segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Prêmio Benvirá: o processo de seleção

No dia 30 de novembro de 2012, à meia-noite, encerraram-se as inscrições para o segundo Prêmio Benvirá de Literatura. Como na primeira edição, um grande número de participantes deixou para enviar seus originais na última hora. Dos 1.505 inscritos, cerca de 400 fizeram o upload de seu trabalho nos momentos derradeiros.

Prêmios literários geram muita polêmica, como se viu nas duas últimas edições do Jabuti. A escolha do vencedor sempre tem um componente subjetivo, por mais que se queira otimizar os critérios. No caso do Jabuti, discutiu-se muito o regulamento em 2011 porque permitiu ao segundo colocado na categoria romance (Chico Buarque) participar da votação para o Livro do Ano, o prêmio final. Porém, esse não era nem é o maior problema do Jabuti. Diferentemente da escolha nas categorias, feita de forma mais técnica, por profissionais que precisam ler os livros para dar suas notas, o Livro do Ano é escolhido em votação dos membros da CBL. Profissionais que, embora conhecedores do mercado, em geral não leem os livros concorrentes - e votam invariavelmente naquilo que conhecem mais, ou por afinidade.

Em 2012, discutiu-se o resultado na categoria Romance porque um dos jurados utilizou-se da possibilidade de dar notas baixas aos livros que queria ver fora da disputa para favorecer os de sua preferência. O resultado, surgido dentro do regulamento, foi ratificado. O vencedor foi justamente Nihonjin, vencedor do primeiro Prêmio Benvirá. Para o livro do ano, votou-se em alguém mais conhecido dentro do mercado que o estreante Oscar Nakasato, de Nihonjin. Um resultado mais discutível que o primeiro, do corpo técnico. Estou certo de que os pares da CBL não leram Nihonjin para julgar e certamente foram influenciados pela repercussão na imprensa da polêmica em torno do chamado Jurado C.

Essas pressões em torno dos prêmios literários aumentam ainda mais a responsabilidade pelo Prêmio que instituímos na Editora Saraiva. Embora patrocinado por uma companhia privada, e não uma entidade, como é o caso do Jabuti, o Benvirá rapidamente ganhou espaço entre todos aqueles que desejam ter seu livro publicado por uma grande editora, e atrai também um bom número de autores consagrados, publicados por editoras de primeira linha, interessados não apenas no prêmio em dinheiro, como também na publicação. A vitória de Nihonjin na primeira edição sobre autores consagrados, assim como aconteceu no Jabuti, mostra que a qualidade do conteúdo tem prioridade sobre a assinatura do autor no nosso processo seletivo. Isso prova que o Prêmio busca de fato promover a literatura e dá real oportunidade a autores de qualidade ainda desconhecidos do mercado.

Acreditamos que a qualidade prevalece, mesmo no aspecto comercial. Esta é uma boa oportunidade para demolirmos de vez a falácia de que livro ruim vende mais, enquanto a literatura mais refinada (ou, como chamam a "ficção literária") tem necessariamente um público restrito. Cito alguns exemplos que derrubam facilmente esse mito. Garcia Marques é ótimo e vende bem. Vargas Llosa também. É esse o padrão que procuramos obter com o Prêmio e ele reveste toda a política editorial do selo Benvirá.

A seleção do Benvirá é feita pela equipe editorial de ficção e não ficção da Saraiva, que criteriosamente analisa o material enviado pelos participantes, a começar pela sinopse. Todos os originais são abertos e, se não são lidos por inteiro, recebem uma análise tida como suficiente para se verificar que o texto tem padrão para concorrer ao prêmio.

Muito a nosso favor conta o software que criamos para permitir a análise de um volume tão grande de originais. Cada obra tem uma página específica dentro do sistema, com os dados cadastrais do autor e sinopse. E pode ser classificada conforme o estágio em que se encontra: novo cadastro (ainda não examinado), em análise, pré-aprovada e aprovada. Depois da primeira peneirada, restaram cerca de 130 trabalhos "em análise". Na segunda, ficaram 25 originais considerados "pré-aprovados". Eu e mais dois editores, então, elaboramos, cada um, uma lista de dez. Confrontamos nossas listas. Os trabalhos mais votados formaram a nolista final com de "aprovados".

No início de janeiro, os trabalhos aprovados serão entregues, impressos, ao triunvirato que forma o júri, a título de indicação da equipe editorial. Os nomes dos integrantes do júri serão revelados somente com o do vencedor, para evitar qualquer tipo de interferência no processo de escolha, como acontece com o Jabuti. Os jurados podem pedir qualquer original inscrito, se quiserem - ou seja, podem solicitar um original que tenha ficado para trás na escolha dos editores. Não precisam necessariamente, portanto, ficar restritos às indicações feitas no processo seletivo da equipe editorial. Vão reunir-se em fevereiro, em data ainda a ser definida, e a portas fechadas, para poderem decidir, de forma independente, quem será o vencedor.

