sábado, 29 de maio de 2010

Literatura para pisotear


“Aqui nesta casa não há livros nem quadros, o diabo mesmo os levou.”


Frase extraída de D. Quixote, diante da casa onde viveu e morreu Miguel de Cervantes Saavedra, em Madri. Número 2 da calle Cervantes, que no tempo do artista tinha entrada pela Calle de Leon.

Tanto lugar para ir em uma cidade inteira e parei parei descansar e fumar um café crème justo aqui. Só depois percebi onde me encontrava. Mera coincidência?

Cervantes estava certo, este é o destino do escritor. O próprio diabo leva tudo o que prezamos, mas pelo menos nos países que dão algum valor a seus escritores, sobra alguma coisa.

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Madri imprime em letras de bronze versos e frases de seus escritores no calçamento do centro histórico. Dá valor à sua cultura. Ali seus herois culturais são pisoteados, mas ao menos não são esquecidos, o que lhes dá ao menos um pouco de honra e glória, a única coisa que se pode roubar ao diabo. Diferente do Brasil, onde os escritores nacionais parecem não merecer sequer lamber a sola dos sapatos.

Os gênios do Prado


Passo pelo museu do Prado. Os retratos inacabados de Goya. Que só reforçam como a grande arte sai do nada, é puramente a mão do artistas: a mágica contrasta com a tela nua.

Goya era um gênio e é um dos meus artistas preferidos. Por seus quadros que fogem dos cânones. Pintava os ricos, fazia retratos de encomenda nos moldes clássicos, como Rembrandt, mas se deixava levar pela emoção, que lhe deformava o traço. Foi o primeiro modernista, quando riscava a tela, em pinceladas de fúria; o coração ultrapassava a técnica, era a síntese da expressão, como no seu quadro das execuções durante a guerra civil espanhola.

Parei muito tempo diantes das majas, que estão lado a lado. Nunca havia reparado nisso: a maja vestida está de rosto rosado e risonho, já a desnuda parece posar contrariada. Intenção do artista, ou a disposição da modelo?

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Fortuny: não conhecia, é brilhante. O tipo que eu gosto: pouco conhecido, mas com o brilho dos grandes. Uma surpresa.

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O Prado é um museu coerente, focado na pintura clássica, desde a renascença italiana, que influiu na espanhola. Um museu com personalidade, que não atira para todos os lados, uma enciclopédia, de uma variedade demasiado ambiciosa e cansativa, como o Louvre. Sim, o Louvre é grande, mas para mim mostra apenas a inutilidade de tentar saber tudo; a vida é feita de escolhas. E o Prado tem grandes obras e nomes, como Rafael, Ticiano, Tintoretto, Goya e o apocalíptico Bosch, sem ser confuso, nem disperso.

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Bosch. Como a alma humana pode gerar imagens terríveis de si mesma. Mas não acho Bosch doentio. Acho... realista.

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Ainda no Museu do Prado, vejo o retrato de Veronica Franco, pintada por Domenico Tintoretto (1560-1630): Mulher com o Seio Descoberto. Franco que, viveu em Veneza, cuja ousadia foi perenizada pelos artistas de sua época, foi talvez a mulher mais pintada de seu tempo. Ninguém, no entanto, a pintou como Tintoretto. O gênio da Renascença transferiu a mesma magia com que pintava suas virgens marias para essa outra mulher, não uma virtuosa moral, nem de aura beatificante, mas de qualidades bastante seculares: a beleza e a inteligência. Com a silhueta bem definida, de quem, como Leonardo e outros renascentistas, valorizava o esboço antes de pintar, Tintoretto deu-lhe ao gesto de descobrir o seio não apenas o tempero da ousadia, mas algo de doçura virginal. Uma combinação misteriosa, provocadora e, para quem aprecia as contradições, irresistível.

“Cortesã cuja beleza só se comparava ao talento literário”, diz o texto descritivo do quadro; nunca li nada de Franco, quero ler, para saber jus se a escritora fazia mesmo jus ao que provoca de imaginação.

