terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Escolhas


"Você é meu pai para toda a vida", disse o André, aos sete anos. Os filhos ensinam a gente. Eu nunca tinha pensado que ser filho é uma escolha. Mas é.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Uber, airbnb e o Estado avestruz

A internet e a crise econômica se juntaram para acelerar um processo que vai minando rapidamente a economia formal. Taxistas reclamam do Uber, que oferece serviço de qualidade a preço mais baixo, justamente porque não tem os custos e burocracia do mercado regulado. O airbnb aos poucos vai substituindo a hotelaria como um meio de hospedagem mais barata, prática e de qualidade.

A ideia da "economia do compartilhamento" surge bem na hora da crise econômica no mercado formal. Isso porque os custos que recaem sobre a economia  clássica são muito altos - e os preços também. Para competir e coibir a informalidade, é preciso baixar preços. Porém, isso é difícil num mundo burocratizado ao extremo e dominado por um Estado avestruz, que come de tudo e enfia a cabeça dentro de um buraco quando se encontra em dificuldade. E assim onera toda a sociedade.

A crise derruba a arrecadação e a reação natural do governo, para compensar a perda de receita, é aumentar taxas e impostos. Com impostos mais altos (e imposto é custo), os preços sobem e o mercado cai ainda mais. Isso torna o aumento de imposto inócuo, no final.

Nos Estados Unidos, onde há um pouco mais de inteligência no trato econômico, é o contrário. É preciso ter um certo desprendimento e acreditar que baixar impostos, na crise, ajuda a baixar preços, recuperar vendas e, por consequência, a arrecadação.

O mercado formal ainda não lida bem com a internet. Um exemplo disso é o livro. Por que procurar um livro na livraria, a 50 reais, se você pode copiar uma versão digital pirata a 4,90? Esse é o motivo para as editoras baixarem os preços do livro impresso e sobretudo digital. Como elas se recusam a fazê-lo, as vendas do livro impresso não crescem e mesmo as do digital estão caindo. Bom sinal? Não, porque o que está crescendo é a pirataria.

O excesso de taxação é o grande incentivo do meio digital, onde o mercado informal oferece saídas difíceis de serem fechadas. Punir os piratas acaba esbarrando não apenas na dificuldade prática como no interesse do consumidor já esmagado pelo alto custo de vida e o desemprego.

A liberdade sempre acha um caminho. Quanto mais se tenta cerceá-la, mais ela aparece, em outro lugar. É preciso colocar a economia compartilhada a favor da economia geral, incorporá-la.
Caso contrário, o meio virtual acabará se tornando uma verdadeira revolta civil.


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Moisés é brasileiro

No final de 2002, entreguei ao então editor da Siciliano, Pedro Paulo Sena Madureira, os originais de um romance que me custara um ano de vida, entre pesquisar e escrever, com um título tão ousado quanto o assunto: O Homem que Falava com Deus, uma versão mais contemporânea da história biblica de Moisés e Josué, transformada praticamente num thriller.

Pedro Paulo leu, me chamou ao seu apartamento cheio de castiçais de cristal, e na sua poltrona acolchoada, tendo aos pés seus cachorrinhos Daschshund, sentenciou: "ninguém acredita num autor brasileiro escrevendo um romance sobre um assunto que não seja do Brasil", disse ele. "Mas é um grande romance, e um livro seu: e, por isso, eu vou publicar."

O Homem que Falava com Deus saiu em março de 2003; na noite de autógrafos, três semanas depois de estar nas livrarias, a primeira edição se encontrava esgotada. Na mesma noite, os editores da Siciliano avisavam que já estavam rodando uma segunda edição. Que também vendeu em menos de um mês.

De certa maneira eu contrariava as expectativas do próprio Pedro paulo. Ele já tivera uma surpresa com meu primeiro romance, Filhos da Terra, de 1998. Na época, eu levara um livro sobre moda, de Fernando de Barros, com quem eu trabalhava em parceria, e era um best seller, assim como o meu romance sobre a imigração italiana. Pedro Paulo ficou com os dois, mas esperava muito menos do romance que do livro de moda. No final, o livro de Barros ficou aquém do ele imaginava. E Filhos da Terra vendeu tão bem que ganharia em 2001 uma segunda edição.

