quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

"Pai, tenho sede"

Os desafios da educação na era digital



As crianças hoje querem tudo rápido, e para ontem.
André, 6 anos, no carro.
- Pai, quero água.
- Não tem.
- Quero água.
- Não tem, por duas razões. Uma, porque não tem. A segunda, porque não é assim que se pede.
- Por favor, você podia me dar água?
- Filho, você resolveu a segunda razão, mas ainda tem a primeira. Não tem água. Espere até chegarmos em casa.
*
Vão dizer: ah, André tem apenas seis anos.
Vejamos Lucca, 12 anos, no mesmo dia, dentro de outro carro, indo de São Paulo a São José.
- Mãe, estou com sede.
(Silêncio da mãe).
- Estou com sede!
- O que você acha que eu posso fazer a respeito?
Lucca pensa um pouco.
- Poderia me informar quanto tempo a gente ainda leva para chegar em casa?
*
A indústria da informação está acostumando toda uma geração a ter tudo instantaneamente, ao toque de um botão.
É uma geração completamente diferente da de meus avós, meus pais e da minha própria geração. Meus avós vinham da Segunda Guerra, um tempo em que era importante administrar a escassez. Não ter as coisas era normal. E era preciso estar preparado para a falta das coisas.
Eu não vi o tempo da guerra mundial, mas conheci a escassez de outros tempos e outras guerras. Quando era criança, a TV era preto e branco e tinha apenas 4 canais. Custava a ligar e formava a primeira imagem só depois que esquentavam as válvulas. Não havia produto importado no Brasil. Não se podia escolher muita coisa. Nem mesmo os governantes, pois reinavam os prepostos da ditadura militar em todas as esferas: municipal, estadual e federal. Meu pai, que vinha da esquerda, quando nasci perdera o emprego, tinha amigos presos, naquele tempo tudo podia acontecer.
A economia era quase soviética, resultado do nacionalismo militarista que fechara xenofobicamente as portas do Brasil para qualquer coisa que viesse de fora. Andar de avião era raro e caríssimo. Minha mãe coibia o uso do telefone, que era para conversas rápidas e de emergência. Telefone custava caro e a ligação internacional, além de caríssima, era difícil.
Na Casa Verde, onde morei parte da minha infância, com frequência faltava água. Por isso, no quintal da minha casa, havia um alçapão que dava para um reservatório de emergência. No verão, eu gostava de me enfiar pelo buraco e ficar lá dentro me refrescando.
Era preciso estar preparado para a privação. Na verdade, eu nem via essa situação como de privação. Eu tive de aprender a esperar. Até mesmo para beber água.
*
É preciso ser duro para sobreviver. Muitas vezes tentei demonstrar ao João, hoje com 16 anos, que nem sempre o caminho mais fácil é o melhor. Como no videogame, para ele o melhor era sempre cortar caminho, trapacear, usar todos os recursos disponíveis pelo jogo para ganhar. Não entendia por que eu não fazia o mesmo. E eu queria ganhar sem apelar para os truques que o jogo proporcionava.
Muitas vezes pensei que era inútil tentar lhe mostrar o valor do trabalho, da necessidade do empenho, e que a maneira como fazemos as coisas é tão importante quanto o resultado. Acho que ele nunca me compreendeu muito bem. Talvez, quando ficar mais velho e tiver outras experiências.
*
Qual é a validde de sabermos fazer na caneta as operações matemáticas se a calculadora faz isso por nós? Quando eu era estudante, usar a calculadora em sala de aula era proibido. Creio que isto era para estimular o raciocínio matemático, mas esse ganho abstrato parece coisa do passado. Hoje as crianças usam não apenas a calculadora como todas as informações disponíveis na internet. Isso não quer dizer que não exercitem o pensamento. Ele é estimulado por questões mais avançadas do que fazer de cabeça as quatro operações. As crianças já não partem mais de questões elementares. Já começam mais avançadas, embora isso me faça às vezes pensar que lhes faltam algumas noções elementares.
Hoje muitos alunos tendem a estar mais bem informados que o professor em um ou outro assunto. Podem questioná-lo. Qual o sentido então da educação hoje? Estaremos formando uma geração melhor?
