quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A pérola da sabedoria


Existem coisas que podemos até compreender na juventude, mas que só se transformam em conhecimento com a experiência. Não basta saber; é preciso sentir, passar por aquilo, para que o conhecimento se torne profundo e verdadeiro. Por isso, a sabedoria não é apenas informação. É informação curtida pela maturidade.

Quem passa por experiências fortes adquire mais conhecimento do que aquele que assiste as coisas de fora. Essa é a grande ironia de quem morre jovem. A sabedoria não vem do pensamento, e sim do interesse e exercício da vida. E a quem não se dá tempo, a sabedoria é negada.

Não há como ser sábio sem passar pelo caminho pedregoso da experiência. Esses são como diz Salomão no Livro da Sabedoria: fruto da vaidade. Podem enganar a si mesmos, mas não enganam aos outros. Vivem angustiados.

Para quê a sabedoria? Para ter amor, paz e tranquilidade. A sabedoria não consiste num conhecimento superior, mas em dotar o ser humano daquela atitude repleta de dignidade de compreender o incompreensível, aceitar o inaceitável e enfrentar em paz de espírito as grandes dores e tribulações da vida.

Aprendemos com o tempo que há males irremediáveis e a melhor postura contra o irremediável é aceitá-lo com tranquilidade. Quem não aceita a dor, a morte e os fatos inevitavelmente duros que virão, dificilmente dormirá direito.

A sabedoria traz coragem. Aprendemos com ela que coragem é ignorar o medo, não por realmente ignorá-lo, mas por defendermos uma causa maior. Aquele que tem um motivo superior não se deixa barrar por qualquer dificuldade, real ou imaginária. Quando se defende um amor, ou princípios como o da Justiça, ou a Liberdade, não há como ter medo.

Sabedoria traduz coragem. Quando não receamos a morte, ou a aceitamos melhor, deixa de existir a intranquilidade que nos leva a criar a ilusão de movimento, trocar de vida, de casa, de pensamento. Todas essas são formas de alheiamento. A sabedoria nos ajuda a encontrar nosso lugar e ficar nele.

Se a sabedoria vem da experiência, não do pensamento, para alcançá-la é preciso viver aprendendo, não pensando. O homem sábio pensa menos e faz mais. Já o pensador é um ser humano mergulhado num eterno mar de dúvidas. Não se chega à sabedoria, à coragem ou mesmo à inteligência com o pensamento. Ela não depende de inteligência. Pede muito mais equilíbrio emocional e paz no coração.

À primeira vista, o sábio à primeira vista parece um conformado. Já não reage com o impulso, o vigor e a testosterona da juventude. Mas ele não é covarde ou insensível. Ele não protege a paz, a sua e a dos outros, com a indiferença e a omissão. Isso seria a covardia. O sábio protege a paz com a serenidade. Ele age, mas sem alterar-se. Por isso, age sem precipitação.

O caminho da sabedoria é longo e tem várias vias. Gosto muito da sabedoria oriental, especialmente a fundada na cultura chinesa, a mais antiga do mundo a sobreviver na sociedade contemporânea. Dizem que os chineses de hoje não respeitam tanto a sua cultura e sabem pouco sobre suas tradições. A civilização contemporânea, de cujos progressos materiais eles começam a desfrutar em larga escala, corrompe por causa do consumismo, da ganância, da pressa. Ressalta o que o ser humano tem de pior. Até a milenar cultura chinesa vem sucumbindo a isto.

A sabedoria procura trazer o que temos de melhor. Hoje ela pode ser encontrada muito mais no campo, nas montanhas, entre gente simples, porque é onde o ser humano não se deixa envolver por todas as distrações que tiram sua atenção das necessidades básicas da vida, da origem das coisas e de nós mesmos.

A sabedoria tem sempre um sentido de volta à simplicidade, às origens, aos ancestrais. Está fincada no tempo, é construída não pela dedução racional, mas pela experiência humana.

Essa é a diferença entre o homem e o garoto. O garoto pode ter informação sobre tudo, mas o homem já viveu tudo. Por isso é mais firme, mais convicto, mais homem. Aquele que respeita o passado e aprende as lições de seus ancestrais, vivendo pela sabedoria por eles construída, encontra mais cedo seu lugar no mundo e se torna sábio mais rapidamente.