Com O Homem que Falava com Deus, Pedro Paulo teve sua segunda surpresa: ganhou dinheiro com minha ficção, mais uma vez. Satisfeito com o resultado, preferiu fechar aquela conta no azul, sem arriscar ir além, e não seguiu reimprindo o romance: preferiu passá-lo para a coluna de lucros do ano. Depois de apenas dois meses nas livrarias, O Homem que Falava com Deus encontrava-se esgotado. Hoje sua versão impressa é uma verdadeira raridade, em sebos aqui e ali. Agora, há também a versão digital, com o selo Copacabana.

Conto essa história para dizer como o mundo dá voltas. No passado, ninguém imaginava um autor brasileiro reescrevendo uma história da Bíblia. Hoje, um dos maiores sucessos da TV no horário nobre foi a novela Dez Mandamentos, que proporcionou inclusive o fvilme que se enconra em cartaz nos cinemas e o lançamento de um livro homônimo, baseado no folhetim. Graças à igreja Universal, Moisés está na moda.

O Homem que Falava com Deus conta, em ritmo de aventura, como Moisés descobriu sua origem hebreia, levado por uma história de amor - ou a mão secreta de Deus. Em tudo cabe dupla interpretação, da mesma forma que não vemos, na vida real, se o que acontece é obra do acaso, do destino, ou de alguma força divina. Depende de como enxergamos as coisas. Essa é a diferença entre a literatura moderna e a Bíblia original. O leitor pode escolher no que acreditar.

Gostamos de dizer por aqui que Deus é brasileiro. Podemos dizer agora que Moisés também é. O fascínio que o personagem exerce, histórico e universal, encontrou seu momento no mercado. É uma boa oportunidade para mostrar que brasileiros, podem, sim, escrever sobre o que quiserem. Daqui e de qualquer lugar.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Metal queimado e o coração

A mulher, morena, cabelos soltos, camiseta regata, shortinho e chinelos de dedo, segura a carta entre as mãos – isso mesmo, uma anacrônica carta, papel com uma mensagem riscada de Bic, que sai de seus dedos guardando ainda a memória da dobradura no envelope. “Não vou mais fumar, porque desse jeito não terei saúde pra matar mais gente”, ela lê, em voz alta, para duas outras mulheres que a rodeiam na calçada. “Vocês viram aqui o que ele escreveu? Não terei saúde pra matar mais gente.”

É meio da tarde, tempo abafado, e passo meio com pressa, meio com vontade de parar e perguntar. Quem é o presidiário: será um filho, um irmão, um marido, ou namorado? O que terá feito para estar preso, ou melhor, quantos crimes cometeu, e quantos mais terá cometido depois, na prisão? As palavras saem doces na voz feminina, mas eu as escuto dentro da cela fétida, de paredes descascadas, perto da latrina barrenta. “Matar mais gente. Matar mais gente”, reverberam as palavras. E o pensamento: até um assassino tem para quem escrever, até um assassino encontra compreensão, um assassino tem amor.


Faz alguns meses que estou na Barra Funda, como uma espécie de rito de passagem entre o passado e o futuro, o desconhecido já visto e o desconhecido a ver. Caminho pelas calçadas onde se espalham mesas de bar; numa esquina a caminho de casa, um grupo de desocupados todos os dias joga baralho; dali controlam a calçada, o jogo e até o trânsito: gritam com quem vem na contramão, dão informação, e me lembram os personagens daquele filme espanhol com Barden, Segunda-feira ao Sol, sobre a vida dos desempregados.

Barra Funda: galpões antigos, com portas de metal, onde ficam restaurantes por quilo, oficinas mecânicas, pequenos negócios. À noite algumas dessas portas se abrem, são casas noturnas que funcionam tarde da noite, onde vão alguns clubbers e muitos bêbados da madrugada. As ruas mesmo durante o dia têm algo de abandono: as lojas de tatuagem, os entregadores delivery de água, as mulheres suburbanas, opulentas e suadas, na porta dos cabeleireiros.

Aqui já houve mais indústria, os migrantes do passado, que deixaram os galpões fantasmagóricos e o costume de sentar fora. Nas ruas ficaram os estudantes da Faculdade Oswaldo Cruz, a dona do bar de comida mexicana com um cardápio de neon, os tatuadores e as tribos da contracultura, que gostam do clima do lugar, o que de mais perto São Paulo poderia ter do Soho novaiorquino, que nunca terá. E, sobretudo, os homens de baixo clero, os barbados que perambulam sem rumo, roupas puídas, catando lixo; o negro que ao me ver muda súbito de rumo, vem na minha direção,  penso que vai pedir dinheiro, ou é um assalto, e não: "Na rua de cima você vai achar o templo", ele diz, "vá lá, Jesus salva, o Senhor te ajudará."

