador, que para sua infelicidade permaneceu no prato, depois da careta dos comensais. Lembro de mexer co arroz amarelo longamente com o garfo; a expressão interrogativa de minha mãe, que foi virando zanga, depois fúria; rejeitar sua comida era rejeitar o seu amor, e isso a deixava tão possessa quanto se deliciava com os cumprimentos de qualquer almoço do qual saía com os costumeiros elogios.

Como em outras ruas do centro, na Estudantes o submundo dos proxenetas e outros marginais convivia com a “gentinha”: aqueles seres anônimos que viviam de pouco. Eram funcionários de pequenos armarinhos, bares, pensões, lojas de artigos baratos. Homens gastos pela desesperança e mulheres mestiças de exuberância e pobreza, aquela beleza suburbana ao mesmo tempo sensual e melancólica que exercia em mim ao mesmo tempo repulsa e atração.

Sem horizontes, viviam a beber (os homens) ou a falar da vida dos outros (homens e mulheres), o que aos poucos transferiu a expressão “gentinha” para a identifição dos fofoqueiros e maledicentes. Além deles, havia toda a marginália de bêbados, mendigos e vagabundos que faziam da rua uma zona proibida, como se eu estivesse numa ilha cercada de águas cheias de tubarões.

Ali meus pais podiam pagar o aluguel de um imóvel maior que a quitinete de seus primeiros meses de casamento. Nosso apartamento tinha dois quartos, era próximo da praça da Sé e do trabalho de meu pai - a Gepesa ficava na Rua Líbero Badaró. A prefeitura acabara de retirar os bondes da cidade e havia um cemitério deles num terreno baldio ao lado do viaduto que saltava a via férrea na entrada da avenida Rio Branco. Os trilhos do bonde ainda estavam colados ao asfalto e as ruas do centro cobriam-se pelos fios das linhas de trólebus, os ônibus elétricos que eram o principal sinal de modernidade do transporte público.

São Paulo ainda possuía algo da elegância de seus tempos áureos. Não havia shopping centers. O comércio era na rua, especialmente no centro da cidade, onde ficavam os dois grandes magazines - o Mappin e a Mesbla. Os homens andavam de gravatas finas e ousavam abandonar o chapéu. Para as mulheres, havia blusas de gola rulê, saias ou calças justas e curtas, que deixavam de fora a canela. O cabelo era armado com altas doses de laquê.

Mesmo quem era pobre, naquele tempo, se vestia melhor que os ricos de hoje. Vejo as fotografias de minha mãe e suas irmãs em casa de meus avós, ou em lugares como Campos do Jordão, e penso que aquela foi a última era da elegância. O consumo de massa ainda não destruíra a roupa de alfaiataria, nem espalhara o jeans para o uso comum, assim como a camiseta. Naquele tempo, usava-se ainda roupa social no dia a dia. E as pessoas se vestiam de forma diferente umas das outras.

O jeans, conhecido ainda como “calça rancheira”, apenas aparecia. Quando eu era pequeno, meu pai tinha só uma, guardada no fundo do armário, por seu pouco uso. Era grossa, dura e desconfortável. Criado pelos mineradores para o trabalho árduo nas minas nos Estados Unidos, o jeans era feito de índigo, uma lona grossa para ser utilizada no campo ou operários no serviço braçal. A disseminação do seu uso coincidiu com o início da democratização da roupa e da sua transformação em artigo rapidamente descartável, segundo os interesses da indústria de massa.

Embora meu pai não tivesse dinheiro, jamais deixou de lado um certo comportamento aristocrático, enraizado na família desde um tempo em que meus bisavós possuíam fazendas cheias de escravos na região de Piracaia, perto da divisa com São Paulo. Meu avô, que fugira de casa na juventude, depois de brigar com a madrasta, e vivera vida aventureira, tivera sido destituído da herança por um irmão trapaceiro. Porém, jamais se queixara de sua condição, do irmão, do dinheiro – de nada. Papai fazia o mesmo.

Uma vez casado e obrigado a virar-se por conta própria, ele tinha de viver no meio da ”gentinha”, mas era diferente dos outros – ele, sim, tinha perspectivas de sair dali. Educado graças ao gosto pela leitura, herdado de vovô, mesmo depois do golpe de 1964, que mudara sua carreira de maneira abrupta, acreditava prosperar no jornalismo. Mesmo não sendo tão culta quanto ele, mamãe estava ligada à educação pelo trabalho como professora. Além de interesses e ideais em comum, ela tinha a energia, o espírito de iniciativa e calor para ajudar e impulsionar o marido.

