quarta-feira, 8 de abril de 2015

Que país é este?



Por que ler A Conquista do Brasil

O jornalista Laurentino Gomes, best seller com sua série de livros de história, que aceitou gentilmente prefaciar o meu próximo livro, Conqyista do Brasil, escreveu um elogio tão generoso quanto surpreendente: admirou-se da "invejável capacidade de pesquisa" que o livro revela.

Surpreendente porque, na realidade, a pesquisa hoje é o mais fácil de se fazer, com todos os inéditos recursos que a a internet oferece. Um dos grandes trunfos do livro, porém, é mesmo esse. Hoje se tem acesso mais fácil a todos os documentos originais da história do Brasil, que é ricamente documentada por viajantes, aventureiros e sobretudo os jesuítas. Não é preciso mais ir á torre do Tombo, em Portugal, para levantar documentos, ou recuperar edições de livros de história que já não são publicados há muito tempo.

Pela dificuldade de pesquisa, até hoje a história do Brasil é baseada no trabalho de historiadores do final do Século XIX e início do Século XX, como Capistrano de Abreu. Tudo o que sabemos de história, incluindo o que se ensina nas escolas, é baseado no trabalho de historiadores para quem o Segundo Império ainda era coisa recente. Por isso, meu maior desafio foi me despir dos preconceitos criados pelo que aprendi na escola e nos livros para refazer a trajetória do Brasil desde seu início. E tentar entender o nosso DNA, aquilo que está na origem de tudo, e nos influencia até hoje.

O resultado foi surpreende. Descobri como sabemos tão pouco do Brasil. A Conquista do Brasil é um esforço para entender a época com seus próprios valores, a começar pelos índios, que não eram simples vitimas nem meros canibais. E também os portugueses, como Manoel da Nóbrega, que chamava os índios de "negros", e José dde Anchieta, o santo brasileiro, que em suas cartas escreveu que o problema do índio no Brasil se resolvia "coma espada ou a vara de ferro".

A necessidade de construção de uma nação unificada num extenso território não se deu pela propalada "cordialidade' do brasileiro. Foi um processo de força, que envolveu uma guerra e o emprego violento da força para a construção de uma um poder unificado e hegemônico dividido entre a corte portuguesa e a Inquisição, representada pelos jesuítas no Brasil.

Daí sai uma história contemporânea do Brasil, no sentido de ser mais realista, menos idealizada e menos presa á necessidade de construção dessa identidade nacional a partir de uma raiz portuguesa. Mostra o lado cruel, perverso, às vezes trágico da história brasileira e personagens de carne e osso, no lugar das velhas pinturas românticas recheadas de herois e seres idealizados.

Em a Conquista do Brasil está o DNA deste país, com gente ambiciosa, ousada, às vezes sanguinária. Nesse DNA entra lago do índio rebelde, que não conhece a subordinação, e a cobiça predadora do português degredado. O Brasil ainda está fincado na antiga colônia da qual seu "pacificador", o governador-geral Mem de Sá, se queixava. "lembre Sua Alteza de que povoou esta colônia de degredados malfeitores que mais mereciam a pena de morte", dizia ele, ainda no primeiro século depois da viagem de Cabral. E pedia a El-Rei que, se quisesse fazer do Brasil algo realmente próspero, que lhe mandasse "homens de bem".

Você conhece realmente este país?

segunda-feira, 30 de março de 2015

Um história contemporânea do Brasil

O passado já aconteceu, não muda, mas mudamos o sentido do passado, quando encontramos novos elementos que nos ajudam a ter uma nova visão a seu respeito. Quando comecei a escrever A Conquista do Brasil, uma história do país desde os primeiros viajantes, achei que sabia bastante sobre o descobrimento e os primórdios da história brasileira. Mas estava enganado.

Com o material que colhi, especialmente resgatando as fontes de informação original - os relatos dos viajantes, dos jesuítas e documentos oficiais - passei a ver outro passado, outro começo do Brasil, que me parece mais realista do que nos acostumamos a ver desde os livros escolares. A Conquista do Brasil não muda o passado, mas nos faz ver com olhos de hoje, e isso muda nossa compreensão sobre nós mesmos.