*
Na medida em que ficamos mais velhos, tendemos sempre a acreditar que o passado era melhor e tinha melhores ensinamentos. A percepção de que as novas gerações tendem ao comodismo não é novidade. Meu pai não tinha televisão na infância – um privilégio que só conquistou depois de casado e com um filho pequeno. Eu acordava às sete da manhã para ver Regina Duarte, ainda uma adolescente, apresentando os desenhos matinais: Pepe Legal, a Tartaruga Touché, Dinguelinguelingue, o Coelho Ricochete, além do meu favorito, o gato Manda-Chuva, um vagabundo muito simpático que morava dentro de uma lata de lixo. Meu pai bem poderia dizer que minha vida era cômoda e que eu devia sair da frente da televisão para viver a vida de verdade (acho que dizia).
Ele não deixou de ser também, para seu tempo, um privilegiado. Era a única criança de sua classe, na cidade de São Roque, que possuía um par de sapatos. Envergonhava-se deles – deixava-os em um buraco na estrada, a caminho da escola, para não ser discriminado entre os colegas que andavam de pé no chão. Ao voltar para casa, depois da escola, apanhava os calçados de volta no buraco onde os deixara, para chegar em casa calçado. Não queria desapontar meu avô Guaracy, seu pai, que se orgulhava de poder dar sapato ao filho mais velho. E, sem ser sapateiro, os consertava pessoalmente, quando davam no prego.
*
As gerações futuras terão de cultivar os velhos princípios de alguma forma. Já nascerão em cima de um tênis com solado amortecedor, poderão assistir qualquer coisa na TV em qualquer lugar a qualquer hora, não perderão tempo fazendo contas elementares na caneta, mas terão outros desafios, a partir daí. Não reinventarão a roda, mas terão de inventar algo novo a partir do que já está feito. Terão confortos que não existiam antes, mas terão de conquistar novos benefícios que ainda não existem.
Ainda acho que o despojamento dá têmpera ao ser humano, mas não é a condição principal para isso. Existe gente completamente despojada sem nenhuma força de vontade para melhorar de vida; tornam-se simplesmente acomodados. Meu filho André quer água na hora, mas é também persistente, tenaz, não desiste, muitas vezes além da conta. Quer as coisas de imediato, e não descansa quando não as obtém. Não aceita “não” como resposta. Para um pai, isso ás vezes é infernal e mostra a necessidade de implantar um pouco de equilíbrio num cérebro fervilhante. Mas acho melhor isto – segurar um garoto radioativo – do que ter de empurrar uma criança inapetente.
André é rápido de raciocínio e sensível. Ainda não sabe ler e escrever direito, mas desenha muito bem e realiza diversas operações no ipad. Tem memória prodigiosa e é muito cioso do que acredita ser a lógica. Questiona e enfrenta adultos, tanto moral quanto intelectual e, por vezes, até fisicamente. Não tem aquela postura obediente da criança de antigamente. Orientá-lo é um desafio, que requer o melhor de mim, como adulto.
Fico imaginando o futuro do ser humano, a partir do meu filho. Tento lhe ensinar o valor de saber esperar, sem lhe tirar o ímpeto e a rapidez do ambiente em que é criado - não por mim, mas pelo mundo ao nosso redor. Parece um mundo mais rápido, agressivo, implacável. Mas eu vejo no meu filho, também, algo da antiga humanidade. Como no dia em que, aos três anos, passando por um mendigo deitado na rua, me perguntou se não poderíamos levá-lo para casa e lhe dar cama e comida.
Sei que o mundo dará ao André os instrumentos para sobreviver na era da informação. Acho que a tarefa da educação, porém, continua a mesma: fazer com que nossas crianças, além de gente do seu tempo, sejam também gente de todos os tempos. E que pensem nos outros, respeitem o bem coletivo e conheçam os limites, inclusive do tempo – tudo aquilo que permite a coexistência na vida em sociedade.
*
- Papai, posso jogar videogame?
- Agora não, filho.
- Por que não?
- Porque... não. Vai ver um pouco como está o mundo lá fora.
- Está chovendo, pai.
- Então vai fazer outra coisa.
- Posso jogar no seu celular, pai?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Havana (De Caixa de Amor)