Era um casal admirável; eles estavam próximos pelo amor, pelo objetivo em comum da família e por características que, mesmo onde havia diferenças, se completavam na direção do bem comum. E talvez seja assim com todos os casais; uns administram a vida a partir da união inicial para convergir ainda mais ao longo do tempo, outros divergem até que a distância entre ambos fica tão grande que torna a separação inevitável.

Eles se casaram para sempre, num tempo em que “para sempre” começava a ser muito relativo – eles apenas não sabiam disso, ainda. Além das mudanças da tecnologia e da política, aqueles anos turbulentos da década da 1960 marcaram também o início de uma profunda mudança de comportamento e mentalidade. A geração de meus pais foi a primeira a colocar a felicidade como um bem sem barreiras, fossem religiosas e psicossociais. E como um bem eminentemente individual, acima, portanto, da família antes sagrada.

A manutenção do casamento deixou de ser tão importante; nessa geração, foi aprovado primeiro o desquite, depois o divórcio. A separação se tornou comum e este foi um passo decisivo para a criação da era de independência e individualismo que chegou ao auge nos anos 2000. Um modelo que, todavia, criava também seus próprios problemas, como o anterior.

As mudanças de comportamento tinham forte influência nas artes, muito rica naquele período. Os Beatles, banda inglesa que deu início ao fenômeno de massa em escala mundial, começou sua carreira usando gravata e terno preto; terminou de cabeleira e roupas largas que indicavam a liberdade de criação, pensamento e conduta. O estilo que se tornou conhecido como “bicho-grilo”, teve seu auge depois do festival de música de Woodstock, em 1968 e inaugurou o que se passou a chamar de “contracultura”.

A gíria da época se tornou muito característica; por conta da Jovem Guarda, que imitava no Brasil os Betles dos primeiros tempos, com suas músicas meio inocentes de juventude, ficaram famosos os bordões como “mora”, ou “morou?” (entendeu?). Vinha de “é uma brasa, mora”, frase criada por um jovem talento que encantava as multidões: Roberto Carlos. Tudo o que causava espanto vinha acompanhado da expressão “putz”, de “putz grila”. 

A influência das artes no comportamento e vice-versa em escala mundial apenas começava. Ainda havia pouco contato cultural com a Europa e os Estados Unidos. A TV incipiente tinha programação local e eram privilegiados os que tinham a oportunidade de conhecer o exterior – os aviões transcontinentais eram poucos, caros e demorados.

Esse relativo isolamento mantinha o Brasil com uma cultura autóctone, muito mais presente na vida dos brasileiros. Esta refletia apenas de longe a influência estrangeira que viria quase a substituí-la mais tarde, com o acesso imediato à informação e a criação do mercado global. A produção cultural brasileira era forte, predominante e rica. A década de 1960 foi uma fase áurea das artes brasileiras, com o maior encontro de gênios criativos numa única época, rebento de um longo período de desenvolvimento, liberdade e elegante despreocupação vindo desde os anos 1950.

Na arquitetura, havia Oscar Niemeyer, que acabara de desenhar Brasília; no paisagismo, Burle Marx. Grandes mestres das artes plásticas, como Di Cavalcanti, Portinari e Aldemir Martins, buscavam no retrato do povo a reafirmação da identidade nacional. Não eram assinaturas em museus, mas artistas vivos, trabalhando, sob a influência do mundo ao seu redor. Na literatura, conviviam Jorge Amado, Graciliano Ramos, Antonio Callado.

A década de 1960 foi também palco de grandes compositores, tanto da geração anterior quanto a mais jovem, todos em sintonia com os acontecimentos políticos e sociais que fariam a arte se alinhar com as bandeiras da democracia e da liberdade. Essa tendência cresceria depois do golpe militar de 1964, flor em meio aos espinhos, bandeira de poesia e liberdade em tempos de brutalidade, espada de idealismo para enfrentar os desafios sociais de um país que não aceitava mais o subdesenvolvimento, uma expressão que caracterizava a visão do Brasil sobre si mesmo nesse período.

O país ainda veria coisa pior, quando as metrópoles se transformariam em bolsões de pobreza e violência muito maiores, mas naquele tempo ainda havia a esperança de melhorar. Ninguém imaginava que levaríamos trinta anos para ter de volta a democracia plena, nem que a ditadura, apesar de uma série de realizações, como grandes obras de infra-estrutura a um custo bastante alto, teria de nos levar primeiro ao caos econômico e social para ruir.