O vencedor do Benvirá será anunciado ainda em fevereiro, e o livro sairá junto com a premiação, em abril de 2013. Os originais selecionados pela equipe editorial têm boas chances de receber também propostas para publicação, como aconteceu na primeira edição, da qual saíram quatro novos autores, além de Nakasato. Por ter examinado a maioria dos originais, e todos os selecionados, posso dizer que o nível dos trabalhos melhorou muito da primeira para a segunda edição do prêmio. Ninguém sabe se o vencedor do Benvirá será um autor já publicado por outra editora ou não, nem se ganhará também o Jabuti. Mas que o Benvirá se tornou um evento importante na promoção da literatura nacional, está bastante claro.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O melhor do Brasil


Há alguns anos, escrevi para uma revista da Editora Abril um perfil de Gabriela Duarte, a atriz da TV Globo, que entrevistei no estúdio de seu marido, o fotógrafo Jairo Goldflus. Fiquei fascinado pela ampliações de retratos de gente famosa que ele fotografara e formavam uma enorme galeria - poucos brasileiros conhecidos não passaram por ali. Mais interessante, entre elas havia muitas fotos inéditas, que ele fazia somente para si mesmo e guardava como uma espécie de coleção de arte particular.

Não esqueci desse dia e, para minha surpresa, Jairo também não esqueceu. Sempre disse que havia gostado muito do que eu escrevera sobre sua mulher e que se tornara um leitor regular do que eu fazia. Escrever sobre gente exige certa perspicácia para entender rapidamente o ser humano, alcançar profundidade e evitar aquele tom de bajulação para o qual muitos se inclinam diante de gente considerada importante. É uma tarefa tão difícil quanto tirar algo de especial de um retrato às vezes simples, em que apenas se enquadra o rosto do personagem. Creio que, quando se trata de produzir uma obra que envolve ao mesmo tempo informação objetiva e um pouco de arte, eu e Jairo temos o mesmo desafio e a mesma abordagem.

Recentemente, Jairo me procurou, dizendo que decidira trazer à luz o seu tesouro até hoje reservado a poucos olhos. E que andava fazendo fotos exclusivas para publicar tudo em um livro. Queria que eu escrevesse a introdução, o que fiz com prazer. E o resultado é uma bela obra, intitulada "Público", que começa a chegar de forma seletiva às livrarias. Além do seu trabalho para a imprensa, que lhe permite galvanizar celebridades, Jairo empenhou-se em capturar figurinhas carimbadas, como Sebastião Salgado, mais acostumado a estar atrás das lentes que diante delas. E nos apresenta uma galeria de gente que faz o Brasil se tornar um país mais rico, interessante e importante. Um trabalho de arte que é, também, um registro histórico dos nossos tempos pelo que tem de melhor: as pessoas.

"Público" revela um talento singular: Jairo faz retratos simples se tornarem complexos, ao mesmo tempo em que, quando cria poses e interpretações, faz com que as coisas mais bizarras pareçam absolutamente simples, até naturais. Faz pensar sobre a natureza do ser humano e nosso capital fundamental, que o da mudança por meio da imaginação. Alguns podem dizer que, como autor da introdução do livro, eu tenda também ao tom bajulatório ou à falência da objetividade. Mas é difícil não ver o bem de um trabalho com arte pela arte - sobretudo em tempos nos quais o brasileiro e a sua cultura, tão dissolvidos no imenso redemoinho da indústria de massa global, carecem tanto de valorização.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Prêmio da Vida


Em 2008, o escritor paranaense Cristóvão Tezza ganhou todos os prêmios literários importantes, em especial o Jabuti, o São Paulo e o Brasil Telecom, que lhe renderam cerca de meio milhão de reais. Perguntado pela revista Serafina sobre o que mudara em sua vida, Tezza foi um tanto lacônico. “Eu me acostumei com a indiferença”, disse ele. “Anos e anos de escrever sem ser lido me deixaram com a casca grossa.”

Entre a glória do prêmio e o dinheiro, Tezza apreciou mais o dinheiro. Disse que deixaria de dar aulas na universidade, o que até então vinha sendo seu sustento, necessário para quem estava na literatura desde a década de 1960 sem jamais ter se tornado conhecido nacionalmente como agora. Com o salário do magistério é que ele sustentava o filho com síndrome de Down, então com 28 anos, e cuja história narrava em O Filho Eterno, o romance-documentário que o levou enfim ao sucesso literário.

Tezza mereceu o prêmio, não apenas pela luta incansável de anos, pela qualidade do texto, como pela coragem de trazer seus sentimentos mais íntimos num livro que fala de uma árdua mas rica experiência de vida. O fato de fazê-lo quase três décadas anos depois do nascimento do filho mostra quanto amadurecimento foi necessário para que pudesse ter a serenidade necessária ao tratamento do assunto.

O Filho Eterno simboliza muito do que é a literatura. Um homem tem um filho deficiente e somente ele sabe quanto lhe custaram as noites em claro, o medo, a luta pela sobrevivência, sem nunca abandonar o sonho de escrever romances, uma atividade que não lhe permitia sobreviver.

A sensação de que os prêmios não têm muita importância, para alguém como ele, vem muito do fato de que, na realidade, por melhores que sejam, livros são pequenos quando a vida é grande. Um leitor poderá comprar O Filho Eterno e ler tudo em duas horas, por um punhado de reais, mas para o autor aquelas linhas significam uma vida inteira.

Em duzentas páginas, Tezza concentrou seus sonhos, sua batalha, aquilo que de melhor e de pior toca um coração. Na vida real, o campo verdadeiro de batalha, a glória literária não vale nada. A vida é premiada de outras formas: com o amor e o reconhecimento da família e das pessoas queridas e, sobretudo, pelo orgulho de nós mesmos e do que fazemos. Se temos isso, não importa a resposta do mercado, que se nos dá o sucesso ou o fracasso, o prêmio ou a indiferença. A vida é o que vale.