Arte sob a luz



Em exposição temporária, no Museu do Prado, uma obra prima emprestada pelo museu de Boston: As Filhas de Edward Darley Boit, de John Singer Sargent, junto às Meninas de Velázquez, sua fonte direta de inspiração. Obra prima que retrata de maneira sutil mas eficaz as meninas de acordo com sua idade: das menores, na fase distante, absorta, despreocupada e brincalhona da inocência, às maiores, imersas na penumbra, tímidas, recolhidas, como que cientes de que alguém as observa, indicativos da mudança de espírito para a adolescência.



Muito contribui para esse efeito não apenas a atitude das meninas, como o efeito de luz. Nas meninas menores, ela explode num branco luminoso. Já as duas maiores apenas saem da penumbra.

A luz é essencial. É graças a ela que se pode ver o trabalho do gênio, por exemplo, num dos quadros mais extraordinários que já vi na vida, e que só pode ser apreciado no local onde se encontra: a basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari, em Veneza, uma nave grande e escura, onde por obras do próprio artista a luz proveniente das janelas parece incidir justamente na Nossa Senhora no momento de sua assunção – transformando-a numa aparição, um ser deslumbrante e cheio de vida, que emerge carregada pelos anjos numa prancha de nuvens às portas do paraíso.

Obra de Tiziano, um mestre.

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Em Madri encontrei meus cadernos de anotação favoritos. Da Miquelrius. Do tamanho dos moleskines, mas de papel mais fino, suave. São cadernos flexíveis, fáceis de manusear, com folhas que não soltam. Uma delícia de carregar e usar. Achei só os de folha quadriculada; folhas brancas, estranho, não há mais. Mas estes servem.

domingo, 16 de maio de 2010

Diferenças entre yin - yang


Yin carrega poesia para a prosa, algo sempre muito difícil: exige o trabalho do ourives, o talento e paciência. Mas que, bem feito, produz resultados maravilhosos. É como escrever ao modo dos chinês, nanquin sobre papel de arroz, com cuidado, arte milenar. Busca a essência, até mesmo nas palavras; por isso, é profundo sem ser rebuscado; é elegante sem exageros; é apenas pleno de significado. Yin é intimista, no tema, no tratamento, no resultado.


Yang dá mais ênfase à trama, ao enredo, que à linguagem. Conduz o leitor menos pela profundidade das idéias que pela sequência da ação. Não aplica poesia à prosa, não busca seu poder nas imagens; ele apenas sugere a emoção como consequência da ação; mais do que diz, importa o que deixa de dizer, e que apenas se sente, como resultado do ato, como acontece na própria vida.


Yin quer só escrever, não importa onde, nem que seja numa masmorra, como Dostoiévski e Graciliano; alimenta-se de si mesmo. Yang quer somente escrever, mas onde tenha liberdade; precisa viver para alimentar sua criação, seja como um plongeur em Paris como Orwell ou estivador como Hammett en Nova York.


Yin gosta do mar, do sal e da brisa marinha; seu mundo é povoado de imágens aquáticas. Adora navegar, sentir o vento bater no rosto, a imensidão perigosa das águas, mas tem de voltar para a praia, a casa, o fogo, como o pescador; não suporta muito tempo a solidão do universo ao redor, precisa de companhia, de gente, de carinho; busca a comunhão com todas as criaturas, em harmonia com a natureza, faz parte dela.


Yang adora o mar, mas não depende de um porto aonde voltar; os vagalhões não são apenas movimento da vida, pelos quais nos deixamos levar; ao contrário, são um desafio a enfrentar. Prefere todo lugar mais isolado, que desperte seu instinto para a aventura, como o alto das montanhas, os extremos gelados da terra ou o céu estrelado e o silêncio dos desertos. Está em desarmonia com o mundo; rebela-se contra ele; embora seja livre, é o verdadeiro amigo da solidão.