O mar bate no rosto
Da cidade abandonada
O asfalto traz o gosto
De tristeza muy salgada

As sombras das ruínas
Cobrem as ruas desertas
Não há placas nas esquinas
Onde as vidas são incertas

O tempo aqui engana
Faz eterno o que acabou
O vento sopra a velha Havana
Como alma que passou

Só o amor entre escombros
Alivia as minhas tristezas
Faz mais leves os meus ombros
Deixa as luzes mais acesas

Um aperitivo de Caixa de Amor e Matar saudade, agora à venda como livro digital).
http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4692695/caixa-de-amor-e-de-matar-saudade/

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A breve história do Papa Cuco


Quando esteve no Brasil, hospedado no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, o Papa Bento XVI ganhou dos repórteres que davam plantão na praça o apelido de "Papa Cuco". Animado com a multidão reunida debaixo da sacada da janela no quarto onde se hospedava, ele voltou diversas vezes para ouvir a manifestação da multidão que cobria o largo de S. Bento, para chateação dos jornalistas que, lá embaixo, esperavam que ele fosse enfim dormir para também ir embora. Cada vez que o Sumo Pontífice aparecia na janelinha, com aquele sorriso de quem estava gostando da bajulação toda, dava a impressão de estar marcando as horas, como num relógio de parede. Resultado, lhe pregaram o epíteto.

Conto essa história para dizer que o Papa Cuco será muito mais lembrado pelas suas esquisitices anedóticas do que por algo mais palpável no comando da Igreja. A maneira como ele comunicou sua renúncia, esta semana, é o ponto culminante da breve trajetória desse Papa insólito, até simpático, mas meio desastrado, que em nenhum momento correspondeu à mitra dourada ou sequer ao rústico cajado de um líder espiritual.

Ao desmentir a si mesmo no passado, Bento XVI já havia colocado em xeque a famosa "infabilidade" papal - um mito que a Igreja Católica faz questão de preservar.
Agora, com seu pedido de demissão, alegando "falta de forças" para continuar no cargo, Bento XVI lança um enigma sobre a comunidade católica. Como muitos outros papas em condições físicas muito piores saíram do Vaticano somente dentro do caixão escarlate, pergunta-se se não haveria algo ainda mal explicado na sua saída. Quem se lembra do escândalo do Banco Ambrosiano sabe que não seria a primeira vez se houvesse algo mais entre o Céu e a terra do Vaticano do que supõe a vã filosofia.

Quando foi escolhido, o cardeal Ratzinger tinha uma imagem bastante diferente da que deixa na saída. Dizia-se que ele era um sábio ardiloso que na prática já comandava o Vaticano, como uma espécie de eminência parda nos últimos anos do então já realmente fisicamente enfraquecido João Paulo II, falecido em 2005. No exercício do cargo, em lugar do Maquiavel de batina, Bento XVI variou entre um certo deslumbramento com o próprio cargo, como no Largo do São Bento, e certa incapacidade de encarar as grandes questões do catolicismo, que assiste hoje uma distância cada vez maior entre seu discurso e a prática cotidiana de seus acólitos.

Enquanto todos perguntam quem será o novo Papa, fico pensando em quem será o velho Papa: um homem diante do dilema de ter às mãos uma máquina sobre a qual não tem controle, impotente diante da necessidade de mudanças em uma estrutura monolítica, ou apenas um homem que perdeu, se não a fé em Deus, a fé em si mesmo? Por que não poderia um Papa simplesmente desistir, como ser humano que é, assim como nós pedimos demissão de um emprego que no começo parecia tão bom mas, com o tempo, se revela um pé no saco?

Sem ter feito nada de especial, o Papa teve seus momentos de glória, na sacada do largo de S. Bento, e em algumas outras ocasiões. Poderia ter desfrutado do cargo até o final, assim como Jânio Quadros, que em 1961 renunciou à presidência do Brasil falando em "forças" estranhas que jamais foram identificadas. Quem sabe sua renúncia seja, em vez de algo desapontador, prova de uma virtude que não é somente de desapego, mas de humanidade. Bento XVI é hoje apenas o retrato vivo e representativo de uma entidade poderosa que se encontra perplexa. E sai de cena em meio à perplexidade, deixando a cada um a tarefa de juntar as certezas que nos restam.

Caixa de Amor e a volta da poesia



Não sei quem decretou a morte da poesia, mas essa foi uma lei não escrita que pegou, sem que a gente saiba exatamente a razão. No mercado editorial, repete-se que poesia não vende e por isso poucas editoras passaram a publicá-la. Talvez isso tenha começado como uma simples desculpa de algum editor para se livrar de algum aspirante; depois, como a desculpa se tornou confortável, passou a ser usada tão indiscriminadamente que se consagrou uma dessas verdades não comprovadas que seguem sozinhas como se fossem mesmo verdadeiras.