O artista falava de amor e da vida simples, mas erguia bandeiras de um mundo melhor. O Brasil era romântico, tanto nas músicas sobre a saudade e o amor como no sonho de mudar o país e o mundo, alimentado por muitas bandeiras que se mostrariam também ilusórias, como a do comunismo.

Naquele tempo, quando a cultura de massa ainda não nivelara a qualidade por baixo, as canções depuradas, com letras inteligentes, eram também a canção popular. Nesse ambiente, meus pais vibravam com as vozes de João Gilberto, Maysa, Elis Regina, Jair Rodrigues, Wilson Simonal. Viviam ao ritmo das canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Assistiam à progressiva influência do rock, com a cara de uma juventude livre e despreocupada, incorporada pela Jovem Guarda, de onde se lançou Roberto Carlos. E o despontar de talentos ao mesmo tempo populares e intelectualizados como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Podia-se ver agora esses astros refinados em shows multiplicados pela TV cada vez mais acessível e levá-los para casa em discos de vinil, cultura viva que integrava o público na nova tecnologia das vitrolas de “alta rotação”. Os sucessos das rádios eram lançados imediatamente nos “compactos” – discos de vinil pequenos, que os americanos chamavam de “singles”, contendo apenas aquela música, mais outra no verso.

(Colocar a música na vitrola era uma delícia; a ponta do dedo levava a agulha até a faixa a ser ouvida, aquele barulho da agulha pousando no vinil, iííííí, e então a mágica, produto da sensibilidade e inteligência, música para a cabeça, o coração e a alma.)

O artista contra a supressão da liberdade e política mostrava como a luta contra a ditadura não era apenas uma questão política, da esquerda contra a direita, mas do iluminismo contra o obscurantismo, da alegria contra a sombra, da paz contra a opressão.

As cidades acompanhavam as mudanças sociais; o Brasil rural se transformava num país urbano, com uma indústria ascendente e moderna, especialmente a automobilística. O caos das metrópoles, o tráfego intenso, a violência exacerbada e o crime organizado ainda não eram sequer uma hipótese. Crimes de morte chamavam a atenção pela raridade e a brutalidade, sem perder-se na névoa da indiferença, capaz de cobrir tudo o que se torna rotineiro; o início do processo de banalização do absurdo, porém, estava ali.

Eu pouco sabia ainda da vida lá fora; não tinha consciência do que viria, nem mesmo de onde estava. Cresci naquele tempo de mudança, em meio a uma pobreza da qual nunca tive exata consciência, talvez até hoje, nem das dificuldades pelas quais meus pais passavam. Como eles, eu acreditaria sempre numa vida melhor, não com base em previsões, econômicas, mas simplesmente porque vim daquele tempo em que as pessoas viviam sobretudo de sonho."


sexta-feira, 8 de março de 2019

Chegaram!

Que satisfação receber pelo correio meus livros recém lançados em Portugal.


O futuro para autores e editores


Uma nova perspectiva para o mercado do livro na era digital

Confesso, eu me tornei editor de livros por acaso. Quando entrei na Saraiva, foi para escrever um livro – e não editar livro. Por mais improvável ainda que pareça, a encomenda era um livro destinado a um único leitor: o filho do doutor Ruy Mendes Gonçalves, sócio da Saraiva.

Uma criança que ainda estava por nascer. E que ele, com uma doença em estado avançado, sabia que não poderia educar. “Preciso que você escreva um livro contando a minha história ao Ruyzito”, disse. “Porque eu mesmo não poderei contar.”

Como recusar?

Em seis meses de trabalho, escrevi com Ruy O Serelepe, que já foi lido por bastante gente, e um dia o será pelo Ruyzito.

Eu e Ruy nos tornamos amigos e dividimos ideias e projetos. Naquele tempo, Ruy planejava expandir a área de varejo da editora Saraiva. E prepará-la para o futuro, com o prenúncio do fortalecimento do livro digital, supostamente capaz de quebrar muitas editoras e livrarias.

Sabendo do meu passado como executivo e editor de revistas, e querendo que eu continuasse por perto, me convidou para tocar a área de ficção e não-ficção da editora, com metas ambiciosas.

Fiquei na Saraiva três anos, dois além do que pude dividir com Ruy, com quem tive bons momentos, até seu falecimento. Aprendi muito, com ele, com agentes e livreiros, com acesso a todos os aspectos do negócio.