Yin e Yang, dois caminhos, ou um só?

terça-feira, 4 de maio de 2010

Uma mulher em sua ilha

Falo por e-mail com a escritora e poetisa Wendy Guerra, em Havana. Guerra diz que vive “longe de tudo e de todos”. Que pouco fala com editores. Lê mal em inglês, criada como foi no regime comunista, que ensinava russo às suas crianças. Vive em uma cobertura em Miramar, “rodeada de mar e luz”, onde come “entre cristais”.

Em seu mais recente romance, Nunca Fui Primeira Dama, que acaba de ser lançado pelo selo Benvirá, sua personagem habita um casarão “cheio de sal” no Malecón, a célebre fachada da cidade diante do mar, semi-abandonada. Sempre me perguntei se havia gente morando ali, naquela galeria fantasma. Na obra de Wendy, há. Um pouco dela está lá. Como acredito que a ficção diz mais sobre o escritor do que a vida real, vejo Wendy em seu palácio abandonado, como se ali vivesse de verdade.

Decidiu usar sua presença em Cuba como manifesto. Seu romance, belo e pungente, conta a história de uma mãe foragida do país por escrever um livro sobre a falecida secretária de Fidel, Celia Sánchez. Por isso, a mãe teria abandonado a filha em Cuba, aos dez anos de idade. Ao contar a história da mãe, a narradora de Wendy conta também a de Celia. Resgata a figura da mãe, em todos os sentidos. E completa o trabalho materno, publicando a história proibida da mulher que mais perto esteve de Fidel. Como autora, coloca-se no papel de sua própria personagem.

Wendy fica em Cuba, como estandarte de uma cruzada pessoal. Não quer sair, como tantos que saíram, esgotados com o regime. Ao fim dos termos, sua história pessoal é também de defesa da liberdade, da literatura e da expressão, em uma Cuba que não precisa abandonar suas utopias para voltar a ter tudo isso, e mais o progresso. Como ela diz, pertence a uma geração que não é nem da de seus avós revolucionários, nem mesmo a de seus pais, os operários a quem se atribuiu a tarefa de construir na vida real os velhos sonhos.

Ela é uma geração que quer igualdade social, mas também quer liberdade. Que faz da vida comum e das necessidades mais simples, como a de reconstruir a família destroçada pelas antigas gerações, a sua verdadeira bandeira política e o seu manifesto.

Em seu castelo feito de memórias, Wendy não está sozinha. Com ela, estão os injustiçados do passado, os banidos, os inconformados. Os que vão embora, mas sobretudo os que não vão. Os inconformados que ficam, marcam posição. Os que tentam reconstruir algo sobre um passado incompleto e desolador.

Hoje já não existem ilhas completamente isoladas. Como sua personagem, Wendy rasgou as capas que cobriam os livros proibidos da biblioteca de sua casa, também como um gesto simbólico. Cuba aos poucos muda. Ela não tem seus romances publicados em Cuba (por lá saíram apenas os de poesia), mas também não precisa fugir de sua ilha para escrever.

Cuba nunca foi uma ilha e hoje menos que nunca. Ernest Hemingway viveu lá. Precisava apenas da brisa do mar, da linha de pesca, do sol cubano, do mar cerúleo, do rum para os daiquiris na Floridita. Era um homem ilhado e ao mesmo tempo estava mais presente no mundo que muita gente plantada em Paris e Nova York. Wendy também é assim.

Wendy Guerra está em Cuba. Escritores são ilhas, vivendo dentro de si mesmos, cercados de suas obsessões por todos os lados. Não importa se vivem numa cabana nas montanhas, numa praia deserta ou num apartamento da megalópole. Ao mesmo tempo, se correspondem com todos. Onde quer que estejam.

Wendy Guerra vive entre velhos cristais, mas ao mesmo tempo está em todo mundo, onde se pode compartilhar dos sentimentos que ela generosa e corajosamente abre como a flor do coração.

Sim, o Malecón à noite é semiabandonado, escuro, feio e sombrio. Dá medo. Mas lá há vida que se espalha sobre o mar.