O resultado disso é que a poesia quase desapareceu das livrarias, mesmo a clássica, aquela que as crianças estudam e leem – ou deveriam ler – na escola. O espaço para a poesia diminuiu, de forma geral, e criou-se essa imagem de que ela é o supérfluo do supérfluo, ou brega, ou uma linguagem arcaica, ultrapassada. Estes tempos, porém, começam a mudar.

Uma das coisas que resolvi, ao começar a Editora Copacabana, é publicar poesia. A internet tem essa vantagem: ela pode se apropriar daqueles nichos abandonados pela indústra do livro de papel, e encontrar os fieis leitores de um gênero carente de seus clássicos e também das novidades. O mito de que não existem mais bons poetas não passa mesmo de mito: eles estão por aí, tão importantes quanto sempre foram.

A poesia é momentânea e tem certo poder catártico; literatura concentrada, vai mais fundo e melhor do que qualquer outra linguagem. É um gênero que eu nunca quis explorar comercialmente, nem tanto por desinteresse dos editores, que nem sabiam que eu escrevia poemas, mas por um certo receio de parecer pretensioso demais e me prejudicar. Entre outros tantos preconceitos, existe o que de um romancista não pode ser um bom poeta. Claro que há muitos exemplos para desmentir essa falácia, como Borges, que não era romancista, mas foi grande contista, além de poeta; e Octavio Paz, que também era ensaísta brilhante. Mas o editor brasileiro é feito dessas verdades; então, para um autor, cuidado.

Escrevo poesia, sempre escrevi, embora sempre como uma atividade espontânea; a poesia surge de repente, é uma expressão mais urgente, como um desabafo. Só mais recentemente tenho me disposto a publicá-la e a pensar nela como um meio de trabalhar melhor a prosa. Sempre fui muito dedicado, no romance, ao desenvolvimento da trama. Dava muito mais atenção ao enredo que à linguagem, com exceção de meu primeiro romance, Filhos da Terra. Ali, o narrador precisava ser caracterizado como um italiano do sertão brasileiro, portanto com uma linguagem própria, e o cuidado com cada palavra fazia sentido.

Hoje penso que posso não apenas fazer poesia, como transferi-la para a prosa, tanto quanto possível. E que existem muitos adeptos que ficaram órfãos do gênero. Por isso, venho recolhendo meus poemas, escritos esparsamente ao longo dos anos em cadernos espanhóis de capa de couro mole, junto com rabiscos, desenhos, cronogramas de trabalho e cálculos de contas a pagar.

O primeiro livro de poemas que vem à luz é Caixa de Amor e de Matar Saudade, que escrevi durante o casamento com Graziela, e narra sem querer a história de um amor. Pedi licença ao objeto dos poemas, mais de um centena deles, escritos ao longo de oito anos maravilhosos, coroados pelo nascimento de um menino que é a luz dos meus dias, e que retrata um tempo que, como todos os tempos, teve começo, meio e fim.

Caixa de Amor e de Matar Saudade, o título, surgiu de uma caixa que Graziela me deixou, quando passou 40 dias trabalhando longe de casa, na cobertura da TV da Olimpíada da Grécia, em 2004. Deixou aos meus cuidados o pequeno João, seu filho, então com oito anos, e com quem eu convivia dentro de casa fazia apenas um mês. Havia na caixa fotos, bilhetes e outras pequenas lembranças. A isto fui juntando poemas que escrevi ao longo do tempo, a maioria deles de amor e de saudade.

Depois, esses poemas foram reunidos num blog fechado, ao qual somente Graziela tinha acesso. Preciso agradecer o desprendimento dela, ao concordar com a publicação dos poemas. E inaugurar esta nova fase de poesia, esperando que ela volte a se espalhar e encha com o significado de um grande amor outros corações, mesmo os desavisados, que poderão ser tocados com a revelação de um material que, mesmo sendo tão íntimo, diz respeito a todos os relacionamentos, por conseguinte a todos nós.

http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4692695/caixa-de-amor-e-de-matar-saudade/

As mais duras escolhas

Lincoln, o filme de Steven Spielberg, sem ser um grande filme, tem grandes momentos – especialmente aqueles que dão oportunidade à interpretação de Daniel Day-Lewis e algumas cenas, como o encontro do protagonista com o general Grant, ao fim da guerra, numa conversa de compadres. Lincoln comenta que um permitira ao outro realizar uma porção de coisas horríveis. Há na ironia, junto com uma discreta celebração da vitória, o travo de amargor pelo preço que ela custou.

