quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Como se corrompe um país

Muita gente, que escreve na imprensa ou nas redes sociais, afirma que o desastre econômico a que nos levou o PT é o fim da esquerda no Brasil. Não é. A esquerda, no Brasil, ainda nem começou.

No governo, o PT não foi esquerda, entendida como uma corrente política preocupada com menos pobreza e a justiça social. O PT fez um discurso de esquerda para tomar o poder e o tocou com a direita: fez um governo populista, entendido como o modelo demagógico e eleitoreiro de agradar o povo a qualquer preço para se perpetuar no poder e obter vantagens pessoais. O que sempre termina mal.

Nem mesmo o chamado marxismo populista o PT praticou, ou algo que se aproxima do chavismo, o modelo que seus intelectuais tanto admiram. O PT esteve mais para o velho coronelismo clientelista, que dá o vale no lugar do salário, para manter o trabalhador em regime de escravidão.

Toda política assistencialista cria uma rede de privilégios que onera o Estado e não faz promoção social. Pior: cria uma ilusão. Que, como toda ilusão, um dia desilude os iludidos.

Se você tem uma boa rede pública de ensino básico, como há na Europa e alguns lugares dos Estados Unidos, dá oportunidade igual a todos - lá estudam o rico, o pobre, o classe média. Mesma coisa com a saúde. Uma saúde de qualidade desonera a classe média dos caros planos de saúde, que estão todos aí falindo junto com ela hoje no Brasil. Atende o pobre e mesmo ao rico. Isso é dar oportunidade igual, dar ganho de renda e fazer promoção social.

O PT não fez isso. Preferiu distribuir dinheiro, em vez de melhorar o serviço público e promover o ganho real. Criou uma massa de dependentes do governo, de um lado, e de outro uma massa raivosa de quem s´pagou a conta e não viu contrapartida. Gastou nisso a rodo, a ponto de quebrar o caixa federal e levar junto os governos estaduais, que ameaçam declarar calamidade pública - consequência da calamidade financeira.

Quando você dá dinheiro a alguém porque é pescador, ou preto, ou qualquer coisa assim, cria apenas um privilégio. Fica difícil depois retirar esse privilégio. É a ilusão. O ganho de renda que se obtém com o estímulo ao consumo dessa gente é temporário, porque não houve crescimento da riqueza.

Quando vem a crise, na forma de falência do Estado promotor do crescimento, do desemprego e da inflação, todos perdem. Perdem tanto quanto ganharam artificalmente no passado. E perdem todos: o empresário, a classe média, e sobretudo o mais pobre.

Estamos nesse ponto. O fim da ilusão. E do desespero daqueles que não querem ver estourar sua bolha de sabão, junto com a raiva de quem pagou a conta do sonho de verão.

Toda a lógica da promoção social do PT está equivocada e seguir nisso, ou voltar a isso, é prosseguir no caminho de um desastre que já se mostra de enormes proporções, independentemente de ter sido acompanhado de enorme roubalheira. Não importa neste momento quem vai fazer esse trabalho, se o Temer ou o próprio demônio. Mas tem que ser feito, urgente, ainda que contra toda a turbulência dos apaniguados que o PT fidelizou com o dinheiro, da mesma forma que fez com o Congresso no mensalão. Assim o partido corrompeu mais que o Legislativo. Corrompeu o país.

domingo, 11 de setembro de 2016

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

Em 2003, depois de um período de trabalho que faria de qualquer um a pior pessoa do mundo, eu estava sentado diante da mesa do urologista Eric Wroclavski, que anunciou assim a descoberta casual de um tumor na minha bexiga, com um sorriso no rosto:

- Você teve sorte.

Sorte? Eu, com 36 anos, tinha um tumor. Sorte?

- Teve sorte, porque descbriu por acaso um tumor a tempo de poder se curar - disse ele.

Tumores são assintomáticos, daí que muita gente os descobre quando é tarde demais. Tempo é essencial. Eric marcou a operação para dali alguns dias, apesar de sua agenda estar cheia. "Não vou deixar ele com esse pólipozinho aí", disse a um assistente. Fui operado, fiz o tratamento, duro, e cinco anos de acompanhamento. Foi o mesmo Eric que me deu a notícia da cura. E recomendou que eu ficasse sempre de olho. Para não depender da sorte.

O que eu não sabia é que, na mesma época, Eric tinha descoberto que ele mesmo tinha um tumor. Na próstata. O mal que ele operava. Só que ele, Eric, o tinha descoberto tarde demais. Eric não contou a ninguém. Não contou à família: a mulher, também médica, e os filhos, médicos. Nem mesmo os médicos que trabalhavam em sua equipe sabiam. Conversava com colegas sobre seu caso nos Estados Unidos. E, sendo médico, se automedicava.