Um romance feito apenas para ganhar um prêmio, sem nenhuma relação importante com aspirações e sentimentos do autor, está fadado a ser esquecido, mesmo com um destaque temporário. Por outro lado, um livro muito importante para quem o escreve continuará a sê-lo, ainda que passe completamente despercebido. Escrevemos antes de mais nada para nós mesmos, como prova Tezza ao fazer, em O Filho Eterno, um acerto de contas, um balanço de sua vida.

Ao ser sincero ao extremo, ele obteve, até, o sucesso de mercado. O Filho Eterno consagrou não um autor, mas uma pessoa cujo empenho de uma vida por outra culmina com a sua obra sintetizadora. Mais importante que a literatura é a relação que Tezza certamente tem com seu filho e processo pelo qual passou, relatado no livro: a surpresa, depois a rejeição, por fim a dedicação integral àquele ser humano dependente que transforma sua vida por completo, exigindo pesados sacrifícios, mas que eleva o ser humano pelo caminho da emoção.

O esforço humano, seja o de criar um filho deficiente, como batalhar por alguma coisa que valha a pena (mesmo que seja uma causa perdida) é que fazem um homem grande. Ainda que ele permaneça na obscuridade, como ainda há tantos por aí. Não importa o destino do romance e do escritor. O que importa é a experiência vivida e o que isso lhe deixou como bagagem.

A educação, como a medicina, é das difíceis e mais gratas atividades humanas. Trabalhar pela educação e um futuro melhor para jovens e o país é o que de melhor se pode fazer, depois da cura e da paternidade. Se Tezza conseguiu escrever o Filho Eterno cuidando de uma criança com limitações e dando aulas, não devia fazer algum dinheiro mudar sua vida. Pois o dinheiro acaba, mas a luta, esse prazer do bem realizado, continua sendo não apenas o fomento da boa literatura, como o principal objeto da vida.

Perto disso, como parecem pequenas todas as veleidades literárias.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O Jabuti e o Japonês


Na semana passada, recebi – não sem surpresa – a notícia de que Nihonjin, ganhador do primeiro Prêmio Benvirá de Literatura, tinha ganhado também o Jabuti de Melhor Romance de 2012. O que era para ser simplesmente uma notícia prazenteira veio embrulhada num caso rumoroso, provocado pela atitude do chamado Jurado C, cuja identidade hoje se conhece, e que deu notas de aluno malcomportado a gente como a presidente da Academia Brasileira de Letras na disputa final, como uma espécie de lição exemplar.

O que se seguiu foi ainda mais extraordinário: uma avalanche de despropósitos que cascatearam pela imprensa, alarmante tanto pelo que se disse como pelo que não se disse. Numa subversão da importância das coisas, a revelação dos meios pelos quais se chegou ao resultado se tornou mais relevante do que o prêmio em si. Eu, como editor do livro, procurei ficar de fora dessa discussão, por achar que prêmios deviam ser recebidos – não se deve contestar quando os perdemos por que não se pode tirar o mérito do vencedor, assim como também não deveríamos precisar nos defender quando ganhamos. Nessa edição do Jabuti, eu também perdi em outras categorias, onde achava ter até mais chance. Mas não acho que cabe contestar.

Ninguém duvida da lisura do Jabuti, ainda que se possa criticar a forma pela qual o Jurado C influi decisivamente no resultado. O Jabuti, se tem um pecado, é o excesso de transparência. É raro um corpo de jurados de um concurso qualquer onde se tenha unanimidade. Numa área em que escolhas são subjetivas, cada um em geral tem sua preferência e procura influenciar a decisão de modo a prevalecer seu ponto de vista. Ao divulgar as notas dos jurados, a organização do Jabuti, por vontade de transparência, acabou apenas por mostrar como as coisas são feitas por dentro – como as decisões são tomadas. E um prêmio é como a linguiça – talvez seja melhor não ver como aquilo é feito.

Quando organizamos na Saraiva o Prêmio Benvirá de literatura, um concurso de originais, estabelecemos que o vencedor não seria escolhido por mim ou mesmo pelo nosso corpo de editores, mas por um trio de jurados. Entre os 1.932 concorrentes, colaboramos com os jurados com a indicação feita de forma criteriosa de 10 originais, embora eles pudessem solicitar o exame de qualquer original ou autor inscrito. Em vez de um envelope fechado com notas, a decisão exigiu discussão. No dia marcado, os três se juntaram numa sala da Saraiva, a portas fechadas, com uma única recomendação, feita por mim: “Só saiam daí com um acordo”. Ninguém sabe o que foi discutido lá dentro. O que saiu, após cerca de 20 minutos de conversa, foi o nome de Nakasato como vencedor.

Eu acho esse método melhor, mas acho que não se pode condenar os critérios do Jabuti: são critérios. O prêmio de Melhor Romance sempre foi o alvo central de polêmicas. No ano passado, criticou-se a escolha de Chico Buarque para livro do ano, justamente pelas alegações de que, não tendo vencido em sua categoria, Leite Derramado não poderia ter sido livro do ano; disseram que Chico ganhara pela fama, não pelo conteúdo da obra, em si mesma. E por aí foi. Os critérios foram mudados. Dessa vez, um autor que é absoluta novidade, desconhecido do grande público, vem de Apucarana e abocanha o prêmio máximo da literatura no país. Em vez de dizerem que afinal surgiu uma novidade, como provavelmente quis o Jurado C, ou questionarem outras categorias, nas quais foram aplicadas as mesmas regras, multiplicaram-se as insinuações de que o Jabuti de romance não pode ir para um estreante.