Existe um ditado chinês segundo o qual os filhos nascem para ensinar os pais. Seriam como guias criados por nós mesmos, para nós mesmos. Porém, a verdade é que nós não aprendemos com nossos filhos. Nós os educamos e guiamos. Ocorre que eles são sempre um difícil desafio da vida e para cuidar deles e encaminhá-los temos de nos esforçar para ser melhores.

os filhos também nos lembram das virtudes da pureza e da inocência. Todos têm dentro de si a dua infância. Isso nos devolve humanidade.

Com a sabedoria, o homem rejuvenesce. Não por voltar no tempo, mas por ganhar tempo – quanto mais longe da velhice ficamos, mais jovens nos tornamos. Aquele que sabe do que gosta não desperdiça tempo e energia fazendo outras coisas. Aprecia melhor o que está à sua volta, sobretudo a companhia das outras pessoas. É gentil e entende que a pressa não nos leva mais rápido a lugar algum. Conhece seu próprio valor, mesmo quando colocado em dúvida pelos outros, e não se deixa abalar. Aconselha mais do que é aconselhado.

O homem sábio não se deixa enganar pelas aparências nem pelas diferenças. Agradece ao que passa despercebido diariamente a quem vive perdido em tribulações: o calor do sol, o ar fresco da manhã, as estrelas da noite. Ao agradecer o que lhe dá a vida, dá mais valor à natureza e à própria vida. E a vida o premia com mais vida.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

A política e a máfia


Na reunião dos jurados do 59o. Esso, entre os quais eu me encontrava, não houve a menor divergência sobre qual reportagem levaria o prêmio máximo. O Esso de Jornalismo de 2014 ficou com Leonencio Nossa Jr, de O Estado de S. Paulo, que publicou em 13/10/2013 a matéria Sangue Político, resultado visível de uma longa apuração, da qual surge um retrato macabro da política brasileira.

De acordo com o levantamento feito pelo repórter, um político morre no Brasil a cada 11 dias, se a média for tomada desde 1.979. Foram 1.133 mortes de representantes públicos eleitos pelo menos uma vez nesse período. Nos últimos anos, o número de mortes aumentou. Um mapa das incidências mostra ainda que, ao contrário do que ocorria no passado, quando a lei parecia faltar somente nos rincões do sertão brasileiro, os crimes envolvendo políticos se mostram bastante distribuídos por todo o país, incluindo grandes centros urbanos de Estados como Rio, Minas e São Paulo.

Os assassinatos de políticos se devem, em alguns casos, a rixas locais que poderiam ser classificadas quase como crimes passionais. Porém, fica claro que a maior parte desses crimes é o resultado mais visível e extremo de disputas por poder e sobretudo dinheiro - acertos de contas, conquista de território e consequência de obscuras negociatas. O que a reportagem não diz, mas concluímos a partir de sua leitura, é que a política no Brasil vem sendo tomada pelas variedades da máfia - incluindo no que diz respeito aos métodos que ela utiliza para resolver conflitos de interesse.

O levantamento do Leonencio aponta para a maioria dos partidos, sem distinção. Deixa claro que mortos e mandantes não estão longe dos políticos de Brasília. E, dado mais estarrecedor, revela que cerca de 70% dos crimes políticos nem sequer são investigados pelo Ministério Público. Não parece ser um caso de incapacidade, ou excesso de trabalho. Em geral, os crimes, pela própria notoriedade dos envolvidos, dispararia o processo de investigação. Se isso não ocorre, é certamente porque quem teria o trabalho de investigar se sente inseguro ou impotente o bastante para não querer mexer com o assunto. A máfia na política é tão violenta e influente que obstroi ou intimida o trabalho da Justiça.

O júri do Esso decidiu destacar esta reportagem em especial devido ao entendimento de que, sem soluções para a política brasileira, infestada pelo crime nas suas mais variadas formas, será difícil resolver qualquer outro problema do país de maneira eficaz, seja de segurança, saúde e educação. Enquanto o dinheiro público for objeto de disputa de organizações criminosas, boa parte dele deixará de ser alocada realmente no bem público.