Fizemos também muito. Na Saraiva, criamos um selo (Benvirá), promovemos um prêmio literário recordista de inscrições, ganhamos Jabuti de literatura e outros prêmios, colocamos a Saraiva pela primeira vez na Flip com vários autores e multiplicamos o faturamento por cinco, em três anos de trabalho, com o lançamento de mais de uma centena de títulos.

Missão e todas as promessas ao Ruy cumpridas, achei que podia sair, para voltar apenas a escrever.

No fim das contas, ele estava certo: a crise veio. A Saraiva vendeu sua editora, que era lucrativa, para sanear a livraria, que nunca melhorou. O modelo de megastores, que antes dera lucros, se tornou pesado demais, num tempo em que todo o varejo é desafiado a trabalhar junto com o meio digital.

Passei um período de clausura, apenas escrevendo, para retornar ao mercado novamente como autor. Lancei pela editora Planeta A Conquista do Brasil e A Criação do Brasil, reportagens históricas sobre a colonização brasileira e a formação do DNA nacional. E um romance, Anita, sobre Anita Garibaldi, pela editora Record.

Agora sou um autor privilegiado, por conhecer mais gente e outros aspectos do negócio editorial. Volto a conversar com os compradores das livrarias e vejo um mercado dentro de um impasse ainda maior do que o existente no momento em que saí do meu posto como editor.

Enquanto as vendas do livro digital ainda parecem pequenas, insuficientes para se apostar nisso como negócio, as margens e as vendas do livro impresso andam cada vez menores. As grandes redes de livrarias - incluindo a Cultura, além da Saraiva - estão virtualmente falidas. As editoras não dedicam tempo ao mercado digital, porque este não paga as contas. E torcem para que as coisas voltem a ser como eram.

Isso não vai acontecer. O processo é irreversível, mesmo no livro didático. A perspectiva de o governo converter os milhões de livros que adquire do mercado em material virtual, num futuro próximo, é como uma espada sobre a cabeça de todos os grandes editores.

No varejo, algumas editoras optaram por se juntar e fazer volume com um imenso catálogo, mas nem isso parece garantir sua sobrevivência: seu futuro das editoras não depende apenas a escala de vendas, como também da mudança do próprio modelo do negócio.

As livrarias que não quebraram, atendo-se a vender livros em vez de produtos eletrônicos ou outros fora do foco, têm uma oportunidade de crescer no vácuo de quem está devendo dinheiro na praça. Porém, todos se perguntam como será o futuro – e como continuar.

Uma das ideias que procurei aplicar como editor é a de que é preciso explorar as possibilidades do presente, sem perder a passagem para o futuro. Por experiência própria, sei que é difícil nas grandes empresas rever processos de trabalho e toda a lógica do negócio, quando se tem contas imediatas a pagar.

É isso o que acontece com o mundo do livro. É mais fácil começar um negócio do zero, do que mudar o rumo de uma grande editora. Por isso, assim que me vi com liberdade para isto, resolvi aplicar um pouco das ideias que tive a meu favor.

Quando deixei a Saraiva, abri para mim mesmo um selo de livros digitais, onde coloquei meus títulos de backlist – livros cujos contratos com as editoras foram vencendo e cujos direitos guardei para mim mesmo.

Hoje, é preciso levar mais a sério a autopublicação. Não só para manter ativos títulos que já estavam fora de catálogo. Já é algo a se considerar para a venda de livros novos. Sobretudo digitais e em papel, sob demanda.

Esse sistema diminui o risco da editora e permite a formação do catálogo. A editoras têm procurado gastar pouco. Há editoras independentes que hoje só produzem o livro impresso se tiverem um grupo de leitores que já pagaram antecipadamente pelo livro. Há pelo menos um caso, a TAG, que inventou um clube do livro, pelo qual se paga mensalmente e se recebe um livro-surpresa. Não é um grande negócio. Porem, todos os negócios, no futuro, parecem ser afixados a algum nicho.

Muitas surpresas hoje estão surgindo da internet. Como editor, alguns dos livros em que eu mais apostava não vingaram da forma esperada. Outros, em que acreditava menos, foram sucesso. A internet oferece um grande espaço para testar o que funciona melhor e conectar-se com redes ou comunidades de leitores.

Por melhores que sejam, editores não têm bola de cristal. A realidade é que o público leitor decide o que vai ler. Isos vale tanto para o grande hit como para a cauda longa – o conjunto de títulos que individualmente vendem pouco, porque atendem a interesses muito individuais, mas na soma geral representam um volume de vendas muito maior.