A história americana é marcada pelas terríveis dissenções que levaram um país a uma guerra civil que matou 600.000 pessoas. O filme mostra a dura escolha de um presidente que decide continuar a matança, por uma questão de princípio: enquanto não houver o abolicionismo, isto é, que se restabeleça o princípio da igualdade, nenhuma paz faz sentido. E isso precisa ser levado às últimas consequências.

Lincoln faz aprovar a lei abolicionista e acaba com a guerra de secessão, mas não por um acordo. No Congresso, compra votos e manipula o que pode para encorajar o voto daqueles parlamentares que receiam represálias; com os sulistas, também não obtém nenhum consenso. Apesar de sua vocação para contar histórias - o pendor daqueles que vivem para convencer os outros pelo bem -, só impõe a paz ao aniquilar os confederados pela via militar. O convencimento vale muito pouco. A democracia e a Justiça prevalecem pela força, mesmo no país que se arvora em ambas como o mecanismo da paz.

O filme é esquemático, mas traz as ideias que representam a chave para o avanço do mundo civilizado. A igualdade de direitos, um princípio que parece tão fundamental, foi o grande desafio de Lincoln, mesmo que, como mostra o filme, ele entendesse os negros tanto quanto um povo alienígena. Acreditava na essência da Humanidade, na Justiça e na igualdade perante a lei. E a força dessa convicção era maior do que qualquer diferença, estranheza ou obstáculo.

As dissenções elementares da sociedade americana não desapareceram até hoje. O desafio de Lincoln foi o mesmo de John Kennedy, um século anos depois, quando, ao lado do irmão Bob, seu secretário de Estado, colocou-se ao lado de um negro para que ele pudesse entrar na universidade em um Estado conservador. Seis meses mais tarde, assim como Lincoln, ele seria baleado na cabeça. E seu irmão Bob também seria assassinado pouco tempo depois.

Foram precisos quase 150 anos desde Lincoln e dezenas de eleições presidenciais para que um negro assumisse seu lugar na Casa Branca. A desigualdade ainda é o maior desafio dos presidentes americanos. Não é por outra razão que, no discurso de posse de seu segundo mandato, Barack Obama viu diante de si, no vasto campo diante do Capitólio, em janeiro deste ano, uma multidão que simbolizava o país galvanizado pela importância do momento.

Obama representa não apenas mais uma vitória da igualdade dentro dos Estados Unidos, como uma esperança para todo o mundo: a expectativa de que os americanos aceitem cada vez mais não apenas a igualdade racial e política como a igualdade entre os povos, e que possam a partir disso respeitá-la.

Os adversários de Obama ainda são os mesmos de Lincoln e Kennedy. Aqueles que ainda é preciso vencer às vezes com o ardil ou com a força, para que a Justiça e a igualdade possam subsistir. A esses perdedores historicamente restou o recurso baixo, torpe e covarde da vingança e do terrorismo. Dessa forma eles colaboram, sem querer, para o avanço do Iluminismo. Cada vez que um gigante cai, sua sombra se levanta. Lincoln foi assassinado porque fez a igualdade triunfar, mas aqueles que desejavam sua morte não perceberam que, ao matá-lo, fizeram dele não apenas um mártir, como consagraram seus ideais.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Os Bee Gees e a música que marca as gerações

Caminhando por uma loja de conveniência, em busca de uma barra de chocolate, encontrei algo que, em outros tempos, me deixaria de cabelos arrepiados: um CD com a compilação das melhores músicas dos Bee Gees. Vacilei por um instante, e me surpreendi com a simples vacilação. Por quê não? Preço: 14 reais e noventa centavos. Comprei.

Sei que hoje em dia não se compram mais discos (ou Cds), e que os Bee Gees são datados por uma era da qual muita gente não tem nem lembrança, por não ter nascido, ou apagado da memória. Mas havia alguma coisa ali que me intrigava. Aquele Cd era uma espécie de teste: de memória, do tempo, de mim mesmo.

Como em muita gente que conheço, os Bee Gees passaram os últimos vinte anos provocando em mim certa aversão. Explica-se. Houve uma época, aquela em que eu começava a querer namorar, morava na periferia e frequentava o que na época se chamava de discoteca, em que eles representavam não somente a trilha sonora das festas como de uma geração inteira. Poucos fizeram tanto sucesso ou marcaram uma fase como os Bee Gees. Embalos de Sábado À Noite , o filme com John Travolta, que catapultou a um sucesso sem paralelos o disco Saturday Night Fever(1977), foi muito mais que uma onda musical: representou uma grande mudança de comportamento.