Aqui, preciso defender o meu autor. Oscar Nakasato não é um estreante qualquer. Venceu um concurso de originais com outros 1931 concorrentes de todo o Brasil. Nunca um prêmio voltado para originais foi tão disputado. Entre os concorrentes, estavam autores consagrados, muitos publicados pelas melhores editoras do país, incluindo finalistas do próprio Jabuti em que ele se saiu também vencedor. Nakasato não fez nada para ganhar o prêmio Benvirá, além de inscrever-se no concurso, em 2010. Certamente não venceu graças ao nome ou à fama em outras áreas. Venceu, simplesmente, porque escreveu um livro extraordinário, até então desconhecido pelo mercado.

Tem gente que se esquece de que até Machado de Assis, um dia, foi um estreante. Para Nakasato, com certeza, foi muito mais difícil vencer o Prêmio Benvirá que o Jabuti. É muito maior a façanha de ser publicado pela primeira vez, entre tanta gente que escreve, ainda mais num prêmio tão disputado, que a de um autor publicado ganhar o Jabuti. Com o prêmio máximo da literatura brasileira seguindo-se ao outro, o professor de português de Apucarana se tornou uma espécie de Lula da literatura, saindo do nada para chegar a um lugar onde jamais sequer poderia ter imaginado - uma dessas trajetórias extraordinárias que parecem um conto de fadas. E, assim como Lula, tornou-se uma vítima de preconceito. Se até Chico é apedrejado em praça pública por conta do Jabuti, o que dizer de um autor interiorano com a discreta alma dos nipônicos.

Com uma nota 9,3 de média entre os jurados, Nakasato poderia ter ganho o prêmio sem a ação heterodoxa do Jurado C, ao rebaixar drasticamente a nota dos candidatos ao prêmio mais conhecidos . Nenhuma discussão diminui as qualidades do livro. Com essa recente mania de voltar-se contra tudo, e desprezar o talento nacional, o Brasil precisa de um pouco mais de respeito. E abrir os olhos para uma nova realidade. O Prêmio Benvirá, que mobilizou durante meses os interessados em literatura e tornou-se um marco com seu número recorde de inscrições, revela que existe um imenso potencial ainda inexplorado no mercado, e que começa a se manifestar espontaneamente, graças à liberdade de expressão e de publicação que a internet permite. Velhos valores estão sendo subvertidos. E a antiga elite do mundo do livro resiste ao inevitável, pois no futuro não serão críticos ou editores os agentes definidores do que é ou não é bom. O mercado livre virtual já começou a produzir seus próprios fenômenos. Dá acesso a um professor do interior do Paraná a todo o mercado do livro, do Brasil à Pomerânia. Preparem-se para mais surpresas.

Enquanto a imprensa se ocupava de descobrir a identidade do Jurado C, deixou de ver outras coisas relevantes. Pouca gente sabe, por exemplo, que a Editora Saraiva, por meio do Prêmio Benvirá, distribuiu gratuitamente 25.000 exemplares de Nihonjin a bibliotecas e docentes, um esforço para disseminar a leitura. E isso foi possível mediante o patrocínio da International Paper – um esforço pela educação onde não entrou, portanto, um centavo do governo.

O Prêmio Jabuti, como em outros anos, presta mais uma vez um serviço inestimável à cultura brasileira. Lembra, em primeiro lugar, que é apenas um Prêmio, numa área em que duas opiniões de pessoas diferentes nunca coincidem; não pode nem quer ter, portanto, a pretensão de ser a verdade final sobre nada. Sua função, isto sim, e bem cumprida, é provocar o debate e chamar a atenção para uma área que se manteria, sem ele, inerme. Caberá aos leitores agora conferir as qualidades do livro, saindo da sua posição de conforto ou indiferença.

O episódio nos oferece, desta vez, ainda mais - outro serviço prestado pelo Jabuti para a sociedade brasileira. Ele ajuda a derrubar preconceitos, tanto os que fizeram os protestos contra Chico Buarque no ano passado, quanto os que este ano poderiam desmerecer um verdadeiro talento.

Gostaria de dar os parabéns à Editora Saraiva pelo apoio que deu primeiro à ideia do Prêmio Benvirá e, agora, ao seu seguimento. Computamos até hoje mais de 600 inscrições para sua segunda edição – o prazo vai até 30 de novembro, dois dias depois da festa da entrega do Jabuti. Nossa experiência é que a maior quantidade de inscrições acontece no último dia – até mesmo nas últimas horas. Os participantes gastam todo o tempo possível para trabalhar em seus originais e entregar o que podem fazer de melhor. Não se pode prometer que o próximo vencedor do Prêmio Benvirá levará também um Jabuti. Talvez isso não aconteça nunca mais. Porém, sem dúvida o Prêmio, desde sua primeira edição, se tornou também algo importante no cenário literário e cultural brasileiro – e uma esperança para outros Nakasatos à espera da chance de suas vidas.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Na intimidade de J.R.Duran



Como editor, lanço agora Cadernos de Viagem, um belo livro que registra os diários do fotógrafo J.R.Duran, um globetrotter por conta do trabalho para revistas masculinas e de moda, além da publicidade. Duran tem, entre seus muitos talentos, o do desenho – e, por um capricho pessoal, gosta de fazer esquetes dos quartos de hotel onde se hospeda, que depois transforma em aquarelas. Com seus textos e essas imagens, Cadernos de Viagem forma não apenas um refinado guia de hotéis, como um livro de memória afetiva, observação rica sobre o mundo e permite entrar na intimidade de um artista.