Meu desejo de escrever esse livro veio da necessidade de entender o DNA brasileiro, que está em nós, hoje - no manifestante insatisfeito das ruas, no governante e político corrupto, no empresário corruptor e rapinante, na população que alterna momentos de euforia e niilismo, passividade e raiva.

Ali, por exemplo, vemos que muitos problemas brasileiros estão na origem. Mem de Sá, o homem que efetivamente integrou a colônia portuguesa no Brasil, à custa de muito sangue, já escrevia ao rei Dom Sebastião em 1560 que tinha povoado o país "com malfeitores que mais mereciam a pena de morte"; e que, se quisesse fazer algo de bom na colônia, que lhe enviasse "capitães honrados", isto é, homens de bem. Ao que parece, ainda estamos no mesmo compasso de espera, com a diferença de que os homens de bem não virão de outro lugar, precisam sair do meio de nós mesmos.

Creio que entendi melhor como somos. Como diz o título do livro, o Brasil não foi ocupado tranquilamente, e sim tomado por gente feroz, que unificou um imenso território com a fúria sanguinária do imperialismo sob a égide da Inquisição. Graças a esse substrato, diferente do restante da América Latina, o Brasil permaneceu unificado, enquanto a América espanhola se fragmentou.

O livro deve chegar às livrarias na primeira quinzena de abril, pouco antes do "descobrimento", como uma uma espécie de redescobrimento do país. Espero que esse esforço de compreensão possa fazer os leitores também enxergarem melhor o Brasil e a si mesmos, nosso comportamento individual e coletivo.

O Brasil é uma construção recente, e esse passado não está tão longe de nós: em seis séculos, ele está ainda, do ponto de vista histórico, logo abaixo da nossa pele. É preciso entendê-lo como mais um passo para podermos nos analisar e construir o país desejável, rico e ao mesmo tempo socialmente mais justo.


sábado, 28 de março de 2015

Meus amigos loucos

É bom ter amigos loucos; tenho vários. Não apenas porque me identifico com eles; eles me fazem pensar, abrem perspectivas novas, mesmo com coisas que parecem insanas.

Vejo uma correlação intensa entre a mente criativa e a vida desregrada, ou louca. Meus amigos mais loucos têm dificuldade de manter uma vida "normal". Não são de internar no hospício, pelo menos por enquanto, mas vivem em apuros.

Um deles é um amigo de colégio, a quem eu não via há muitos anos. Lembro de tê-lo visto pela última vez na estação do metrô, trinta anos atrás; usava uma roupa toda branca, como um pai de santo, dizia ter encontrado a "luz", não matar mais baratas e que tinha seguidores perto do campus onde tinha ido estudar Física.

Desapareceu por três décadas e muitos de nós, colegas de classe, eu inclusive, o julgávamos morto, de tal forma estava desaparecido. Reapareceu uns três meses atrás, bem vivo, dono de empresas em vários lugares, morando em outro estado, com quatro filhos de diferentes casamentos e uma biografia digna de filme.

Outro dia ele, ele me mandou do nada uma pergunta pelo what'sapp: você conhece o paradoxo de Fermi? Sim. O paradoxo de Fermi, formulado pelo grande cientista e pensador Enrico Fermi, é a estranheza de não haver vida perto da Terra, já que os mecanismos de criação da natureza são os mesmos em todo lugar.

Meu amigo faz a gente pensar. A meu ver, o paradoxo de Fermi não existe, ou melhor, não é um paradoxo; certamente há vida em outros lugares do universo, criados da mesma forma, talvez em condições semelhantes às da Terra. 

Recentemente, cientistas alemães disseram ter reproduzido em laboratório a "criação" da matéria orgânica, uma troca de calor em nível molecular que gera uma célula auto-reproduzível, a que chamamos de vida. O que está errado, para mim, é a noção de "perto". No universo infinito, uma galáxia distante pode ser "perto". Fermi não considerou a relatividade do espaço.