As ruas estão sempre cobertas de lixo; na redondeza da escola pública, traficantes circulam sem serem incomodados. É um gueto, quase um campo de concentração: o trem espreme a Barra Funda entre a linha férrea e o Minhocão. Bate em meus ouvidos, repetitivo e rude; os guinchos durante a noite, rilhando na alma, os apitos inopinados, longos e escandalosos silvos e o cheiro de metal queimado, que impregna a roupa, as narinas, mas não parece vir de fora, e sim de dentro, do coração.

A quadra de futebol onde levo meu filho; o apartamento pequeno, onde se amontoam móveis embrulhados em papel bolha, à espera do dia da mudança: purgatório que não devia ter acontecido, abismo entre o passado e o futuro, parênteses no tempo, parado mais do que deveria.

Na rua, todas as noites a moça ruiva leva o cachorro para passear; tem cabelo curto de rapaz, que ressalta o queixo quadrado, o rosto bem feito, o corpo torneado sob a roupa preta de ginástica; leva sempre o cachorrinho peludo na coleira; ela me cumprimenta, quando me vê passar. Sigo em frente, sem pensar; sou um estranho, ou sempre fui; estou aqui de passagem, como sempre tenho estado; isso, como tudo, vai ficar para trás, mais uma possibilidade que não aconteceu: a minha será uma Barra Funda sem lembranças, apagadas junto com tudo aquilo que não posso mais.

Aqui todos são solteiros ou têm crianças pequenas, fazem esteira no salão de ginástica, esperam também o fim do intervalo, ou o momento de pegar o trem e ir para longe dali. Imagino que muitos ficarão à espera por toda a vida, olhando tudo passar: deserto dos tártaros urbano, que me faz olhar o relógio, contar as horas, minutos, os cabelos enbranquecendo no espelho, como se a vida se esgotasse a cada instante.

Subo pela rua, e a ideia de ir embora me faz sorrir levemente. O sol bate forte na cara; enfim faz verão sem chuva, e eu me encho de energia; na Barra Funda fiquei seis quilos mais leve, e caminho na calçada na ponta dos pés. Quando baixo os olhos do céu, vejo uma menina, que deve ter dez, onze anos, não mais; encontro, no ar, seus olhos de mel. Tem cabelos longos, pele mourisca, senta numa mesa na calçada em frente de casa com a mãe e os irmãos; experimenta aquele alumbramento de quem viu um homem em estado de graça; os olhos dela me acompanham quando eu passo, e eu sei que ela se lembrará de mim para sempre, o moço da rua, que ela viu sorrir sozinho, distante e distraído, e isso, um instante, mexeu alguma coisa dentro dela.

Eu ainda posso fazer isso, penso: posso causar isso em alguém e posso fazer muitas outras coisas. Sobretudo, posso novamente ser eu, o mágico que reconstrói a vida, que inventa tudo de novo, que faz palpitar o coração; eu sigo sendo eu, a recomeçar.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O dia dos humildes

O Brasil é um país generoso. Votou em massa no Wendell Lira e ele ganhou o prêmio Puskas de gol mais bonito, deixando para trás Messi e outros craques milionários do mundo.


O antes desconhecido jogador do Goianésia teve sua noite de estrela e representou o Brasil com a dignidade dos humildes na festa da Fifa em Paris, para a qual esperou no primeiro terno que vestiu em toda sua vida, do lado de fora, sozinho, sob um guarda-chuva.

No instante em que seu nome saiu, baixou a cabeça, no.meio da plateia. Diante do microfone, mesmo emocionado, manteve-a de pé. Foi simples, breve, comovente. O Brasil é capaz de grandes coisas, sobretudo sustentar a dignidade do brasileiro diante do mundo. 

Esse é o exemplo que deveriam tomar outros brasileiros, que não representam o povo, apesar de eleitos para tal, e só fazem nos envergonhar.



segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

David Bowie: é possível ser sempre jovem


Conheci David Bowie - não a pessoa, mas a música, o artista, o personagem - na faculdade, período da juventude em que gostamos de arte cult. Bowie nunca foi um artista popular. Era inventivo, iconoclasta, experimentalista. Chegou a fazer algumas músicas populares, como Little China Girl, mas ele foi muito mais uma influência criativa sobra uma série de artistas de várias gerações, e de um público mais refinado, do que realmente um artista pop.