Por trás do artista


O cabide é uma bruxa, nas paredes passam imagens fantasmagóricas, o silêncio dá pesadelos. “Eu só tinha três anos de idade”, diz Maria Fernanda Cândido. “E me lembro muito bem.” Mais que lembrar, ela sente: “Medo.” Os pais deixavam a porta do quarto fechada. “E eu não podia fazer nada.” Desse tempo é que vem a necessidade profunda de compreensão e de expressão, comum ao escritor, o artista plástico, o ator?


Maria Fernanda não sabe. Nem todos são assim. “Meu filho Tomás, por exemplo, pede para deixar a porta fechada.” Mãe de dois filhos pequenos (Tomás tem quatro anos, Nicolas 1 e meio), ela só sabe da importância de pensar nos sentimentos, não apenas das crianças, como de todos. E que, do medo, vem a coragem e a força – e que força.


Depois de dois meses de filmagens, Maria Fernanda Cândido terminou sua participação em Aparecida, filme de Tizuka Yamasaki que deve chegar aos cinemas em novembro. O tema que a atraiu para fazer o papel de uma executiva enfiada numa história de fé foi o da independência.


Como toda mãe com filhos pequenos, e que aos poucos volta mais e mais ao trabalho, Maria Fernanda parece buscar um caminho para também poder ser novamente, apenas, Maria Fernanda Cândido. Usa, para isso, a profissão: ao entender os outros, pela representação de um papel, entende mais a si mesma. Interessa-se, acima de tudo, pela “humanidade” - assim mesmo, com H minúsculo, no sentido da natureza humana. “Aceitar o diferente, sem preconceito, ir por trás (da aparência).”


Existe algo em comum entre os artistas: não o meio de expressão, mas a compulsão invisível, que vem de um passado distante, raiz de toda predestinação.

domingo, 18 de abril de 2010

A pobreza, a riqueza e a arte


O escritor Francis Scott Key Fitzgerald, um dos membros da tríade dos grandes romancistas da literatura americana, ao lado de Henry James e Herman Melville, costumava dizer que, sem a sua obsessão pela riqueza e a vida dos ricos, teria escrito uma obra completamente diferente.

Com seus três principais romances (O Grande Gastby, Suave é a Noite e O Amor do Último Magnata), Fitzgerald foi o autor que melhor captou a aura da riqueza e o seu efeito sobre a alma humana. Sua obra mais famosa, O Grande Gatsby, é considerada pelos críticos o romance central da literatura dos Estados Unidos, pela maneira como retrata o Sonho Americano, seu endeusamento e suas vicissitudes.

Em Suave é a Noite, obra marcante da Geração Perdida, mostra a vida perfeita dos ricos na era próspera dos anos 1920, crônica de uma época em que a América decolava num binômio de prosperidade e hipocrisia que se tornou novamente muito atual.

“Scott Fitzgerald foi ao mesmo tempo o grande celebrante e o satirista do sonho que virou pesadelo”, define o crítico literário Harold Bloom, no ensaio “Gênio”, sobre os maiores mestres do mundo das idéias em todos o os tempos.

O cenário de O Grande Gatsby é a América da Lei Seca, na qual um garoto pobre das ruas de Nova York chegava ao Sonho Americano pela via do crime organizado. A apresentação da máfia como um negócio qualquer, confundindo um bandido a um grande homem de negócios, é típica do estilo de Fitzgerald, no qual o brilho e a euforia da riqueza contém também os genes do seu trágico fim.

No romance, ele se dá com a morte do protagonista, Jay Gatsby, assim como na História a derrocada veio com o crack de 1929, que levou à bancarrota não somente os milionários da época como seu estilo de vida e a ilusão um tanto hipócrita de toda uma era.

Tudo isso parece familiar? Por trás da fuga do volátil capital globalizado e dos homens-bomba enviados vingativamente pelo mundo marginalizado dessa riqueza, há um cheiro permanente de que o paraíso dos ricos americanos está ameaçado. “Hoje em dia, no início do Século XXI, não está claro o que opera o sonho americano como mito estruturante”, escreve Harold Blom. “Na Era de Ouro de George W. Bush e seus Barões do Roubo, haveremos de dizer: expandir ou explodir?”