Isso me deu ideias para um romance, que já vinha acalentando desde que vi Lucy, o filme com Scarlett Johanson, a mulher que se torna um computador, como método de autopreservação da vida: o filme lembra que inteligência não é o que produz a mente, nem é mesmo necessariamente orgânica: o homem é um computador vivo, e poderia ser eterno se pudesse transportar sua mente para a natureza ou a máquina.

Esse talvez seja o sentido religioso da eternidade, como uma volta à natureza, uma forma maior de inteligência, da qual fazemos parte; a vida teria, portanto, um sentido mais amplo, parte de um conjunto que faz sentido; haveria uma "inteligência" da natureza, ou do próprio universo, a que podemos chamar de Deus.

Pensar diferente é ser um pouco louco? A loucura, nesse caso, é um contribuinte importante para a criação e a própria ciência. Pensar como já se pensou é a melhor maneira de chegar sempre ao mesmo lugar. Se queremos avançar, é bom termos um pouco de loucura, ao menos uma pitada a cada dia. Mesmo quando não dá resultado, é um pouco de saúde, faz a vida melhor.

terça-feira, 10 de março de 2015

Stanford e a receita para mudar o mundo

Em janeiro, visitei a Universidade de Stanford para escrever uma reportagem de encomenda da TAM nas Nuvens, revista de bordo da TAM, com a missão de entender porque saem de lá os jovens que fundam companhias como o Google e, dessa forma, têm mudado o planeta. E encontrei lá não apenas muitas boas ideias sobre educação como uma visão muito interessante sobre o processo de desenvolvimento do mundo atual.

Stanford não se resume à Business School, seu pedaço que chama mais atenção, por razões simples. Dali, saíram nos últimos anos empreendedores que fundaram companhias com um faturamento somado de mais de 300 bilhões de dólares, criadores de marcas como Cisco, Gap, Dolby, eBay, Linkedin, Netflix, Nvidia e Silicon Graphics. Phil Knight, fundador da Nike, em 2006 deixou diante da Business School a pegada de seus tênis numa placa de concreto, depois de doar 105 milhões de dólares à Universidade, misto de incentivo e agradecimento à escola que lhe deu instrumentos para fazer fortuna.

Apesar dessa vitrine, a escola de negócios apenas reproduz a mentalidade de Stanford em todas as áreas, da medicina à engenharia. Sua filosofia encaixou-se com perfeição no mundo moderno, porque na realidade é uma escola onde o ensino é justamente convencional e focado na liberdade de criação. O aluno não vai lá para receber informação, que adquire pela internet, nos livros ou outras fontes de consulta. vai discutir e debater ideias com colegas e professores e criar alguma coisa nova a partir disso.

Na Business School, há liberdade para se criar e testar projetos. A primeira pergunta que se faz ali a todos os alunos é: "como você acha que pode mudar o mundo?" Refletir e reunir forças sistematicamente com esse propósito é o que faz os alunos de Stanford literalmente recriarem o mundo. Os resultados dos egressos da universidade mostram que isso é bastante possível, ainda mais numa era em que a inteligência e o espírito criativo permitem a qualquer um construir uma fortuna a partir, literalmente, do mais puro pensamento.

Stanford tem uma mentalidade global, e eu diria mais, holística. Incentiva projetos interdisciplinares, alguns deles fomentados por gordas bolsas do governo americano, em áreas como cibernética e nanotecnologia, com alunos das mais diferentes áreas, da biologia ao Direito. Isso não tem apenas relação com a visão globalizada da tecnologia e dos mercados, e sim com o conceito amplo do conhecimento, que envolve todas as ciências, artes, países e épocas.

As obras de arte compradas a peso de ouro que decoram o campus, o museu rico em peças que fazem viajar por diversos países e toda a história da Humanidade, a própria arquitetura de Stanford representam essa construção histórica do conhecimento da qual ela se apropria para depois recriar tudo. Para completar, Stanford sedimenta o ideário de seu fundador, Leland Stanford, que enriqueceu com as ferrovias no tempo da expansão americana para o interior, e dava a força de fé cristã ao seu gosto pela riqueza. Como na passagem bíblica, que ele fez transcrever na parede da Memorial Church, marco zero do campus: “Uma nobre ambição está entre as mais úteis influências da vida estudantil, e quanto maior for a ambição, melhor. Nenhum homem trabalha bem a menos que possa falar de seu trabalho como o Grande Mestre falou do prazer colocado à sua frente.”