Tínhamos, em nossas consultas, longas conversas sobre a  doenaç e a vida. Ele dizia admirar o meu humor - um tanto ácido, é verdade - quando eu falava das fatalidades prosaicas da existência. Eu admirava sua vontade de trabalho. Eric era incansável. Perdi a conta de consultas das quais saí às duas horas da manhã, depois de esperar minha vez, sem reclamar, horas a fio.

Eu o respeitava, porque era um missionário. Atendia o maior número de pacientes que podia, incansavelmente. Horas depois, às seis da manhã, estava já no Einstein, fazendo cirurgia. Parecia numa jornada insana para salvar o maior número de pessoas que pudesse - dar a elas a chance que não tivera para si. Frequentemente tinha os olhos vermelhos: praticamente não dormia. E engordava a olhos vistos. Eu não sabia, mas era por conta dos remédios, com os quais procurava atrasar o progresso inevitável da doença.

Eric me fez viver, e estava morrendo. E só ele sabia disso. Quando um dia não aguentou mais as dores, e entrou no Einstein, dessa vez não como médico, mas para se internar, fiquei estarrecido. Todas as nossas conversas de repente mudaram de sentido. A começar pela frase: "Você teve sorte". Sim, entendi que tivera sorte, a sorte que lhe faltara.

Percebi que as muitas perguntas que ele me fazia não eram somente por minha causa, para saber como eu lidara com a doença. Eram perguntas do interesse dele mesmo, Eric.

Escrevi um romance em que coloquei a história do tratamento ficcionalmente. Em Campo de Estrelas, Eric aparece com o nome de Roger (na verdade, seu nome do meio). Fui visitá-lo no hospital e levei o livro. Eric estava na cama. De ótimo humor. Dali, ele despachava assuntos da associação dos urologistas, que presidia. Mesmo da cama, comandava tudo: seu tratamento, os enfermeiros, seu consultório.

Li para Eric, ao lado da cama, os trechos do romance em que ele aparecia. Primeiro ele fez uma queixa: "Por que você não colocou meu nome de verdade?". (Mais tarde, eu saberia que esse romance já foi muito lido para pacientes internados em hospitais). E eu também fiz uma queixa.

- Por quê você não me contou que estava doente?

Ele disse então que tinha descoberto a doença tarde demais e não queria viver sob o seu signo: os outros olhando para ele como doente. Queria ter uma vida normal, o mais que pudesse. Perguntei também por que ele, sabendo que tinha pouco tempo, trabalhava tanto, e não tinha usado seu dinheiro para viajar, ficar mais com a família ou fazer outra coisa qualquer. Ele me respondeu com uma pergunta.

- Se você soubesse que tem pouco tempo de vida, faria o quê?

Não precisei pensar muito.

- Acho que continuaria escrevendo. O mais que pudesse.

Ele falou, mas eu já sabia o que iria dizer.

- Então. Fiz o máximo o que sempre quis fazer.

Fui embora pesaroso. Foi a última vez em que o vi. Ao me despedir, eu o agradeci. E disse, apontando o livro, com um pouco de raiva:

- Vocês médicos não sabem nada. Eu sou o único que dá a vida eterna.

Eric morreu em 2009 e sua presença ainda não está só nos livros, mas em todas as pessoas que ajudou, seus familiares, amigos e em mim, que ainda estou por aqui. Com frequência penso nele e confiro se estou usando bem o tempo que me resta. É doloroso perder um grande homem e, posso dizer, um inesperado amigo. Acho que devo ainda escrever uma continuação de Campo de Estrelas e contar o resto da história. Afinal, é o que eu faço e farei, como ele, até não poder mais.

E você?  O que você faria se soubesse que tem pouco tempo?

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O saldo da festa é a saudade do futuro

Como o palhaço de circo, o Brasil lava a cara depois do espetáculo

Medalhista olímpico, Stefan Henze, de 35 anos, técnico de canoagem na delegação alemã, morreu durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro dentro de um táxi que bateu em um poste. O taxista fugiu e, uma semana depois, ainda continua desaparecido. Culpa do Rio de Janeiro? Mero acidente? Destino?

Não importa. A Olimpíada brasileira teve uma porção de notas desagradáveis: o superfaturamento das obras, a não concretização de várias metas olímpicas, em especial o saneamento da água, que breve voltará a ficar como antes, a finalização das obras de infra-estrutura, a mudança no quadro da segurança pública.