É preciso fazer retornar a lei ao seio do Estado, bem como restaurar o espírito do servidor público, dentro do jogo democrático, de forma pacífica e civilizada. O Brasil não pode se tornar uma terra de bandoleiros que se impõem pela intimidação e a simbiose com o poder constituído. As instituições estão aí para prevalecer sobre o crime - a começar pela própria imprensa, que vai fazendo o seu trabalho.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A imprensa está de pé



Este ano, fui convidado pela segunda vez a participar do júri do Prêmio Esso de Jornalismo, agora em sua 59a. edição, uma ocasião especial para analisar e discutir o nível do jornalismo que se tem praticado no Brasil.

O Esso, patrocinado pela Exxon Mobil, que já não usa essa marca no mundo inteiro, exceto aqui no Brasil e exclusivamente no tradicional prêmio, ainda é o maior e mais prestigioso galardão do jornalismo do país, que eu já tive a oportunidade de receber, além de colaborar com outros ganhadores nas equipes que liderei. Uma fina elite da imprensa que teve a sorte de ter seu trabalho reconhecido dessa forma, como estímulo para continuar o seu trabalho.

Para mim, esta edição teve um prazer especial: conheci pessoalmente Paulo Sotero, correspondente do Estadão, uma respeitável e carimbada figura da imprensa brasileira. Quando comecei minha carreira no jornalismo, ele já era uma estrela. No jornal onde trabalhei pela primeira vez, a Gazeta Mercantil dos idos de 1.986, que tratava seus principais jornalistas como verdadeiros astros, Sotero era um semideus. Estagiário da seção de nacional, eu tinha como uma das minhas tarefas "pentear", entre outros, os textos de Sotero. Explica-se. Naquele tempo, os textos de sucursais e do correspondente vinham por telex, uma máquina que reproduzia o texto sem acentuação nenhuma - til, ponto final, cedilha. Aquilo tinha de ser colocado à mão. Eu não mexia nos textos de Sotero - nem pensar. Porém, tudo o que ele escrevia passava pela minha mão.

Mais tarde, tornei-me repórter de Nacional e comecei a escrever meus próprios textos. De lá para cá, foram quase 30 anos de jornalismo, em veículos como Veja, Exame, Estadão e, mais recentemente, o livro. Considerando o ponto em que comecei, é uma honra dividir a mesa dos jurados do Esso com Sotero, uma pessoa afável, um bom contador de histórias e um repórter incansável, que nas conversas ao redor do cafezinho fazia questão de dizer o assunto de sua coluna no jornal do dia seguinte. Para um jornalista, o assunto em que se empenha é sempre a coisa mais importante do mundo. Sotero viu a imprensa mudar, mas se conservou essencialmente jornalista, como deveria permanecer o jornalista em geral, independentemente da mídia onde atua, se digital ou em papel, ou do veículo.

Eu mudei nesses 30 anos, como a imprensa mudou, mas uma análise do material coletado para o prêmio mostra que, apesar da proliferação de conteúdo exclusivamente digital, o melhor jornalismo ainda é feito pelos veículos mais tradicionais da imprensa, que vêm da era do papel. São eles que mais investem em reportagem, em séries mais longas ou que demandam um esforço maior de investigação. Veículos como Zero Hora, O Globo e Estadão produziram excelente material, bem como outros veículos que, mesmo sem terem sido premiados, foram capazes de mostrar este ano que a imprensa, embora em busca de novos mecanismos financeiros, ainda é a maior fonte de informação confiável, profunda e independente da era contemporânea.