Em vida, Fitzgerald vendeu apenas 25 000 cópias de O Grande Gastby e, a despeito de ter se casado com uma mulher de família rica, conheceu tanto o lado looser (“perdedor”) quanto o winner (“vencedor”) no qual o Sonho Americano dividiu seus cidadãos - e, por extensão, a Humanidade. A linha demarcatória do dinheiro, que para o padrão americano estabelece se uma existência pode valer ou não a pena, é o denso e ao mesmo tempo sutil material de trabalho do escritor, que constrói seu ponto de vista pelos detalhes aparentemente mais prosaicos.

Como na cena em que Gastby mostra ao narrador, Nick Carraway, sua coleção de ternos, trajes a rigor, gravatas e camisas acondicionadas meticulosamente em pilhas de 12 unidades. Eram compradas para ele na Inglaterra, depois de uma rigorosa seleção entre as novidades da estação:
“Tomou uma pilha de camisas e se pôs a exibi-las, uam a uma, puro linho, seda ou flanela, que, ao caírem sobre a mesa, em uma desarrumação colorida, perdiam os vincos das dobras... De súbito, emitindo um ruído de dor, Daisy curvou-se sobre as camisas e pôs-se a chorar, convulsivamente. “Que camisas lindas!, ela soluçava, a voz abafada pelos tecidos. “Fico triste porque jamais vi tantas... tantas camisas tão lindas assim.”

Essa fina construção é também o esteio de Suave é a Noite, publicado por Fitzgerald em 1935. Nele, a frivolidade de uma vida perfeita apenas na aparência é desvelada de maneira tão mais chocante quanto sutil.

A história de Dick Diver, um jovem e brilhante psiquiatra que interrompe sua carreira para casar-se com Nicole Warren, uma herdeira bela, rica e mentalmente perturbada, é vista pelos olhos de uma aspirante a estrela de Hollywood. Esta conhece Dick e Nicole em uma temporada na Riviera Francesa, onde se apaixona não só pelo protagonista como pela imagem de perfeição produzida pelo casal. Para sua surpresa, ela os reencontrará anos mais tarde. Nicole, recuperada, continua a levar a sua vida de distanciamento da realidade, como se o tempo não tivesse passado.


Descartado depois de cumprida a sua finalidade, Dick torna-se um médico obscuro no interior do Estados Unidos, fadado a lutar no fim da vida contra dificuldades materiais e o vazio de, depois de ter entrado naquele círculo de sonhos, ser enviado de volta ao que socialmente determinou-se ser o seu lugar.

Em sua própria biografia, Fitzgerald lutou para firmar-se nesse mundo mais aristocrático que ele acreditava sempre rejeitar corpos estranhos. Nascido em 1896 em Saint Paul, Minnesota, ele descendia de uma família católica irlandesa, o que significa estar no centro da mentalidade que se tornou a base do comportamento e da sociedade americana. Estudou na Universidade de Princeton e se alistou na primeira guerra mundial, sem no entanto chegar a combater. Numa época em que os escritores podiam ganhar tanto dinheiro quanto hoje o fazem autores de novelas na TV, arriscou-se na atividade literária.

Em 1920, publicou Este Lado do Paraíso, romance que lhe deu grande popularidade e lhe abriu espaço em publicações de prestígio, como a Scribner's e o The Saturday Evening Post. Seu segundo romance, Os Belos e Malditos, foi publicado em 1922.

O sucesso financeiro foi suficiente para aproximá-lo de Zelda Sayre, sua futura mulher, que já o havia rejeitado em tempos de vacas magras. Filha de família rica, Zelda seria um componente importante e trágico na vida de Fitzgerald. Dividia com ele o gosto pelas coisas boas e as viagens que os levaram a temporadas na Europa e à companhia de milionários como Gerald e Sarah Murphy, americanos que recebiam os amigos artistas em sua casa de veraneio na Riviera Francesa.