Stanford me lembrou uma frase de Bill Gates, entrevistado nas páginas amarelas de Veja. Quando o repórter lhe perguntou que conselho ele daria para que o Brasil pudesse produzir tecnologia de ponta, Gates respondeu, simplesmente: "Construam bibliotecas". O segredo do futuro está nas velhas verdades do passado, sobretudo a de que são as ideias que movem o mundo. Stanford, como instituição, as mantém e sabe praticá-las.

Para quem quiser ler a matéria completa, não precisa pegar o avião. Há uma versão online da revista (a matéria se encontra na pág. 122). Link:

http://www.tamnasnuvens.com.br/revista/site/

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

As fotos perdidas de uma grande aventura

Em 2005, publiquei pela editora Globo o romance Campo de Estrelas, em que narro de forma ficcionada uma viagem que fiz com meu pai Alipio a Machu Picchu, por terra, percorrendo o legendário caminho que incluía o Trem da Morte e outras aventuras. Eu tinha dezesseis anos de idade e as memórias dessa viagem substituíram outra viagem que, no livro, planejávamos fazer - o caminho de Santiago de Compostela.

Para os leitores desse romance, que tem muitos aficcionados, uma revelação, surpresa também para mim. No romance, como aconteceu de fato, as mochilas dos personagem são roubadas no caminho de volta, no quarto do hotel em Santa Cruz de la Sierra. Com elas, vão-se também os rolos de filme que, além dos registros de viagem, confirmariam a existência do incrível personagem, misto de mendigo e messias, trajado com trapos e um capacete de desbravador espanhol, apelidado de Homem de Lata. (O Homem de Lata existiu. Nós o vimos uma única vez, num bar em La Paz, onde entrou com um rei).

Remexendo nos meus arquivos de imagem, copiadas de algum antigo CD, junto com outro material, surgiram quatro fotos dessa viagem. Creio que estavam no rolo da câmera fotográfica (naquele tempo um acetato), que meu pai levava consigo, enquanto o ladrão surrupiava nossas coisas no hotel. Isso deve ser sido copiado com outras fotos e ficou perdido no meu arquivo virtual.



Todas as imagens são de um trecho da viagem, justamente aquele em que o taxista nos abandonou em meio ao deserto do altiplano, com outras duas brasileiras que diviam conosco o carro e o custo do trajeto. O homem receava ser interceptado por grevistas que segundo se dizia tinham fechado a estrada, e decidiu voltar a La Paz, rompendo o combinado, e levando o dinheiro, pago adiantado.

Caminhamos todo o dia no deserto, no clima incômodo do frio andino, porém sob o sol implacável, ainda mais forte por conta do ar rarefeito. Salvos por um caminhão do exército em algum ponto entre La Paz e a fronteira com o Peru, atravessamos o lago Titicaca e alcançamos, à noite, a pequena, salvadora e fanstasmagórica cidade de Copacabana.

Numa das fotos, feita por meu pai, estou eu com as brasileiras, depois de descer do táxi, com as bagagens ao chão. Eu e meu pai preferimos encarar o deserto a, como elas, voltar a La Paz, onde não havia condução, por causa da greve. Na Bolívia, ainda mais naquele tempo, se avançava como possível, porque não havia o que chamamos de normalidade.



Nas outras fotos, o belo, árido e implacável cenário do altiplano, com detalhes por vezes bizarros. O pequeno pueblo é aquele em que uma chola nos salvou da fome, oferecendo um pedaço de queijo de cabra impregnado de terra que permaneceu na memória gastronômica como a melhor coisa que já comi, por pior, mais suja e nauseante que de fato fosse.