A internet deu grande liberdade de acesso à informação, mas produziu também muita margem para a deturpação, a difamação e o opinionismo. Tornou-se um vasto campo para difusão de versões e o conflito de interesses. Creio que isso só serve para acentuar a importância de veículos que buscam o bom jornalismo, na forma da reportagem - a informação exclusiva, de primeira mão, apurada e checada, com a máxima isenção possível, a serviço do leitor. Quanto mais se espalha a nuvem de dissimulações produzida pela rede virtual, mais e mais o público leitor percebe que a imprensa não deixou de ter o seu valor e que, não importa se em papel ou no meio virtual, é um bem imprenscidível, pelo qual se pode e se deve pagar.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O Nordeste já foi o melhor do Brasil


Em fevereiro, quando sai pela editora Planeta meu próximo livro, A Conquista do Brasil, será possível fazer uma interessante comparação entre o Brasil de hoje e o Brasil dos seus primórdios, com o qual guardamos um grande parentesco. A grande diferença, porém, é que o Nordeste era, no começo da colonização, o pedaço mais avançado, vanguardista e rico do país. Graças ao seu solo, um administrador sortudo e eficiente e uma história de amor.

Diferente de outros donatários, Duarte Coelho veio ao Brasil com a família e outros nobres para se estabelecer, em vez de apenas piratear riquezas e voltar a Portugal com o butim. Trouxe especialistas em açúcar da ilha da Madeira e começou os primeiros engenhos como outros capitães: caçando índios para trabalhar como escravos. Na guerra, contudo, seu cunhado foi feito prisioneiro pelos índios locais, casou-se com a filha do cacique Arco Verde e dessa história de amor nasceu uma aliança que impediu a escravização dos índios dali em diante. Esse acidente exigiu uma solução heterodoxa, que se revelaria mais eficiente e lucrativa. Duarte Coelho pediu dinheiro emprestado a banqueiros judeus e, com esse investimento de risco, passou a importar escravos negros de Angola e da Guiné.

Como resultado, por longo tempo Pernambuco foi o epicentro da região mais próspera do país. Em A Conquista do Brasil, mostra-se como as coisas foram se invertendo com o passar do tempo: a região mais atrasada, a Sudeste, acabaria, por força dos tempos, e dos homens, se transformando no carro-chefe da economia brasileira. O Nordeste açucareiro e escravagista, pelas mesmas qualidades que o fizeram rico, o mantiveram em atraso depois que os fundamentos da economia colonial desapareceram.

Essa é uma herança que ainda não conseguimos superar. O desequilíbrio entre o Sudeste-Sul e o Nordeste se manifestou nas urnas e é ainda explorado politicamente pelos governantes. Embora o Nordeste tenha riquezas importantes e uma gente admirável, a indústria ainda não consegue se radicar lá plenamente e como resultado a região produz indicadores sociais alarmantes.

Como mostrou a eleição em 2014, levantar o Nordeste ainda é um grande desafio para a nação brasileira. Há um inaceitável abismo social nas grandes metrópoles do centro-sul, mas lá está um problema ainda maior. De resolvê-lo depende também o progresso das regiões mais ricas, para que o país possa ter um crescimento mais uniforme e ordenado.

Enquanto for uma concentração de pobreza, o Nordeste sempre será amplo território de exploração por políticos ao estilo coronelista e o populismo em todas as esferas de governo. São séculos de cultura enraizada e de empobrecimento econômico e social, uma tarefa que pede um hercúleo esforço civilizatório. Essa tarefa não é de um partido, e sim de todos os partidos, porque é da sociedade brasileira.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Isto não é o fim da imprensa



A imprensa, um dos pilares essenciais da comunicação e da democracia, é uma indústria como todas as outras – com a única diferença de que seu produto é a notícia. Muito se tem especulado sobre o futuro da imprensa na internet, que tirou das grandes empresas o monopólio dos meios de distribuição. Porém, uma indústria não deixa de existir quando mudam os meios de consumo. Deixa de existir, isso sim, quando deixa de fazer o seu produto.

Um exemplo de como isso está acontecendo. Há duas semanas, um amigo meu veio com a informação de que a prefeitura de São Sebastião tinha aprovado um plano diretor pelo qual seria derrubado um bom pedaço de Mata Atlântica em área de proteção ambiental na praia de Maresias, em São Paulo. Procurei um grande jornal de São Paulo que pudesse se interessar pela notícia. Um editor com quem entrei em contato me forneceu o e-mail de um segundo editor do mesmo jornal. Este me respondeu, dizendo que esse assunto era com uma terceira pessoa. Escrevi para o terceiro profissional. Esse sequer me respondeu.