Pouca gente ousaria comprar os Bee Gees aos Beatles, ou a Michael Jackson, músicos que também foram um fenômeno de vendas e comportamento em sua época. Enquanto os Beatles e Jackson são considerados gênios, ou clássicos da mpusica pop, os Bee Gees viraram símbolo do brega, do datado, do ultrapassado. Por quê?

Os Bee Gees eram música de consumo, mas que consumo? Em Saturday Night Fever, o filme, um rapaz de periferia, sem muita perspectiva de vida, encontrava na dança o seu talento, ou a única oportunidade de ser alguma coisa de interessante na vida. Essa ideia de uma simplicidade franciscana provocou na época uma monstruosa resposta sociológica. Saturday Night fiver se tornou uam das maiores bilheterias de todos os tempos, e catapultou os Bee Gees à ultima galáxia na escala do sucesso.

Em seguida, Travolta voltaria com tudo em outro filme, Grease, o musical com a história do rapaz pobre que se apaixona pela garota riquinha e perfeita (Olivia Newton-John, no papel que a tornaria famosa). Lembro do Cabeça de Ovo, apelido do Sérgio, que era um garoto fracote na infância, que apanhava de todo mundo na rua Xiró, aparecer de repente crescido, numa camiseta preta com os braços de fora - a moda que apareceu por causa do filme.

O Ovo ganhara músculos de repente e muito respeito, mas não só ele. Desde Saturday Night Fever, toda uma geração de piás passara a acreditar mais em si mesma. As pistas de dança se encheram de garotos e garotas autoconfiantes, que rodopiavam como gênios da raça e de repente tinham a sensação de que ali acontecia tudo e que tudo era possível. Com Michael Jackson de meias prateadas, entraríamos em seguida nos Dancin' Days, uma versão da mesma coisa, já sem a implicação social de Grease e Saturday Night Fever, em dançar era diversão pura.

Os Bee Gees fizeram muitos outros sucessos além de Night Fever, cada um tão grande quanto o outro, numa incrível sequência - More Than a Woman, Stayin' Alive, How deep is Your Love, Too Much Heaven. Brilharam mais rápido, porém de forma ainda mais intensa que o próprio Michael Jackson. Sua discografia se tornou parte da biografia de todo mundo que viveu naquela época. Mas pouca gente se lembra, afinal, do que aquilo falava, mesmo.

Os Bee Gees foram embora, desapareceram de repente, e repito: por que? Foi tal a overdose de Bee Gees que, como o fim de uma moda, e tão marcados por uma época, eles passaram a representar o mundo que acabou. Simbolizaram para mim, e creio que muita gente, aquilo que não queríamos mais ser, ouvir, saber - os adolescentes com cara espinhenta, desajeitados e sem perspectiva de nada.

E, sim, cansaram - a voz agudíssima, capaz de quebrar garrafas, e aquele balanço que marcou a virada dos anos 1970 para os anos 1980, foi substituída pela música progressiva do Pink Floyd e a cadência da guitarra do Police, com suas letras inteligentes e sua cara de banda universitária. Os Bee Gees foram sepultados ali. Para mim, até a semana passada.

Eis então que, passados tantos anos, eu me senti preparado para aquilo, de novo. Senti vontade de, longe daquele tempo, e bastante seguro para mão ter mais vergonha de qualquer coisa, saber, afinal, como era aquela música. Ouvir de novo as letras. Entender um pouco o que eu era, ou o que era aquele tempo, e saber se aquilo é algo que pode durar.

A arte, em qualquer forma, seja a da música, ou um livro, quando é lançada ao sucesso extremo, perde seu sentido original. Fica imantada pelo momento, associa-se a ele. Só o tempo é capaz de depurar o significado que vai além da própria obra e a devolve ao seu estado original de simples obra - apenas a arte, com sua beleza original. Aí é que se sabe se ela pode sobreviver. Hoje se pode, afinal, ouvir Bee Gees. E avaliar se aquela música, ainda hoje, fala aos corações.

Faz uma semana que ouço os Bee Gees. Comecei no carro, a caminho do trabalho, sozinho. Me peguei repetindo algumas músicas, várias vezes, primeiro para ter certeza do que diziam, mais tarde por gostar. Depois, levei o CD para casa. Coloquei Bee Gees, que no passado era música de festa, para tocar... durante o jantar. E lá estava o pessoal todo, em instantes, balançando - de lá para cá, de cá para lá, com o garfo na mão. Crianças que nunca tinham ouvido Bee Gees antes.