Emocional e psicologicamente instável, Zelda deixava fundadas suspeitas de trair o marido e causava escândalo com suas bebedeiras e um comportamento inconsequente. A partir de 1930, seria internada sucessivas vezes em sanatórios para tratamento psiquiátrico, rendendo a Fitzgerald farto material para Suave É a Noite.

Mais tarde, Zelda escreveria um livro de memórias acusando o marido de tê-la plagiado, entre outras declarações que somente podem ser explicadas como produto dos sanatórios onde ela fazia terapia ocupacional.

Com a saúde já abalada pelo alcoolismo, Fitzgerald mudou-se para Hollywood, onde trabalhou como roteirista cinematográfico, último refúgio para ganhar algum dinheiro. Em 1939 começou a escrever seu último romance, The Last Tycoon (O Último Magnata), publicado postumamente em 1941. A obra era sua última tentativa de retratar a personalidade de um grande artífice do "sonho americano", inspirada em um grande produtor hollywoodiano.

Nesse livro incompleto, o escritor americano John Dos Passos veria a libertação de Fitzgerald de sua obesssão pelos ricos. “pela primeira vez, ele escreveu sobre eles como se fala de um outro ser humano, numa relação entre iguais”, disse Dos Passos, num artigo sobre a morte do amigo. Sim, Fitzgerald estava enfim livre, mas, como nos mais trágicos romances, não de maneira que pudesse aproveitar, pois deixaria o livro incompleto. Morreu aos 44 anos, fulminado por um ataque cardíaco que terminou de liquidar seus corpo já devastado pelo alcoolismo.

Por suas idéias e estilo, Fitzgerald ajudou a criar a aura da Geração Perdida, um grupo de romancistas que precedeu o existencialismo na sua técnica e propósitos. Outro expoente desse grupo, Ernest Hemingway, seguiu na esteira da obra de Fitzgerald em romances como O Sol Também se Levanta, no qual a sensação de inutilidade e crueza da vida passa pela narrativa da viagem de um homem impotente pela Espanha das touradas e de uma amante inalcançável.

O homem castigado pela sua própria natureza, ou o que o destino lhe reservou, são o traço comum no estilo do Hemingway de seus primeiros anos e Fitzgerald, a quem o amigo descreveu no memorialístico Uma Festa Móvel como um ser já decadente e apodrecido pela bebida – tudo verdade, mas resultado de uma ponta de inveja por uma literatura superior. Impotente como seu alter ego de O Sol Também se Levanta, o livro no qual procurou mais aproximar seu estilo ao de Fitzgerald, Hemingway não terminaria a vida melhor que o antigo colega. Alcoólatra e deprimido, matou-se com um tiro de sua espingarda de caça.

O valor da obra literária de Fitzgerald perdura, mesmo que tenha passado por altos e baixos tão grandes quanto os de sua vida. Adaptado para o cinema e a Broadway, O Grande Gatsby mergulhou no esquecimento no longo período da depressão e só ganhou fama ao ser republicado depois da Segunda Guerra mundial, quando foi aclamado como a obra prima da literatura americana.

Está de volta às prateleiras nos Estados Unidos como um alerta muito presente dos perigos da prosperidade, agora que ela não parece ter freios senão ela mesma. Assim como o personagem-título de O Grande Gatsby, há nos Estados Unidos de hoje aquele mesmo materialismo que ameaça corroer a alma humana. 

É essa condenação ética que faz se voltar contra o país o olhar indignado do mundo, cansado da resposta aos problemas sociais dos marginalizados com a política do “big stick” – a expressão cunhada por Franklin Roosevelt para esclarecer que aos americanos estão sempre dispostos a usar a diplomacia da paulada. 

Na obra de Fitzgerald, como na vida, a abundância carrega em si mesma uma certa arrogância visível para todos – exceto, evidentemente, para quem a encarna.