Para quem não leu o romance, ele pode ser encontrado em formato digital, no link abaixo. A versão impressa pode ser encontrada nos sites das livrarias, mas, ah, vai ficando tão rara quanto as fotos.

http://www.amazon.com.br/Campo-de-Estrelas-ebook/dp/B00EDXV2S4/ref=sr_1_2?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1376421275&sr=1-2&keywords=thales+guaracy

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Santo Sátiro e os homens de seis dedos

Vasculhando arquivos de imagem achei por acaso fotos de uma viagem que estava tão esquecida quanto as pessoas que retratava. Quando eu tinha 16 anos, meu pai, Alipio, me convidou para uma aventura: soubera que na barra do Rio Una, além de Peruíbe, havia um povoado de espíritas isolados do mundo por 50 anos. E resolvemos encontrá-los e contar sua história.

Como todas as aventuras em que eu e meu pai nos metemos, a viagem foi precedida de muitas elocubrações e pouca preparação. Saímos de São Paulo no meio da noite e chegamos a Peruíbe ainda de madrugada. Ali, numa pequena vila de pescadores, instalada no triângulo entre o rio e o mar, ficamos sabendo que o rio Una era conhecido pelos locais como Rio dos Espíritos, em função da gente que vivia rio acima. E que eles não gostavam muito de ir lá.

Com a ajuda do então secretário municipal de Peruíbe, um coronel do exército chamado Rodolfo Petená, imponente e folclórica figura local, encontramos dois barqueiros dispostos a nos levar. Por Petená, ficamos sabendo um pouco mais sobre os discípulos de Kardec que resolveram se instalar no meio do mato, naquela imensa área pertencente à Nuclebras, onde se pretendia instalar a terceira usina nuclear brasileira, detida por ação do então governador de São Paulo, Franco Montoro. Com o fechamento de toda aquela área para a construção da futura usina, ela acabara preservada, assim como seus rarefeitos habitantes.

E quem eram eles? O líder espiritual do grupo, segundo Petená, era o Santo Sátiro; com ele moravam a mulher, os filhos, a nora e netos. E havia uma comunidade de negros mutantes, com seis dedos nas mãos e nos pés, conhecidos como os irmãos Maria.



Tomamos o barco pelo Rio dos Espíritos, oficialmente Rio Una, ou Rio Negro, chamado assim pela cor, apesar da água puríssima. Era preciso conhecer bem a foz, cheia de ilhas, muito fácil de se perder. Seis horas na lancha metálica, coleando rio adento, naquela imensa selva isolada de um lado pelo mar e de outro por uma serra semicircular. Conosco, os dois barqueiros e o próprio Petená (de branco, na foto).

Chegamos, enfim, ao lugar. O Santo Sátiro, cujo verdadeiro nome era Sathyro, assim, com Y, tinha em sua casa uma grande mesa coberta por imagens de santos, flores e velas, onde realizava suas sessões espirituais. Contou sua história, originada no preconceito que levara seu pai a empurrar toda a família para aquele lugar. Conhecemos seu filho, que tocava uma viola provençal, fabricada rusticamente. Seus hábitos eram o de gente que não via o resto do mundo há muito. Falavam um português arcaico e sobreviviam numa economia de subsistência, em que tudo, absolutamente tudo, era feito ali. 

Meu pai fez o Santo Sátiro sentar na beira de um igarapé com uma bíblia na mão e fez uma série de fotos das quais infelizmente a maior parte se perdeu. O que resta está aqui.





Mais além, no rio, encontramos os irmãos Maria. Tinham, de fato, o sinal de um sexto dedo nas mãos e no pés, resultado dos casamentos endogâmicos, única saída para um grupo negro isolado no meio da mata, em que irmãos se casavam com irmãos. Havia uma escola, uma pequena casa de tábua na qual se chegava de barco, e se mostraram alegres e receptivos. Ainda assim, havia ali, e em todo aquele rio, algo que me dava calafrios.



Voltamos com aquele material e fortes impressões. A reportagem nunca foi publicada. Creio que interessava mais a experiência, mais uma das nossas estranhas jornadas, do que realmente escrever ou vender a reportagem. Ficou na minha cabeça, porém, a ideia de ainda escrever sobre o Santo Sátiro, os homens de seis dedos e alguns calafrios, num romance chamado O Rio dos Espíritos.