Para mim, lançar este livro tem um gosto ainda mais especial. Duran é um daqueles personagens que encontramos várias vezes ao longo da vida, em situações que são também um retrato de cada tempo e de nós mesmos, ilustrados hoje na aquarela da memória. A primeira vez em que ouvi falar dele foi no início da década de 1980, quando Duran tinha um estúdio na Avenida Pacaembu e já era o fotógrafo mais quente da publicidade no Brasil. Eu era um universitário durango, que tomava o Vila Nilo lotado para atravessar a cidade pendurado de fora do ônibus, de modo a pular no ponto final sem passar pela catraca e pagar pela passagem. Fazia duas faculdades, Jornalismo de manhã e Ciências Sociais à tarde, ambas na USP, e precisava de dinheiro, mas não tinha tempo para trabalhar. Apelei, na época, para meu único capital: a juventude. E tentei trabalhar como figurante de comerciais de televisão e modelo publicitário. Um tipo de bico que, quando eu dava sorte, me permitia com um dia de trabalho passar o restante do mês somente estudando.

Não era fácil, claro. Eu era um Zé Ninguém. O agente me chamava ao telefone para fazer testes, eu entrava na fila e depois de fazer alguma pose aguardava para saber se o trabalho era meu – uma chance em 100. Ir ao estúdio de Duran para um teste foi um dos meus primeiros chamados. Fiquei numa fila tão grande que dobrava o quarteirão. Sentado no meio-fio, depois de meia hora, desisti – nem cheguei a entrar na casa. Duran, para mim, ficou então como uma espécie de símbolo de pessoa inatingível, a estrela dentro de uma fábrica onde gente como eu, pelo menos naquela época, nem conseguia passar da porta.

Eu era persistente, e comecei a arrumar alguns trabalhos. O primeiro foi o de pedestre, uma figuração num comercial da Caixa Econômica, em que um sujeito recebia a notícia de que tinha ganho na Loteria e saía dando cambalhotas de ginasta pela rua. Depois fiz comercial da cueca Zorba, fui passageiro do primeiro looping do Playcenter, da cera Grand Prix, sorri diante da câmera dizendo “menta!” para o dentifrício da Colgate, o que me rendeu muita gozação. Até fazer uma série de comerciais de eletrodomésticos para a Brastemp, produzido pela já falecida Denison Propaganda, na qual eu faria o papel de namorado da filha de um sujeito cujo reino doméstico girava em torno do fogão, da geladeira e da máquina de lavar.

Interpretava, nos comerciais, o jovem Caco, namorado da personagem Luciana, feito por Sandra Annenberg, essa mesma que hoje é apresentadora de telejornal, e na época ainda tentava decolar na carreira de atriz. Lembro de uma bela tarde que passei com ela na casa dos Braga, construída dentro do estúdio, fazendo um filme entre borrifos de fumaça que nos deixavam às cegas (o diretor, Clemente, acreditava que a técnica dava mais brilho a tudo, assim como enchera a casa de plantas - homenagem, ironizava, aos filmes de Walter Hugo Khouri). O humor do episódio consistia em derramar uma balde d'água sobre a minha cabeça quando eu abria uma porta (estripulia do irmãozinho da namorada). E o pai da moça me apanhava em casa sem roupa, u melhor, com um roupão que levava as iniciais dele. Naquele dia, perdi a conta de quantos baldes d' água levei na cabeça. Atrás da casa cenográfica, uma passadeira me esperava depois de cada caldo. Tratava de passar a muda de roupa para que eu pudesse tomar um banho atrás do outro até a cena ficar "perfeita".

Além do filme na TV, que me garantia um ano de contrato de exclusividade e com o qual eu poderia terminar a universidade sem precisar trabalhar, fui enviado para fazer uma foto de revista. Passei duas horas dentro de um estúdio, com Sandra virando e desvirando no meu colo, enquanto eu me maravilhava com outra coisa. O fotógrafo era J.R. Duran! É verdade que eu mal o vi: depois que tudo estava preparado – o cenário, a luz, nós – ele entrou, mal nos cumprimentou, fotografou dando ordens no seu português com sotaque catalão, áspero e telegráfico, e foi embora. Porém, algo importante mudara. Ele ainda parecia um sujeito inacessível, mas daquela vez eu estava do lado de dentro do estúdio.


Tão logo me formei, já com o contrato encerrado, me dediquei exclusivamente ao jornalismo, e foi como repórter, muitos anos depois, que encontrei Duran pela segunda vez. Ele passara um período em Nova York e retornava ao Brasil com um livro fotográfico da cidade. Editor e colunista da revista VIP, fui incumbido de escrever sobre ele. Mais uma porta se abriu: dessa vez, a de sua casa. Recém-chegado a São Paulo, Duran estava morando em um apartamento na Av. São Luiz, com uma enorme mesa onde esparramou suas fotos e falou sobre sua experiência nos Estados Unidos. Escrevi sobre o livro e aquele momento de Duran, refletido nas fotos em branco e preto na megalópole que sabe exilar estrangeiros como ninguém – e dei ao texto o titulo de “Passageiro da solidão”. Em Nova York, Duran havia descoberto algo: cidadão do mundo, ele era, antes de mais nada, brasileiro.