Gastar pouco e apostar mesmo nos livros que venderão pouco, mas venderão - essa é a razão pela qual acredito que há mais chance de sobrevivência no futuro de uma editora independente do que nas tradicionais.  

Estou absolutamente convencido que no futuro não fará sentido manter estoque e mandar um livro para Manaus, ao preço de 40 reais, quando o leitor poderá tê-lo com apenas um clique, pagando 9,90 no formato digital. Não serão os leitores que irão decidir por esse novo modelo: será a própria indústria. Assim que as vendas não estiverem mais compensando seus pesados custos atuais, as empresas terão de mudar.

Imagino que em alguns anos o mercado de livros será um misto de editoras capazes de fazer obras que um único autor não poderá produzir, disputando espaço com autores independentes ou lançados por editoras digitais.

Haverá autores que agirão cada vez mais como editores, e editores que terão de ser cada vez mais autores. Para isso, terão de investir em conteúdo próprio, ou conteúdo de terceiros num novo modelo, que dispensará extensas, cansativas, caras e cíclicas renovações de contrato.

Cada um pode ver o futuro como quiser, claro. Essa é apenas a minha impressão. De uma coisa, porém, ninguém pode duvidar: esperar que nada vá mudar, sem fazer nada, é a melhor maneira de ver o bonde passar.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Deus aos 12 anos

Meu filho completou 12 anos. Aos 12, surgem novas dúvidas na vida. Sua maior preocupação, agora, é com a existência de Deus.

Estava interessado em Breves Respostas para Grandes Perguntas, o livro póstumo de Stephen Hawking. Queria saber o que um cientista pensava a respeito dessa questão.

Comprei o livro. Na cama, antes de dormir, ele leu algumas páginas, e fechou-o de repente.

- Deus não existe -, disse.

No dia seguinte, fomos de carro ao Parque Villa Lobos jogar bola. No caminho, perguntei a ele o que Hawking dizia no capítulo sobre Deus.

- Ele diz que a ciência ainda não encontrou respostas para algumas coisas. Mas também não achou provas da existência de Deus [como explicação para essas questões].

Resolvi então aplicar nele o método socrático.

- Você aceita a ideia de que alguém pode acreditar em Deus, simplesmente por acreditar, por ter fé?

- Sim. Mas uma pessoa acreditar não quer dizer que ele exista.

- É verdade. Mas se eu acredito em Deus, por exemplo, e Deus me diz para fazer coisas boas, e isso me faz dar um prato de comida para quem tem fome, essa ação - dar um prato de comida - é algo bem concreto, não?

- Sim.

- Se eu fiz isso por acreditar em Deus, então essa ideia de Deus se tornou  um ato real. Podemos dizer então que Deus atuou por nosso intermédio?

-Sim.

- Se fazemos algo que existe por causa de algo que não existe, por nosso intermédio esse algo não passa a existir também?

- Sim. Passa a existir também.


- Então concluímos que Deus existe.

Ele ficou surpreso com a demonstração socrática da existência de Deus. Em batucou. Como pede a filosofia, a dúvida, ao menos, foi instalada.

Às vezes, Sócrates é meu Jesus.

domingo, 11 de novembro de 2018

Freeman e o verdadeiro fim do racismo

Quando eu era moleque e jogava bola na rua, na Casa Verde, qualquer preto era "Pelé". "Passa a bola, Pelé!" Eu era o "Alemão". "Passa a bola, Alemão!" E ninguém ligava.

Hoje em dia tem movimento contra o racismo e todo tipo de discriminação ou exclusão social, mas o mundo nunca me pareceu tão racista e discriminatório quanto agora. Tem cota para isso e aquilo e, para mim, da gritaria vem mais discriminação sobre uma coisa que nem deveria existir.

É o que diz o Morgan Freeman, um homem livre até no nome, neste vídeo que achei ótimo. O Bolsonaro, por sinal, fala a mesma coisa que ele. Mas é o Bolsonaro. Já o Morgan Freeman, que é americano, preto, rico, famoso e elegante, pode fazer o mesmo discurso e ninguém critica.

Sou a favor da sociedade igualitária, radicalmente igualitária, o que significa que cor, credo, sexo não são discrimináveis por qualquer forma. Acho que a ideia de criar privilégios para essa ou aquela minoria em nome da inclusão não resolve nada. Igualdade se exerce, não se pede. Existe - e ponto final.