Esse episódio me lembrou outro, de quando eu era editor de assuntos nacionais na revista Veja e recebemos um telefonema anônimo, dando conta de que um soldado da base militar de Anápolis estava sendo torturado. Por dever de ofício, mesmo sem a identificação do denunciante, fomos apurar. Uma hora depois do telefonema, eu enviava para lá Celson Masson, então repórter da sucursal de Brasília.

Celso voltou de Anápolis sem encontrar nada. Na semana seguinte, ainda com aquela história na cabeça, pedi autorização da direção da revista para fazer nova despesa: mandei o repórter para Anápolis novamente. Dessa vez, num golpe de sorte, perguntando na rua, Celso Masson achou o soldado. Esperou sair do hospital, onde havia sido isolado pela aeronáutica até que se aliviassem as marcas da tortura. Com a publicação da história, os chefes da base aérea passaram por um tribunal militar e foram afastados e punidos. Idem os policiais da delegacia civil que tinha sido utilizada para a tortura. E, com aquela reportagem que mostrava a sobrevivência da tortura mesmo depois do fim da ditadura, Celson Masson ganhou o prêmio Esso de jornalismo daquele ano.

Tudo isso por que atendemos e demos a devida atenção a um simples telefonema.

Faço essa comparação para dizer que o jornalismo tem acabado não por culpa da internet, mas das empresas e seus jornalistas, muitos dos quais esqueceram qual é o seu trabalho. Ouço muito de colegas veteranos que hoje os repórteres não saem do computador. Não vão aos lugares onde as coisas acontecem nem conhecem seus entrevistados pessoalmente. Basicamente, se faz muito pouca reportagem. Em consequência, os jornalistas pouco têm a apresentar além do que qualquer blogueiro diletante.

A indústria da imprensa no Brasil também tem deixado a desejar na solução de problemas em outras áreas do negócio. Reclama-se que a internet não dá dinheiro, especialmente porque as pessoas não estariam dispostas a pagar por conteúdo exclusivo na internet. Vale lembrar outra história do passado. Há cinquenta anos, quando Roberto Civita entendeu que precisava de anunciantes para sustentar suas revistas, e para lhes garantir circulação devia ter um sistema de assinaturas, teve de montar uma rede de distribuição de revistas impressas por todo o país.

Mais: precisou convencer as pessoas a pagar adiantado por um produto que ainda não tinham visto, e só receberiam ao longo do ano. Diante do colossal esforço empreendido pela Editora Abril para criar o sistema de assinatura da revista impressa, que fez da empresa líder absoluta do mercado, não me parece tão difícil convencer hoje leitores a fazer uma assinatura de jornal pela internet, onde se tem o retorno imediato do serviço, acesso ao banco de dados completo e não é preciso esperar pelo caminhão de revistas ou o jornaleiro.

Outro mito que se desenhou sobre o destino da imprensa é que a multiplicação de fontes de informação aumentou a concorrência – onde antes se recorria apenas a dois ou três veículos, hoje se pode utilizar uma multiplicidade de fontes que, entre outras coisas, replicam o conteúdo dos jornais sem pagar por ele. Isso se enfrenta, por um lado, com o combate à pirataria, impondo sanções. Por outro, fazendo um jornalismo sério, que leva um leitor a ser fiel à sua fonte de informações, aquela em que acredita e com a qual pode se identificar. Sim, a internet tem muita coisa - mas tem pouco jornalismo de verdade.

Não se trata de saudosismo, ou de comparar momentos diferentes. Nem é caso de reinventar nada. Os tempos mudam, sim, e a mudança tecnológica destes nossos tempos representa uma enorme reviravolta na comunicação. Porém, os princípios que regem o interesse das pessoas, a necessidade de informação confiável e as bases profissionais do jornalismo não mudaram. É preciso apenas recolocar a imprensa num ambiente que, em última análise, apenas eliminou o papel e facilitou o acesso à informação, nacionalizando e mesmo internacionalizando todos os veículos – o que, em vez de diminuir, só aumentou seu potencial.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O jornalismo à beira de um ataque de nervos



A demissão do jornalista Chico Sá da Folha de S. Paulo, que o teria proibido de escrever uma coluna apoiando a candidatura da presidente Dilma Rousseff, é um bom exemplo de um certo desvairio em que se encontra o mundo da comunicação na era digital. E não é o único.