Bowie, porém, era mais do que um músico. É verdade que ele chamou a atenção pelas roupas extravagantes, o visual andrógino e a onda interplanetária do final dos anos 1960, embalados pela chegada do homem à Lua. Sua obra inicial parecia feita para filmes de ficção científica, a começar pelo álbum que o fez famoso, Space Odissey. Foi pelo talento, porém, que Bowie se firmou, além da capacidade de renovação pelas fases de sua vida pessoal e artística, que o fizeram ganhar o apelido de "camaleão".

Mesmo sua aparição no cinema, que o deixou ainda mais conhecido, também foi cult. Os filmes de Bowie nunca foram um estrondoso sucesso de público, mas sempre tiveram charme, por serem vistos pela gente certa - os fãs de Bowie, principalmente. Foi assim com Fome de Viver, que eu vi também nos tempos universitarios, uma história de vampiros com a igualmente cult Catherine Deneuve. E Furyo, um filme de guerra, talvez seu melhor papel.

Bowie atravessou gerações como um símbolo da música criativa. Sua voz grave e inconfundível era o seu verdadeiro instrumento. Era perfeito porque era um esteta, que chegou a escrever um livro de estilo, Objects, sobre objetos de formas que ele admirava. Modelo de elegância, na vida e nas artes, nunca deixou de ser britânico, pela maneira perfeita como falava e se comportava. Profissional, nunca perdeu o interesse pelos outros nem a humildade, essência para sempre começar tudo de novo, como se estivesse partindo do zero, a real fonte da criatividade.

É um final de filme que Bowie tenha morrido justamente quando lançou seu último álbum, Blackstar. É preciso ouvir Bowie várias vezes para começar a gostar. Isso acontece sempre que estamos ouvindo algo novo, inédito, que busca outros caminhos. Ele fez parte da nossa educação musical e estética nos últimos 40 anos e deixa não apenas o legado como o exemplo de que é possível ser sempre jovem. "A idade não importa – o que importa é a intenção, a integridade e o poder de tocar as pessoas", disse ele à revista Rolling Stone.

Bowie morreu aos 69 anos. Mas sua obra provavelmente continuará agradando a jovens e velhos num futuro incontável, porque, como ele, não envelhece. Ao menos, para quem tem a mente aberta para entender a linguagem de um artista único.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Os pecados da tribo contemporânea

Em seu romance Os Pecados da Tribo, de 1976, o escritor goiano J.J.Veiga, falecido em 1999, imaginava um mundo em que desaparecera toda a tecnologia, depois de uma inexplicada catástrofe que tirou a energia artificial: um planeta sem carros, geladeiras e outras máquinas, onde a consulesa - uma mulher casada desejada pelo narrador por seus lindos pés -, andava sempre descalça.

Uma interessante fábula para mostrar que, sem os meios criados pela indústria contemporânea, o homem permanecia o mesmo, com seus desejos, mesquinharias e problemas, que remontam aos tempos das cavernas. Prova de que a civilização está no comportamento, e não nos instrumentos de que a sociedade dispõe.

Falo deste livro para fazer um exercício contrário, tomando o mundo real de hoje. Desde a invenção da roda e da máquina a vapor, a sociedade não mudou tanto quanto agora, na era da informação. Impregnado de tecnologia, especialmente a que hoje conecta todo os indívíduos, vemos que esse avanço civilizatório não fez progredir também os elementos essenciais da Humanidade. O mundo continua o mesmo, ou pior, já que a tecnologia tem servido para acirrar suas dissensões.

Onze Cabeças, de Pavel Filonov,
Museu Russo, em São Petersburgo
Em vez de dirigir o mundo para uma fase desenvolvimentista, objetiva e integrada às bases humanistas ou iluministas, como seria de se esperar de uma geração tão próxima dos elementos da razão, o que a tecnologia fez foi impulsionar a intolerância religiosa, acirrar o maniqueísmo político, dar voz aos extremistas de esquerda e direita e fortalecer minorias que tentam encobrir a maioria com seu ativismo.

A  multiplicidade se transforma em uma infinidade de defesas de interesse que buscam tirar a legitimidade umas das outras e tendem a desintegrar um mundo cada vez mais integrado pela comunicação.