Como editor de revistas de estilo, a começar pela própria VIP, voltei a falar com Duran muitas vezes depois, dessa vez na condição de contratante – ele faria para mim diversas reportagens de moda. Ficamos amigos. Em uma de nossas conversas, ele me mostrou seus apontamentos de viagem – uns caderninhos horizontais, onde rafiava os quartos de hotel, cheios de anotações em sua letra muito pessoal, pois Duran só escreve com capitulares. Eu achava aquilo coisa de outro tempo, o tempo maravilhoso em que os antigos viajantes não tinham, justamente, a máquina fotográfica e dependiam de outras habilidades para fazer retratos. Durante anos, insisti para que ele me cedesse aquele material, que eu poderia publicar de alguma forma em revista. Aquilo, porém, era feito de substância muito pessoal. Além dos hotéis e dos lugares aonde ia, as anotações eram pensamentos, seus assuntos íntimos, ou contavam sua convivência com celebridades ou as mulheres que ele literalmente despia a trabalho.

Quando me tornei editor de livros, há três anos, e precisava de conteúdo, uma das primeiras ideias que tive foi a de procurar J.R.Duran. Fui ao seu estúdio, na Vila Madalena, no qual ele usa como escritório uma sala ampla, decorada com objetos que recolhe de viagem, de um cavaquinho a um crânio humano, passando por livros de todo tipo - de romances policiais B, que ele adora (e também escreve) a livros de arte. Duran mostrou resistência, como sempre. Dessa vez, seu receio era outro: a inveja. Muita gente acha que Duran tem o melhor emprego do mundo: tira a roupa das mulheres, ganha dinheiro, viaja e vive à larga. Só faltava agora querer mostrar que também escreve bem, e mais: pinta. Quanta presunção. "Pra compensar, então, a gente espalha que você tem pinto pequeno!", sugeri. Ele riu, claro, e assim eu o convenci afinal a publicar os seus cadernos.

No lugar do amigo, passei a conviver novamente com o profissional meticuloso. Assim que concordou com a ideia, Duran se entregou ao trabalho da única forma que ele sabe fazer. Durante dois anos, foi recolhendo cadernos perdidos, e trabalhou para terminar aqueles desenhos que ainda não tinham sido pintados. Passou todo o texto anotado a mão para computador e o revisou. Optou corajosamente por manter as anotações pessoais e as referências a pessoas verdadeiras, identificadas no livro apenas pelas iniciais, para não causar eventuais constrangimentos. E, como profissional das artes visuais, acompanhou todo o processo de produção do livro, com seu detalhismo meio rabugento e questionador, ao ponto do irritante. Porém, fez com que eu entendesse a razão pela qual ele é, há tanto tempo, o maior fotógrafo do Brasil: a sensibilidade artística aliada a um perfeccionismo tão obsessivo que mereceria umas sessões de psicanálise.

O resultado está aí: um livro impecável, único, de um talento brasileiro. E um editor feliz por chegar a mais esta etapa da vida com outro capital, além da juventude (ainda): o tempo e os inesperados companheiros de jornada que ele traz.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Como começa um escritor


Agora, como autor, e também como editor, vejo todos aqueles que ingressam com seus originais no Prêmio Benvirá de Literatura, muitos deles com o mesmo sonho dos meus 17 anos, quando vivia fascinado com as histórias de meu avô materno, que eu achava dignas de um romance, e alimentava a ideia de viver de escrever. Fico satisfeito de poder, com o incentivo do prêmio, ajudar a dar uma oportunidade a gente como eu de realizar esse sonho, encontrar talvez uma profissão e, sobretudo, tendo sucesso financeiro ou não, ser feliz fazendo algo pessoalmente tão importante.

Muita gente que tem me encontrado pede um conselho. Nenhum escritor dá conselhos a outro, e editores também não o fazem, porque o jeito em que se começa nesse negócio é tão individual quanto cada ser humano. É difícil encontrar alguém que te ajude de fato ou te aponte um bom caminho. Eu mesmo estou nisso meio por obra do acaso, algo tão difícil quanto ganhar um prêmio literário.

Pensando bem, minto: eu tive alguém que me ajudou, ou que eu poderia chamar de professor, embora tenha mais me desencaminhado que encaminhado para alguma coisa. Falo de Walter George Durst, dramaturgo celebrizado por suas adaptações para TV de grandes romances brasileiros, como Grande Sertão: Veredas, e a primeira versão de Gabriela, Cravo e Canela, com Sônia Braga no papel principal - um grande sucesso na época.

Durst era pai de um colega de classe, Marcelo Durst, com quem eu cursava por coincidência duas faculdades, a de Comunicação e a de Ciências Sociais, ambas na USP. Eu era um estudante duro e não perdia oportunidade de filar a bóia na casa de Durst, pai, não apenas para escapar do bandejão desestimulante do Crusp, o restaurante da Universidade, como para conviver com aquele homem que admiravelmente vivia somente de escrever.

Aos meus olhos ele levava não a vida que pediu a Deus, mas a vida que Deus pediu. Tinha uma bela casa numa rua arborizada, na vizinhança da USP, e trabalhava numa edícula recheada de livros e pôsteres de filmes brasileiros, alguns deles estrelados por sua mulher, Barbara Fazio, na época já uma senhora, ser deixar de ser bela. Vivendo entre livros, e cheio de tempo livre para amadurecer as ideias, Durst só tinha um compromisso, que era sagrado. Ia semanalmente à feira livre, não para fazer compras, mas escutar. Queria saber o que o povo estava falando, o que gostava, sentir a temperatura do que sabia ser seu público.