Para complicar, o país se encontra na mais grave crise econômica desde os idos da falida dittadura militar, o que transmitiu ao mundo a imagem de um país na miséria, gastando o dinheiro que não tem para receber os ricos na sua casa.

Porém, não importa. O espetáculo foi bonito: nas festas de abertura e encerramento, nos momentos esportivos que passaram para a história. O fulgurante fim de carreira de dois dos maiores, se não os maiores, astros do esporte olímpico, recordistas em desempenho e em premiações: Michael Phelps e Usain Bolt. O brilho de uma estrela da ginástica,com quatro medalhas de ouro: Simone Biles. O primeiro ouro olímpico do futebol brasileiro, levantado do descrédito da própria Nação. E o esforço individual de tanta gente com histórias cativantes e inspiradoras, na maior confraternização entre Nações da Terra.

O saldo da festa não é a saudade destas duas semanas, e sim a saudade do futuro: aquilo que poderíamos ser e realizar, se tivéssemos feito as coisas direito, mas não seremos ou fafemos. Não nas Olimpíadas, e sim neste país. Está provado que o brasileiro é capaz de grandes realizações, mas só apresenta sua melhor face quando exposto aos olhos do mundo, para agradar o estrangeiro, mostrar uma cara que não tem. Com a saída dos visitantes, voltamos a ser apenas nós mesmos, como o palhaço que lava a cara depois do espetáculo.

Dentro de casa, olhando no espelho, o Brasil é aquele outro, o do motorista que foge do acidente de trânsito, do dirigente que superfatura a obra, do torcedor que vaia o adversário na entrega de medalha, como aconteceu com o francês Lavillanie, prata no salto com vara.

Um país que não vai adiante, atolado na corrupção cotidiana, cujos tentáculos formam uma malha paralisante, que perpetua a roubalheira, a inércia e a desesperança, inutilizando o trabalho de todos aqueles que procuram fazer algo construtivo.

Sim, o Brasil é bom  de festa, com o samba, suas mulatas, a simpatia esquizofrênica de seu povo, que é tão fácil com o visitante, tão duro consigo mesmo, e tão leniente com nossos descalabros. O Brasil é bom de festa e ruim de vida, que começa dura novamente, nesta segunda-feira de cinzas.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A olimpíada dos selvagens

Em A Conquista do Brasil, está contada uma história nada edificante sobre a origem dos brasileiros. Ali se mostra, por exemplo, como os tupinambás fundavam sua sociedade na rivalidade entre as tribos, faziam da guerra um sistema de vida e cultivavam a raiva vingativa até as raias do absurdo. Desde pequenos, os curumins eram ensinados a ter raiva do "inimigo" e a não perdoar ou poupar ninguém. Para demonstrar seus estado de espírito em relação a qualquer oponente, matavam a dentadas os piolhos que catavam na cabeça.

Com o passar dos séculos, e não foram tantos assim, ocultamos ou esquecemos essas origens, sem enxergar o que há dessa herança dentro de nós: a sociedade brasileira. Uma boa demonstração da nossa índole raivosa e selvagem está sendo dada na Olimpíada, um congraçamento entre os povos, que coloca acima de tudo a igualdade, a esportividade e o fair play. Mas nada disso influencia a torcida brasileira, que vem chocando os povos ditos civilizados.

Que o diga o francês Renaud Lavillenie, que tem a vilania até no nome, mas não podia ter sido apupado na disputa do salto com vara, como foi. Além das vaias durante a competição, foi vaiado no pódio, ao receber a medalha de prata. Num momento que deveria ser de glória, e de valorização e respeito a um adversário, o atleta chorou. De tristeza. O brasileiro Thiago Braz, medalha de ouro, tentou consertar, pedindo aplausos à plateia.

O comportamento da arquibancada, que invariavelmente se manifesta nos jogos como está acostumada em jogos de futebol, onde nunca prima o fair play e o respeito ao adversário, acabou tirando um pouco do brilho da extraordinária vitória de Braz. E demonstra qual é o principal problema brasileiro, fonte de todas as nossas crises, políticas, econômicas e sociais: a falta de educação.

Quem está nos estádios olímpicos não é a massa ignara dos grotões. É gente que pode pagar 900 reais por um ingresso para cada membro da família. É a elite brasileira, que em matéria de civilidade se compara ainda aos seus ancestrais de cocar e bodoque nos lábios.

Os brasileiros resolveram participar dos jogos como um cão feroz, presente em todas as disputas, mesmo as que não envolvem a camisa amarela. No atletismo, o astro Usain Bolt, preferido pelo público, manifestou sua estranheza quando a plateia apupou seu maior rival, o americano Justin Gatlin. "Nunca vi nada parecido", disse ele. Antes de correr, Bolt se acostumou a colocar um dedo nos lábios, mandando a torcida que o adotou calar a boca.