Assim como as tribos africanas não deixaram de ser tribais, apenas hoje usam metralhadoras no lugar dos antigos chuços para dizimar seus inimigos em  maior escala, a internet se tornou um instrumento de última geração para a ação de ideologias  que se supunha anacrônicas.

Ressurgiu a velha dicotomia de esquerda e direita, que parecia destinada à submersão no processo de redemocratização do Brasil. Levantaram-se da tumba os arautos de velhas esquerdas, como a stalinista, segundo a qual os fins justificam os meios, defensores da erradicação do capitalismo a qualquer preço, que tem muitos correligionários ao redor do governo da presidente Dilma Rousseff.

Surgiram também do limbo, ao mesmo tempo, os radicais de direita, para quem tudo o que a esquerda prega é um absurdo, e justifica-se portanto o absurdo do lado contrário, incluindo silenciar a esquerda e defender bens imponderáveis como a pátria, a família e a liberdade com a luta armada, outra aberração anti-civilizatória de tempos pregressos.

No mundo, acontece a mesma coisa. Pela internet, agrupam-se e se fortalecem movimentos radicais islâmicos que acabam nas ruas, como o que resultou na morte de mais de uma centena de pessoas, recentemente, em Paris. Ressurge o nazi-fascismo, que se julgava morto e enterrado desde a experiência macabra da Segunda Guerra Mundial.

Da mesma forma que permite a adolescentes suicidas encontrarem apoio uns nos outros para realizar o seu intento, a internet é um espaço onde interesses específicos podem se reunir em redes e fortalecer o ânimo de grupos com propósitos fora da curva.

Ao patrulhamento ideológico, que tenta matar toda e qualquer manifestação contrária nas redes sociais, junta-se a cizânia pura e simples, daqueles que veem defeito em tudo e só sabem criticar o governo, o vizinho, as instituições, a democracia e reclamar da vida - da falta d´água ao preço do dólar.

Excluída a tecnologia, como o rei da fábula, que de repente se viu nu, ainda somos os mesmos. Os cruzados ainda lutam contra os mouros, e a irracionalidade da intolerância religiosa ganha força e amplitude com sua agregação virtual: Jerusalém agora é cada cidade do mundo, como Paris. A Guerra Fria não é mais entre americanos e soviéticos, é entre todos os que defendem o Estado absolutista e do outro lado o capitalismo liberal, se possível selvagem e desenfreado.

O movimento das minorias ganhou ainda mais força, seja das feministas, dos gays, dos negros. E com isso vão também se criando guetos de exclusividade e privilégio em que o cidadão fora dessas nomenclaturas vai sendo alijado do direito de igualdade.

Essa guerra microfísica, que está no dia a dia das pessoas, vai tornando o ambiente virtual estressante e potencialmente explosivo. A facilidade com que a organização de grupos na internet ganha as ruas, de repente e aparentemente do nada, para quem não vigia os meios virtuais, é o maior fenômeno social da era contemporânea.

Dentro desse cenário, está também a tentativa de desmoralizar a imprensa, para a ocupação do espaço da informação com o ponto de vista dos grupos de interesse. Um mundo em que não há verdades, ou fatos, e apenas versões sobre tudo, vai se tornando um campo minado para a sociedade, sujeita mais a campanhas de marketing que à realidade.

A divergência política, que se dava apenas em períodos eleitorais, e antes se restringia às páginas de opinião dos jornais ou ao churrasco de fim de semana, hoje é um campo aberto e cotidiano. Os projetos de interesse coletivo estão sujeitos a uma infinidade de pressões que ameaçam paralisar as atividades de Estado e precisam ser defendidos diariamente, assim como a reputação daqueles que são achincalhados impunemente no meio virtual.

A democracia se obriga a respeitar o direito de opinião livre de todas as minorias, não pode ir contra a multiplicação desse tipo de material que infesta hoje o espaço virtual, tão presente na vida das pessoas, ainda que isso não represente o pensamento da maioria, geralmente silenciosa. É um desafio para o mundo se tornar governável diante de todas essas fontes de pressão.

A tecnologia avança, mas ainda somos os mesmos que levaram este planeta às guerras mundiais, à Inquisição, à perseguição política, à censura e outros males crônicos da Humanidade. A civilização não é a tecnologia, e sim o que está por trás dela, e agora aparece à frente, tão claramente. Espera-se que seja uma fase e venhamos a encontrar fatores de equilíbrio, a começar pela consciência das consequências do mundo virtual no mundo real.

Uma certa volta aos pés no chão da consulesa, símbolo último da realidade.