Sá, que foi meu contemporâneo na revista Veja, num tempo em que ela era o mais prestigiado veículo nacional de imprensa, junto com o jornalismo da TV Globo, é um amigo, um homem correto e, acima de tudo, um sujeito divertido e agradável. Porém, parece que esqueceu, talvez atordoado pelos novos tempos, de velhas e conhecidas regras, consagradas entre os profissionais de imprensa: a busca da notícia, a isenção e o apartidarismo.

O mesmo tendencismo saiu como uma nota estridente na carreira da jornalista Laura Capriglione, também ex-colega minha em Veja, ex-repórter da Folha de S. Paulo, que em uma coluna anunciou o funeral de Marina Silva, por sua decisão de apoiar Aécio Neves no segundo turno. Como se Marina não tivesse o direito de escolher, bem como seus eleitores. Repórter sempre correta, brilhante apuradora, Laura até pode desvencilhar-se das regras do jornalismo, já que não está abrigada por um veículo de imprensa tradicional, e do princípio elementar de respeito à liberdade alheia. Porém, como profissional, perde o capital mais precioso do jornalista: a credibilidade.

Existem princípios que, mesmo com a mudança do papel impresso para o virtual, continuam válidos como esteio da profissão. Um profissional de imprensa não pode professar uma preferência política, assim como um cronista esportivo não deveria colocar à vista sua preferência por algum clube. Um jornalista se manifesta politicamente por meio do voto, que é secreto, como um cidadão qualquer.

A era da internet tem sufocado o bom jornalismo, e, pior, os bons jornalistas, que vêm confundindo seu dever de bem informar com o mar de opiniões erráticas e tendenciosas sobre tudo, que se dá com a possibilidade da “autopublicação” no mundo virtual. Hoje há na web tantos donos da verdade que se torna mais claro do que nunca o fato de que não há verdade, há somente versões sobre tudo. Especialmente quando até os profissionais de comunicação deixam de respeitar princípios elementares e a ética da profissão, talvez contaminados ou em competição com o comportamento geral.

Os veículos de imprensa se encontram em profunda crise, derivada da falência do antigo sistema de propagação. Antes detentores dos meios de produção, agora os jornais disputam espaço com qualquer um. Hoje, é possível acessar tanto um jornal que antes tinha grande circulação quanto o blog de um desconhecido, já que são ambos apenas uma página na internet, capturáveis na pesquisa randômica dos mecanismos de busca. Porém, não são ou não podem ser coisas iguais. O jornalismo se enfraquece ainda mais ao perder aquele que na realidade é seu bem mais precioso: a credibilidade, construída com a excelência e a postura de seus profissionais.

As redações de jornais e revistas diminuíram e hoje resta ali praticamente apenas o volume morto da imprensa. Boa parte dos bons profissionais saiu, sobretudo pelo fato de que os melhores em geral ganhavam também os maiores salários. A crise da imprensa ainda não terminou. Ela ainda não é capaz de se sustentar apenas com assinaturas pelo meio digital. E, enquanto não se sustentar por meio exclusivamente de seus leitores, a imprensa não é livre. E, se não é livre, igualmente tem dificuldade de se manter isenta. Quem a fortalece é o leitor. E o leitor tem preferido atirar na imprensa, em vez de contribuir.

Nos últimos tempos, multiplicaram-se em corrente aqueles que resolveram transformar os veículos de imprensa em saco de pancada. São os mesmos que agora glorificam o pedido de demissão de Xico, como um herói picaresco, porém sem entender bem o que está acontecendo. Veículos tradicionais, como a própria Veja, são abalroados cotidianamente por campanhas raivosas movidas com ajuda das redes virtuais.