E as letras são de adulto. Algumas, lindas canções de amor. Escolhi a minha preferida, cuja letra diz:

Tender love is blind, it requires a dedication
All this love we feel needs no conversation
We ride it together, ah ha
From one love to another, ah ha

Islands in the stream that is what we are
No one in between how can we be wrong
Sail away with me to another world
And we rely on each other, ah ha
From one lover to another, ah ha


Gosto de ouvir a obra inteira de uma banda, porque às vezes o que gosto mais não é o óbvio, o que fez mais sucesso. Ali dentro encontramos às vezes algo que nos diz mais respeito, ou que, é, simplesmente, melhor. Esse exercício é muito interessante quando examinamos o passado. Islands in The Stream, a canção acima, não é a música que mais fez sucesso em seu tempo. Não se compara a Stayin' Alive ou You Should be Dancin, que qualquer um reconhece aos primeiros acordes. Mas eles sabiam fazer canções elaboradas, onde os agudíssimos dão lugar ou se alternam a outras vozes, capazes de falar conosco intimamente.

Os Bee Gees não eram apenas - bem, ainda são - muito bons. Eles não conseguiram fazer nada novo, tão grudados ficaram aos grandes sucessos do passado. Sua obra a partir dos anos 1990 padece da síndrome do medo da comparação com eles mesmos. Sofreram com a mesma maldição de outros clássicos que seus contemporâneos enjoaram de ouvir, como Para Não Dizer que Não Falei das Flores (ou "Caminhando"), de Geraldo Vandré. Jamais conhecerão novamente a fama como naquele tempo. Um deles, Andy, já morreu. Mas posso dizer que, finalmente, entendo os Bee Gees. Independente de seu tempo. E reafirmou minha certeza de que as boas mensagens, mesmo as que parecem tão datadas, podem durar.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Os 10 melhores livros de todos os tempos

Para os alunos do Escreva Bem, Pense Melhor que me pediram na Casa do Saber uma lista de livros para ler, segue algo que escrevi há algum tempo - minha lista (muito pessoal, claro) dos 10 melhores livros de todos os tempos.

*


Muita gente pergunta qual é a minha a lista dos dez melhores livros de todos os tempos. Ou quais são as dez leituras que julgo indispensáveis. Claro que não li tudo o que existe no mundo, que cada um pode fazer sua própria lista e que ela é bastante subjetiva. Mas quem quiser pode usar esta lista, ou fazer a sua e comparar.

1 – A Bíblia. O livro essencial da Humanidade é uma história familiar. Conta a saga dos descendentes de Adão e Eva e a complicada convivência com seu temperamental Criador, entidade onisciente que lhes deu a vida para depois tirá-la. Seus descendentes partem em busca da reconciliação com a divindade e a recuperação da promessa da vida além da morte.

Ao fazer a opção por comer o fruto da Árvore do Conhecimento, o casal que simboliza a Humanidade renuncia à existência perene no paraíso e à obediência ao Pai opressor em troca de bens ainda mais importantes: o livre arbítrio e o amor.

Além desta mensagem fundadora da civilização, a Bíblia é cheia de dramas que nem Shakespeare inventaria, lindos poemas e passagens poderosas, como o Livro da Sabedoria, escrito pelo sábio rei Salomão (o meu pedaço preferido das escrituras), e a história igualmente poderosa e cheia de ensinamentos de Jesus nos evangelhos de Lucas e de São Mateus, os que a contam melhor.

2 – Fédon. É a Bíblia dos agnósticos, assim como Sócrates é o Jesus dos intelectuais. O melhor, mais famoso e mais importante dos diálogos de Platão relata o último encontro do célebre filósofo ateniense com seus discípulos. Já condenado à morte pelos juízes da Cidade-Estado por “subversão” dos jovens, a quem ensinou o livre pensar, Sócrates discute a existência da vida além da morte enquanto a cicuta vai agindo lentamente em seu organismo.

Despede-se da existência fazendo o que sempre fez, como uma reafirmação do direito à liberdade e ao pensamento, grande dádiva do homem,aquilo que dá sentido e valor à vida. O mestre deixou impacto profundo em seus discípulos e em todos aqueles que têm o privilégio de ler a narrativa de seu mais célebre aluno.

3 – A Ilíada, de Homero. Primeiro grande épico da Humanidade, Homero deu à vida uma nova dimensão. Para ele, homens podiam ser quase deuses, assim como os deuses eram quase homens. Ele criou o guerreiro perfeito em busca da imortalidade (Aquiles) e consagrou o ideal grego de que o maior bem de um homem não é sua vida, mas a glória, especialmente a conquistada pela coragem em batalha, pois ela é a única coisa que o ser humano pode eternizar de si mesmo.