Só isso bastaria para passarmos vergonha, ainda mais vindo o gesto de um homem que não tem uma origem menos humilde que a do nosso próprio povo. A histeria brasileira, porém, é imune a lições de moral. Incomodou até mesmo os atletas da natação. Michael Phelps declarou que nunca ouviu tanto barulho na vida - mesmo numa disputa dentro da água.

Em qualquer esporte, o brasileiro põe para fora o velho índio que mora dentro dele. Não respeita o esforço dos competidores, quaisquer que sejam. Idolatra os vencedores, e condena os perdedores à execração, como se não tivessem valor e fossem zeros à esquerda.

O brasileiro só quer e respeita a vitória. Sua pressão, em vez de útil, se torna contraproducente; coloca uma carga absurda sobre a maioria dos atletas brasileiros. Além do desafio natural das provas, eles têm que lidar ainda com o humor de um país que não perdoa, tantos os inimigos quanto a derrota.

Estaria errado, mesmo que funcionasse. O agravante, porém, é que nem funciona. Se dependesse do furor da torcida, o Brasil é que teria goleado a Alemanha na Copa do Mundo, há dois anos, por 7 a 1.  Mas não foi o que aconteceu. Derrotado fragorosamente dentro e fora de campo, o brasileiro, na sua brutal ignorância coletiva, mostra nos Jogos Olímpicos que não entendeu nada. Nem mesmo do que se trata no evento que está patrocinando.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

O espetáculo da loucura e o esgotamento do capitalismo

Atiradores percorrem as ruas de Munique, matam gente dentro de um shopping, a cidade fecha, escondida atrás das portas. Um jovem de 17 anos invade um trem em Wurzburg e ataca os passageiros com um machado. Quatro pessoas ficam feridas e o atacante, que teria jurado lealdade ao grupo terrorista Estado Islâmico, é morto pela polícia.

Um homem aluga um caminhão para matar quase uma centena de pessoas na orla de Nice. No Brasil, dez pessoas foram presas depois de trocar mensagens digitais em favor do Estado Islâmico e sugerindo à Polícia estar preparando um atentado na Olimpíada. Este ano, atentados em Bruxelas e Istambul também deixaram mortos em nome do Terror.

O que está acontecendo? Pelo que se sabe, o Estado Islâmico não tem uma rede Internacional. Seus "agentes" seriam recrutados pela Internet. Isso não é recrutamento.

O que está acontecendo é um sintoma da crise da sociedade contemporânea. Num mundo em crise, sem oportunidades, especialmente os jovens perdem o sentido de viver. A espetacularização da midia digital lhes dá uma oportunidade. Dá sentido pelo menos à sua morte. O El representa hoje o protesto contra o sistema. Poderia ser qualquer outra coisa.

Gente que, sob qualquer pretexto, vai para rua para matar ou morrer está no limite da loucura. A ideia de pertencer a um grupo suicida lhes dá força. E saber que a ação lhes dará notoriedade, dá coragem.

Isso só acontece num mundo em que a vida não vale nada. Os valores que são sentido à existência - o amor, o trabalho, a conquista, a recompensa, o conforto familiar, os sonhos de felicidade - não existem ou não têm importância. Hoje qualquer um aparece na mídia mas entra apenas na bacia das almas que é o mundo digital. 

O homem é insignificante.

Pode parecer estranho, mas a maneira de combater o terror, além de abater na rua os loucos que saíram do armário, é atacar as raízes dessa crise. Um mundo com oportunidades de emprego, de crescimento, e relações interpessoais melhores, numa era de individualização extrema. O problema não é o El, o Islamismo, ou o Oriente. É um certo esgotamento do capitalismo, agora que entra na sua fase digital, pedindo um novo modelo para viabilizar novamente o futuro.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O meu Poema Sujo, ou a arte de escrever para ninguém