Tantos livros, tão pouco tempo. Mas eu vi.



quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Contra o tempo

Aceitar o tempo, viver o presente, buscar a sabedoria: há maneiras de reverter o relógio

Lembro de uma festa de criança, quando tinha seis anos de idade, em que resolvi nunca mais comemorar meu aniversário. Tinha medo de que ninguém aparecesse na festa, ou algo assim; é tão importante o carinho das pessoas que gente como que passa a ter medo delas, ou da falta delas.

Nunca me dei muito bem com o tempo. Nunca penso nele, o que é também uma maneira de pensar nele o tempo todo. Isto perpassa minha própria atividade: a literatura, assim como a reportagem, para mim sempre sempre foi uma maneira de tentar congelar as horas. Escrever é lutar contra o tempo. Destinada à derrota, como tudo o que se volta contra esse dragão imortal.

O tempo leva a vida e nada do que se possa escrever é grande, belo e palpitante como ela. Nada do que se escreve pode reproduzir ou substituir o ser humano. Ideias, memórias, sentimentos lançados no papel são apenas uma mensagem distante, resto do que somos, como pinturas rupestres, vasos desencavados na terra e outros vestígios arqueológicos.

Sorte de quem tem a oportunidade de dar e criar a vida, por meio de filhos: a nossa única forma verdadeira de continuidade. Mesmo com filhos, a missão mais difícil de todas é aceitar o tempo. É difícil envelhecer sem angústia, com dignidade.

Não se pode viver pensando no tempo, porque isto traz ao dia a dia a lembrança da morte. Para viver uma vida plena, não podemos sofrer antecipadamente com sua perda. A vida se gasta e não podemos ter dó de gastá-la, assim como quem planta bons frutos não pode ter pena de comê-los.

É preciso aproveitar o tempo, nosso único bem, aquele com que podemos fazer o bem aos outros, e deixar assim no mundo algum patrimônio. Muitos vêem a linha da vida como ascensão na juventude, apogeu na meia idade e a velhice como o declínio. Mas o homem só envelhece quando deixa de fazer o que gosta e de fazer o bem ao outro. Quem faz o que gosta e beneficia o próximo não tem razão para sentir a idade, nem o tempo: desfruta da vida sempre. Um homem com mais idade sempre poderá pensar que há muitos jovens que morrerão mais cedo de que ele.

A vida se torna uma linha ascendente quando o que buscamos da existência é a sabedoria e a felicidade, pois elas estão sempre mais adiante. Quem se compraz com suas realizações, cultiva a vida com outras pessoas e busca a paz espiritual se aproxima da sabedoria; para isso, o tempo nos favorece, pois esse é um trabalho progressivo e permanente.

Um homem pode ser jovem e já parecer um ancião, pois a velhice é o estado de espírito de quem se deixa abater pela finitude da vida. Da mesma forma, um homem em idade avançada pode rejuvenescer se encontrar motivação e o frescor da antiga juventude em suas realizações, descobertas e nos laços afetivos.

Ele também rejuvenesce de corpo e alma se mantém acesos seus sonhos e ideais e busca atingir sempre um grau maior de sabedoria. Já quem tem medo da morte não é jovem nem é velho, pois não vive.

A sabedoria é um bem adquirido, mas jamais alcançado na sua plenitude. Ela é um desafio permanente para o homem e um estímulo para que ele olhe sempre à frente. Conquistá-la não depende de vigor físico, de forma que o homem, quando envelhece, está ainda mais preparado para dedicar-se a ela e encontrar nova função no mundo, que é iluminar aqueles que o seguem logo atrás.

Tantas reflexões sobre o tempo, e o tempo não existe. O que vale é apenas o presente: ele iguala os seres humanos na mesma idade. Um jovem pode morrer mais cedo que um ancião e para ele a juventude terá sido sua velhice, enquanto para muitos anciãos a velhice pode ser sua juventude.

Sim, o tempo não existe; é tudo, e simultaneamente nada. O gênio cabeludo que disse que o tempo é relativo estava enganado. O tempo é natureza e a natureza é absoluta; a relatividade é só do homem e seus conceitos.