4 – Vidas dos Homens Ilustres, de Plutarco. Maior historiador da antiguidade, o romano Plutarco traçou o perfil de importantes personagens do passado, alguns dos quais foram seus contemporâneos ou haviam deixado registro para ele recente. Além de dar à luz a muito do que sabemos hoje sobre a Humanidade, Plutarco mostra que o centro da história é o indivíduo – a única força capaz de mudar o mundo.

Em sua vasta obra, também conhecida como Vidas Comparadas, certamente o tomo mais interessante é o que faz um paralelo entre os dois maiores gênios políticos e militares de todos os tempos, para que se possa eleger o maior: Alexandre Magno e Júlio César.

5 - A Divina Comédia. O mergulho de Dante e Virgílio no além é a mais bela e poderosa alegoria sobre a condição humana. Depois de mergulhar no inferno, no purgatório e no céu, guiado pelo poeta, Dante nos faz refletir sobre o que seria conhecer a morte – e depois poder voltar.

6 – Hamlet, de Shakespeare. Todas as obras do velho bardo mereceriam menção numa lista da melhor literatura em todos os tempos. Para dar mais espaço aos outros, porém, fico com a clássica tragédia que dispensa todo o trabalho posterior de Freud, ao colocar a mãe no papel de traidora, o filho no do continuador e vingador do pai, e sobretudo que coloca o ser humano diante da angústia eterna de não saber de onde veio, nem para quê: “ser ou não ser, eis a questão”.

7 – Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Retrato complexo do ser humano, a obra máxima do gênero picaresco e talvez de toda a literatura ficcional é também a que melhor retrata a mais bela diferença do ser humano para as outras feras: a capacidade de sonhar. Sonhando, Quixote de velho miserável se vê herói; faz uma era épica de um tempo mesquinho; alimenta a vida com um amor inexistente e enfrenta aventuras que, como tudo, são obra de sua imaginação.

Porém, em sua ilusão, o pobre Quixote não terá dado à sua vida miserável também uma dimensão incomparável, a grandeza que há na vida de todos nós, mesmo do ser humano mais medíocre? O que separa da loucura a realidade desta nossa existência? O homem que vê gigantes no lugar dos moinhos de vento nos diz uma grande verdade: somos importantes não pelo pelo fazemos, mas pelo que acreditamos. Graças a Cervantes, um louco nos mostrou a razão.

8 – A Metamorfose, de Kafka. A fragilidade da alma humana, vista como algo separado do corpo, é o tema desta pequena e genial obra da literatura que, em perspectiva histórica, podemos chamar de contemporânea. Ao se transformar em uma barata, o personagem central, um alter ego do próprio Kafka, separa também a alma e o que somos do corpo e de toda a aparência, apenas para nos mostrar a impossibilidade de sermos compreendidos pelo próximo e o fundo de nós mesmos – seres irremediavelmente perdidos em nossa inconsolável solidão.

9 – Sidarta, de Herman Hesse. Fundador do gênero “auto-ajuda” na literatura, Hesse também foi o primeiro autor ocidental a ver a profundidade e o interesse na sabedoria oriental. Sua parábola do rio como símbolo da vida - sem começo, meio ou fim, apenas água que é a mesma na nascente, no leito e na foz - é recorrente em minha obra literária. Até hoje procuro acreditar na eficácia da receita do jovem brâmane Sidarta para resolver todos os problemas da vida com três palavras mágicas: pensar, esperar e jejuar.

10 – Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Para colocar um romance brasileiro na lista das dez leituras obrigatórias, vai este que é o nosso melhor livro de ficção em todos os tempos. Relato biográfico escrito por um morto, com a visão muito peculiar de alguém que analisa sua vida a posteriori, Machado trata com a mais fina ironia o dilema central da Humanidade e apresenta em sua crueza máxima a insignificância e a inconsequência da existência humana.

Eu poderia colocar no lugar deste livro o Quincas Borba, que faz o mesmo, só que por meio da narrativa do cachorro. Em um caso ou outro, Machado apresenta a vida humana como algo realmente minúsculo diante do tempo, das estrelas e do universo infinito, mas que em algum lugar, foco de resistência dessas alminhas pensantes que constituem a Humanidade, sobrevive com um sorriso no canto da boca.