O mesmo vale para as mulheres e o feminismo. Em Israel, uma das sociedades mais igualitárias que eu conheço, as mulheres têm não os mesmos privilégios ou vantagens que o homem, e sim os mesmos deveres e obrigações. Servem, por exemplo, igualmente, o Exército. Como resultado, possuem a mesma liberdade - e o mesmo respeito.

Em Israel, as mulheres não se intimidam com uma cantada masculina. Nem reclamam. Muitas vezes tratam os homens como muitas mulheres acham que os homens as tratam na sociedade ocidental.

Numa relação entre iguais, o assédio muda de figura: sequer existe alguém já classificado previamente como vítima. A ideia de que a mulher está mais sujeita ao assédio, a um salário menor e outras injustiças, por ser mais fraca, nem passa pela cabeça dos israelitas - homens e mulheres. Elas são iguais. E ponto.

Eu já sofri assédio de mulheres que em determinada situação eram mais poderosas. Rejeitei, mesmo com a possibilidade de ser prejudicado, e nunca reclamei. Sim, isso acontece com homens também. Posso afirmar de cadeira que o homem branco também sofre discriminação. Mas ora, onde já se viu, um homem branco, macho-machista-chauvinista-dominador do mundo-explorador de tudo, reclamar de assédio?

Temos no Brasil uma sociedade diferente da de Israel, é claro. Nossa raiz portuguesa é essencialmente patriarcalista, vem do tempo em que o português se casava com a índia e o filho tinha de ter o sobrenome do pai para ser cidadão, e não gentio - um semiescravo.

No Século XVIII, porém, como mostro em meu mais recente livro, A Criação do Brasil, isso mudou bastante com a chegada dos espanhóis no período da União Ibérica. Os espanhóis tradicionalmente carregavam o sobrenome da mãe. O governador Salvador Correia de Sá, homem fundamental na história do Brasil e Portugal, sobrinho-neto de Mem de Sá por parte de pai, era espanhol, nascido em Cádiz - e levava o sobrenome da mãe, Benevides.

Israel é uma sociedade militarizada. Nada cria mais igualdade que o Exército  - todos os soldados são iguais, como anuncia o uniforme verde. Talvez seja por sua origem militar que Bolsonaro veja os iguais simplesmente como iguais, ou como soldados, ou simples cidadãos. É apresentado como um sujeito retrógrado, em relação à igualdade e ao tratamento das mulheres. Acho que lhe falta elegância, mas, no fundo, o que ele pensa e diz não difere, na essência, do discurso de Morgan Freeman. Bolsonaro defende, apenas, a igualdade, sem o privilégio - ou, como chamou, o "coitadismo".

Ninguém jamais verá um "mês do homem branco" ou um desfile de homens brancos na Avenida Paulista reclamando de assédio ou de seus direitos como homem branco. Parece absurdo. Qualquer outra coisa do gênero, no entanto, devia ser absurda também. Nenhum homem branco quer privilégio ou reserva de qualquer coisa, até porque a mesma sociedade opressora apontada por outros manda que o homem não reclame de nada, nunca.

O homem deve ser o que dá mais, o que se sacrifica pelos outros sem reclamar, e, se ganha alguma coisa, não é mais por mérito, e sim porque está explorando alguma vítima na sua condição de privilegiado histórico-social. Não importa o que faça, está pregada nele desde nascença a pecha do "macho dominante chauvinista".

Claro que há os cafajestes, os ignorantes, os transgressores. Há mulheres, gays, negros e amarelos assim também. Para eles, existe a vergonha, ou, na medida do crime, a lei. Porém, para os homens de verdade, que são a imensa maioria - pais de família, respeitadores das mulheres tanto quanto de quem quer que seja, que tentam obstinadamente ser bons pais, bons maridos, bons cidadãos -, o espetáculo do enxovalhamento do gênero masculino soa como algo meio absurdo. Parece que o homem não é mais cidadão, perdendo seu direito, inclusive, a falar qualquer coisa, a dar opinião, da mesma forma que todos.

Talvez seja tarde demais para voltar o tempo em que ser "Pelé" ou "Alemão" não dava em nada. (Pensando bem, ser "Alemão", na linguagem da rua, era mais pejorativo que ser "Pelé". Ser Pelé, além de preto, queria dizer "craque". E "alemão", além de louro, era ser meio perna de pau.)

Porém, levar a cor e o sexo como bandeiras políticas longe demais é aumentar a discriminação, não terminar com ela. Precisava aparecer o Morgan Freeman para dizer, "somos iguais, não preciso dessas coisas". Que seja ouvido e as coisas sejam realmente assim.