- A gente precisa mudar.
- Eu sei, mas mudar como?
- A gente devia parar de ficar escrevendo para ninguém.
- Mas escrever para ninguém é a única coisa que eu sei fazer.
Minha mulher sempre tem razão. Mesmo assim eu vou contra - como diria o Llosa, sigo seguindo contra vento e maré. Secretamente venho escrevendo recentemente muito para mim mesmo, ou para ninguém. Escrevo sobre a infância, aquilo em que mais penso, quanto mais idade tenho.
Isso acabou me tomando a cabeça, um tempo enorme, as vontades: da evocação de um tempo sem palavras, começou a surgir um poema, e foi ficando tão longo que virou um poema-livro, o meu "poema sujo", sem nenhuma pretensão de comparações com o grande Ferreira Gullar.
Fico olhando isso e penso se é mesmo para ninguém: talvez possa ser para alguns, pelo menos as pessoas que nasceram como eu na década de 1960, que conheceram uma certa São Paulo, um certo país, um certo tempo. E suas mudanças: nos costumes, na família, na política, na informação. Na sociedade, ou no homem, enfim.
Aqui um trechinho, agora que começo a revisar o texto; e vou pensando em todas as coisas importantes que eu tinha a fazer e, no final, deixei de fazer; de todas, no fim, esta é a única que importa, ainda que seja para ninguém.
(...)
Raízes primeiras extremas
De onde nem há memória
O passado dos filósofos orientais
A alquimia genética
O encontro de raças
A combinação de histórias
A formação determinista do que somos
Antes mesmo de ser
Resultante do que trazemos sem saber
Escrito na terra
Na mão lavrada dos ancestrais
Nos amores perdidos
Nos sonhos perdidos
Nas vontades primevas
No acaso certeiro
Daqueles que vieram primeiro
Prepararam terreno
Jogaram a semente
Até que de repente
Brotou o que achamos ser
Nosso livre arbítrio
Fihos do vento
Filhos do tempo
Filhos da coincidência
Filhos de gente
Filhos do amor
Tanto o de mentirinha
Quanto do amor verdadeiro
Do amor enganado e desenganado
Do amor roubado
Do amor proibido
Do amor ganho e perdido
Qualquer amor que gerou amor que gerou amor
E moldou o que somos e seremos
E fez me de mim desbravador
Herdeiro de antigas e violentas paixões
De conquistadores da terra
Homens ardentes
Barqueiros ao leme rumo à Guiné
De velhos guerreiros
De homens sem fé
De mães sagradas
E mulheres profanas
De obscuras ciganas
E valquírias aladas
Filho do amor que veio do amor
Um amor que ainda não entendo qual é (...)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Desnudando a Playboy

Está saindo do forno um livrinho tão delicioso de ler quanto importante e expressivo do jornalismo brasileiro. "Histórias secretas: os bastidores dos 40 anos de Playboy no Brasil" é uma coletânea de textos de alguns dos principais colaboradores de Playboy, no longo período em que foi publicada pela Editora Abril. Entre eles, eu, integrante da ilustre e seleta galeria dos jornalistas que tiveram pela frente o desafio de dirigir a revista.

Pela primeira vez, se pode ter uma boa ideia de como era feita a "revista mais gostosa do Brasil".

Vista pelo lado de dentro, (ou tirando a sua roupa), ao contrário da imagem corrente de "o melhor emprego do mundo", Playboy na verdade era trabalho muito árduo. Somente graças a um imenso esforço coletivo, em redações sucessivas de gente muito competente, se estabeleceu na publicação brasileira um padrão de excelência ímpar, assim reconhecido pela matriz americana.

As "Histórias Secretas" são crônicas instigantes e elucidativas sobre como Playboy funcionava. O relato daquilo que não deu certo é tão ou mais interessantes do que o daquilo que deu certo. Nesse mosaico, esboça-se o quadro de uma era  destinada a nunca mais se repetir, tempos que hoje podemos chamar de pioneiros do papel impresso. Por isso, o livro ganha contornos de documento histórico.

Uma das virtudes da obra, ao mostrar quem fazia a revista, é justamente jogar luz sobre o outro lado: aqueles que trabalhavam para jogar luz sobre os outros, tanto as estrelas que ilustravam os ensaios sensuais como as celebridades que povoavam suas páginas em entrevistas e reportagens. Pode-se assim ter uma boa ideia de como Playboy decolou, firmou seu padrão de qualidade, inclusive em jornalismo, e das condições de seu declínio, até ser encerrada na Editora Abril.

Esse é o capítulo que faltou ao livro: falar um pouco mais sobre o grande defensor de Playboy na Abril, que foi seu editor, Roberto Civita. Com sua morte, a empresa perdeu não somente  o homem que trouxe Playboy ao Brasil como foi seu sustentáculo, até o dia de sua morte.

O caso de Playboy é significativo de uma era de ouro da imprensa brasileira. E revela que a morte das publicações não ocorre apenas em função da mutação das mídias, como à perda de seus líderes e à incapacidade de adaptação às transformações sociais e de mercado. Uma das funções do jornalismo é refletir e comprender os tempos e o público leitor. Por isso, Playboy é um interessante estudo de caso para a imprensa refletir sobre si mesma. Se quiser mesmo subsistir.