Por mais erros que um veículo de imprensa possa cometer, incluindo dar espaço também para blogueiros tendenciosos, as pessoas parecem ter se esquecido de que foi em grande parte a essa instituição agora desprezada que se pode hoje desfrutar de tamanha liberdade. E que, se os meios de produção foram renovados, os princípios do jornalismo, cujo objetivo é oferecer informação isenta e de qualidade, no limite das possibilidades, ainda não são praticados em outro lugar.

A internet parece ser não o lugar da informação bem apurada, equilibrada e isenta, que ouve sempre o outro lado, e sim um espaço em que quer ganhar aquele que simplesmente grita mais. Para obter esse efeito tornou-se normal ofender e propagar mentiras, falsificações e ameaças. A ideia de que no futuro o ambiente da informação será apenas um cruzamento de opiniões, versões e interesses em disputa, um vale tudo da comunicação, sugere o fim do jornalismo. Mas não será, porque a resultante desse embate de opiniões é zero. Dele, nada sai de construtivo.

A eleição presidencial é um bom exemplo dessa algaravia em que todos são donos da verdade e se julgam no direito de constranger quem tem opiniões politicamente diversas. Ninguém muda realmente de opinião, mas sob a bandeira da liberdade proporcionada pelo meio digital instalou-se um patrulhamento jamais visto, superior ao da própria ditadura militar. Os patrulheiros querem ser os donos das receitas que salvarão o mundo, mas são, eles próprios, o mal maior.

A condenação pública da moça que xingou o goleiro na TV, e teve sua casa queimada, num processo de radicalização jamais visto, que beira a histeria coletiva, lembra que os jornalistas não podem se juntar à massa. Devem continuar cumprindo seu papel de apurar a notícia e informar de forma isenta. Se não existe a verdade, essa é a melhor forma de pelo menos nos aproximarmos dela. Os patrões da imprensa continuam no seu papel, e os conflitos entre jornalistas e os pontos de vista das empresas em que trabalham não são novidade. No final, acabaram sendo sempre salutares para a criação de uma imprensa melhor. O que não se pode é jogar fora o que une ambos: a defesa, acima de tudo, do interesse do leitor, o interesse público, que para o jornalista deve estar acima dos interesses, opiniões e mesmo convicções individuais.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Liberdade e igualdade: o legado para os nossos filhos


A inocência foi perdida, a minha, a do mundo. Não se pode reclamar da extinção daquele tempo que conhecemos, nem dizer que foi o tempo em que honestidade não era qualidade, porque ser desonesto era exceção. Em que ainda se podia brincar na rua, em que as crianças eram mais crianças, porque mal começava a aparecer a televisão e o que tínhamos para viver eram os brinquedos de sempre, a cabra-cega, o pega-pega, a bicicleta, os carrinhos de rolemã, a bola redonda que rolava nas ruas de terra.

Havia cachorros vadios nas ruas, nós os conhecíamos, lhes dávamos nomes e torcíamos contra a carrocinha quando ela aparecia para pegá-los. Dizia-se na época que cachorro apanhado virava sabão e odiávamos os funcionários da prefeitura que os levavam para que se perpetrasse tamanha maldade.

Hoje as crianças amadurecem cedo, a TV lhes dá informação como a adultos, os brinquedos digitais fazem com que pensem rápido, mas o mundo não está melhor. É preciso ainda sair na rua para ver os outros, brincar de cabra-cega, rodar pião, andar de bicicleta, ver o sol, lamber sorvete nas tardes de calor, tomar guaraná escondido, abraçar, beijar.

É preciso viver os tempos inocentes, preservá-los, porque eles não voltarão.

É preciso aprender as coisas do começo, sem pressa, a pressa talvez que eu tive, ao começar a escola antes dos outros, ao conviver com gente mais velha, sempre com pressa, pressa, pressa, para ver que chega a idade em que isso não faz mais sentido, as distâncias entre as pessoas diminuem, o tempo pára e desejamos que parasse de verdade.

É preciso resgatar para os adultos também um pouco dessa antiga inocência, em que não haviam diferenças homofóbicas, regionalistas ou raciais. Na minha infância, nas ruas da Casa Verde de meus avós, o “neguinho” que jogava bola na rua me chamava de “alemão” e brincávamos lado a lado, sem pensar em outras implicações, porque não havia necessidade de brigar pela igualdade.