Naquela época, Durst era o único escritor de novelas da TV Globo que morava em São Paulo, e começou a formar um grupo de jovens autores, início de um núcleo de dramaturgia na cidade, que trabalharia para a TV Globo sob seu comando. Vínhamos conversando bastante sobre a arte de escrever, naqueles momentos após o almoço, em que o mundo parecia parar para o café. Eu me sentava com ele em sua sala de trabalho, onde havia um par de poltronas pequenas, e ali extraía dele tudo o que queria saber.

Formado na escola do cinema, Durst tinha em mente que o fundamento de qualquer obra de ficção era a criação de um conflito, essência não apenas da novela como de todo trabalho literário. Essa tensão era para ele o gerador de interesse contínuo, e não apenas momentâneo, na obra ficcional, de modo a fazer com que o espectador (ou o leitor, no caso do romance) permanecesse entretido até o desenlace.

Foi o único profissional das letras que me deu algum alento - e também conselhos. "Esse é um mercado muito pequeno, isto é, para pouca gente", dizia ele. "Mas, se você for bem, ficará rico". Naquela época, eu começara já a trabalhar como jornalista na revista Veja, onde ganhava um salário bastante razoável para alguém com pouco mais de vinte anos. E completou. "Vou te convidar para participar do núcleo de roteiristas, mas não largue seu emprego. Ainda."

O primeiro trabalho do núcleo paulista de dramaturgia da TV Globo foi uma série para as cinco da tarde - episódios de uma hora, que deveriam ter começo, meio e fim. Eram voltados para um público de mais idade, que segundo pesquisas era a maior audiência do horário. Durst pediu então a cada um uma sinopse, que mais tarde seria desenvolvida para se transformar em episódio. Cada autor entraria regularmente com um episódio inteiramente seu, numa sistema de rodízio.

Por aqueles dias, eu havia recebido na redação de Veja, dentro de um envelope meio sujo, uma longa carta de um executivo que soava em desespero. Narrava suas desventuras desde um acidente: batera o carro no veículo de um casal de velhinhos, que o ameaçara de processo e depois passara a chantageá-lo. Numa sequência kafkiana, o missivista dizia que tinha perdido em sequência o seu emprego, o dinheiro e, ao cabo, a mulher. Eu não via nenhuma reportagem a fazer com aquela história, mas achei-a de primeira mão para produzir o meu primeiro episódio da Série Brasileira.

Entreguei a sinopse a Durst, que a remeteu para avaliação da Globo no Rio de Janeiro. Chamou-me em sua casa para dar o retorno. "Olha, eles adoraram a história", disse ele. "Mas pediram para você tirar essa persona sacana dos velhinhos. Como o público é idoso, eles acham que isso pode indispor o telespectador com a série."

Protestei, claro. Se os velhinhos da história fossem bonzinhos, ela perderia completamente a graça, que estava justamente aí.

Por coincidência, naquela mesma semana, devido a uma série de mudanças nos quadros de Veja, recebi a notícia de que seria promovido a editor de assuntos nacionais da revista. Era um cargo importante, sobretudo para alguém tão jovem, e chave para a publicação. Eu cuidaria de editar todas as reportagens de alcance nacional, sobretudo da política, numa época em que o Brasil estava em plena ebulição, saindo de uma pesada crise econômica e entrando na reta para a primeira eleição presidencial em 30 anos, depois de uma angustiante e longa transição da ditadura militar.

Pensei no conselho de Durst ("não largue seu emprego"), e na frustração de, na TV, não poder escrever a história como eu desejava, mas moldado pela opinião dos executivos e seus charts do Ibope. De certa forma, mesmo tão jovem, eu partilhava da velha escola de Durst, que se valia muito mais de seus ouvidos, sua "pesquisa qualitativa" na feira de rua, de onde também vem a matéria bruta ficcional - a experiência humana, o contato pessoal, a emoção. Liguei para ele, agradeci, expliquei que com aquele convite de trabalho não poderia me dividir mais com o núcleo de dramaturgia e que tinha feito a minha opção pelo emprego.

Ele entendeu - e foi a última vez que falei com Walter George Durst, falecido há alguns anos. Muitas vezes pensei se deveria ter me arrependido dessa decisão, se não teria sido mais feliz (ou ficado rico) escrevendo para a TV. Mas a verdade é que, por muito tempo, não pensei mais em escrever ficção de qualquer espécie, dedicado como estava ao jornalismo. E voltaria a escrever ficção, novamente, por mero acaso - ou melhor, por uma indicação de outro dramaturgo, que, como nas melhores novelas, viria a ser o autor da segunda versão para a TV de Gabriela, Cravo e Canela.

Depois de Veja, trabalhei como editor de VIP, na época então um suplemento de Exame, onde dei emprego a certo dramaturgo que, depois de algumas tentativas não muito bem sucedidas, decidira voltar ao jornalismo para ganhar a vida até poder se recolocar na profissão com a qual sempre sonhara. Walcyr Carrasco, que já trabalhara em Veja, aceitou um modesto cargo de editor assistente, e escrevia reportagens de comportamento, o que ele fazia muito bem, devido à sua sensibilidade para abordar as pessoas e captar nuances - uma qualidade do jornalista que tem talento literário.