A igualdade não vem das religiões, não vem do ensinamento dos pais, nem da escola. Antigamente ela vinha da realidade da rua, em que todas as crianças se misturavam, brincavam juntas num mundo onde realmente existia e que eu guardo até hoje como a igualdade fundamental do homem.

O Brasil que espera meu filho aprofundou as diferenças. Elas são sociais, fundadas no abismo criado entre ricos e pobres, são raciais, políticas e também sexuais e religiosas. Dividido vive o mundo entre judeus, católicos, evangélicos, protestantes, muçulmanos. Esqueceram que os homens são iguais, o que torna iguais todas as religiões, pois todas as pessoas precisam de um pouco de fé para viver. Têm de acreditar em algo para lutar contra as dificuldades. Enfim, para serem pessoas melhores.

É preciso não ser ingênuo para acreditar que todos pensam assim. Existem os insensatos, os radicais, os indiferentes, tão perigosos quanto os anteriores, os mal intencionados, os aproveitadores, os difamadores. Porém, quanto mais eles se fazem presentes, mais é necessário insistir, defender os bons princípios.

Não podemos perder nunca a capacidade de nos indignar contra as diferenças, contra a injustiça, contra o roubo, a desonestidade, a preguiça, a maldade, o vício, a intolerância. Sobretudo a intolerância, o maior mal que ameaça o mundo hoje em dia.

É necessário saber que toda violência vem desses pequenos males cotidianos, do pão que falta na mesa do pobre, da raiva originada no preconceito, do abandono da criança pela família, da incompreensão, de tudo aquilo que um homem pode deixar de ser quando deixa de ser criança.

Eu sou de uma geração que pacificou o Brasil, trouxemos a democracia de volta sem violência de qualquer espécie, buscamos a justiça social, criamos meios para alcançar o desenvolvimento econômico sustentado, uma geração voltada para o bem estar do brasileiro, que é dos mais pobres do planeta. Porém o mundo é maior que nós, ou vai sempre mais longe: para cada solução surgiram novos problemas. Temos que enfrentá-los. Para isso é preciso resgatar a coragem, a hombridade, a honradez, a persistência, as qualidades que fazem dos homens verdadeiros homens, perdidas numa era de desespero em que todos se voltam para o individualismo, o egoísmo e a amoralidade.

Nós precisamos ser firmes nas ações e no amor; temos que amar como devem amar os seres humanos, amar os outros acima de nós mesmos, e não negá-lo, porque aquilo que parece fraqueza, como o amor, é em geral a maior força.

Precisamos acreditar no futuro e trabalhar por ele.

Sermos amigos.

Sermos humildes na riqueza e orgulhosos na pobreza.

Sermos fortes na fraqueza e ternos em tempos duros.

Temos de ser parcimoniosos com nós mesmos e generosos com os outros.

Saber dividir e saber agregar.

Precisamos buscar sempre a sabedoria, o que implica em medir as decisões com inteligência e coração. E entender que a sabedoria é algo que nunca se alcança, ela sempre está mais adiante, por mais que caminhemos na sua direção.

Tudo isso digo a meu filho para que leia um dia, como um pequeno legado, e gostaria de estar muito tempo por aqui para guiá-lo nos seus pequenos passos, depois nos maiores, como meus pais fizeram comigo.

Mesmo que eu não tenha sido o melhor possível, esta é a hora em que eu compreendo mais o ciclo da vida e espero que a educação e os valores permitam povoar o mundo com gente melhor, inclusive, do que eu, do que nós.

Penso nisso quando penso em meu filho, e nos outros filhos que estão nascendo, à minha volta e no mundo inteiro, muitos dos quais perecerão em guerras, da fome, vítimas da violência, da intolerância e de tudo aquilo que não é mais possível, fruto de um mundo onde a tecnologia se desenvolveu atrofiando o ser humano.

PS: na foto, tirada na década de 1.960 por meu pai, numa viagem ao Rio Grande do Sul, estou com um grupo de crianças que conheci na roça gaúcha. Se não for possível saber a diferença, eu sou o que segura o gato.