Walcyr escrevera alguns livros infantis e, quando sua editora, Maristela Petrilli, lhe pediu indicação de um autor, apontou meu nome. Levei uma hora para escrever Liberdade para todos, uma obra que, ao longo de uma década, seria adotada em muitas escolas e venderia mais de 150 mil exemplares. Era um livro singelo, mas que me despertou a vontade novamente de escrever ficção, e me ajudou a lembrar do que realmente os livros eram feitos - não de inteligência, mas de matéria emocional. E que o trabalho do ficcionista é ajudar os outros a trilhar caminhos, apresentando a si mesmo e suas experiências como uma espécie de laboratório.

Retomei o projeto de escrever o livro inspirado nas histórias de meu avô, que nunca foram além de uma transcrição de velhas fitas que eu guardava já como lembrança. Vinte anos depois, o romance finalmente tomou forma, diariamente, entre as cinco e as 9 da manhã, quando eu saía para o trabalho.

Naquela época, a mesma editora que lançara meu livro infantil incursionava na ficção adulta e me pediu os originais. tempos depois, voltou a resposta. A editora preferira me enviar o longo texto do parecerista, em que ele me chamava de "o Dostoiévski brasileiro", e acrescentava que, se vivesse no mundo contemporâneo, Dostoiévski teria seus livros recusado nas editoras, porque eram muito grandes. Por fim, recomendava que eu cortasse o texto pela metade, para que pudesse ser publicado com fins comerciais.

Aquilo, para mim, era um não - eu preferia procurar outra editora. E foi o que fiz. Junto com um livro do editor de moda Fernando de Barros, que eu ajudara como colaborador a se tornar um best seller (fazendo com ele "Elegância,", um guia de moda masculina), ofereci meu manuscrito à Siciliano. O editor, Pedro Paulo Sena Madureira, olhou-o como todo os editores - com um certo ceticismo, ou desdém. Porém, me conhecia como jornalista, e se viu obrigado a pelo menos ler algumas páginas.

Tempos depois, Pedro Paulo me anunciou que o livro seria publicado. Lera mais do que algumas páginas - bebera tudo. "Realmente o livro é grande", disse ele. "Mas o que é o seu defeito, é também sua qualidade." Surpreendentemente, o livro de Fernando de Barros venderia menos do que a editora esperava. E meu romance, do qual não se esperava nada, foi para a segunda tiragem e mais tarde para uma segunda edição. Logo eu publicaria na Siciliano meu segundo romance, O Homem Que Falava com Deus, que teria sua primeira reimpressão ainda antes da noite de autógrafos. Eu começara, dessa forma, uma carreira paralela, como sugerira Durst - até me sentir confiante o suficiente para deixar, enfim, meus empregos e viver, como vivi oito anos, apenas de escrever livros.

Hoje, Walcyr Carrasco desfruta o sucesso da segunda minissérie Gabriela. Por indicação dele, novamente, mudei-me há alguns anos para a Objetiva, quando a Siciliano foi tragada por dificuldades financeiras, junto com sua rede de livrarias. Certa vez, Walcyr me disse que era meu amigo porque sabia que eu não tinha inveja dele - algo raro entre intelectuais das letras. De fato. Eu não trocaria sequer um dos meus livros por todas as novelas de Walcyr, mesmo que não ganhasse dinheiro algum com eles.

Não é que eu desgoste das novelas de Walcyr, pelo contrário. Ele é um mestre no que faz. Só que eu, revendo minha trajetória desde as conversas com Durst, sei mais do que nunca que meu negócio é o livro. Não há maior recompensa do que escrever a sua própria história, aquilo que você quer, olhando para a rua, e não os charts dos executivos. Funciona. Descobri, como Durst, que fazendo isso a gente obtém a maior das recompensas, que é saber que a gente escreve sempre tem ressonância. Há gente que gosta, que compra, e ainda agradece por isso. O que faz de mim, dessa forma, entre todos, o mais grato.









quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Prêmio Benvirá: como se tornar um escritor de verdade


Raphael Montes é um moleque de sorte.

Há dois anos, quando abrimos o primeiro Prêmio Benvirá de Literatura, e recebemos 1932 inscrições, achamos um texto que chamava a atenção por duas razões. A primeira: era um livro policial denso, consistente, que mergulhava no universo da juventude carioca, do tipo que entretém e faz pensar, uma combinação excelente para uma obra de ficção. Selecionado entre os dez finalistas, recebeu elogios de todos os jurados, especialmente do crítico e jornalista Nelson de Oliveira. "Normalmente não gosto muito de policial, ainda mais para prêmio", disse ele, na época. "Mas gostei muito deste - eu o consideraria."

A segunda coisa que chamou a atenção foi a quilometragem do autor: Raphael, que mentia a idade, tinha apenas 19 anos. Começara a escrever Suicidas três anos antes, com somente 16.

Suicidas não ganhou, e Raphael achou que estava fora do baralho. Entregou os originais para uma pequena editora. Tinha já um contrato assinado. Quando recebeu um telefonema meu, interessado em publicar o livro pela Saraiva, selo Benvirá, mudou de ideia na hora. Conversou com o editor, desfez o contrato. "Ele entendeu", me contou, depois.

Por alguns meses, enquanto preparávamos os originais de Suicidas, eu costumava brincar na Editora que ele se tornara o autor não publicado mais famoso do Brasil. Estudante de Direito, a um semestre de completar o curso, no Facebook e aonde ia, Raphael se autointitulava "escritor". E se enfiava em cursos, seminários, até na imprensa. Foi entrevistado como "autor" pelo jornal O Globo, durante a Bienal do Rio. Foi convidado para dividir mesa de debates literários com autores de renome, já publicados por grandes editoras. Um prodígio da vontade.

Raphael deu sorte, mas também porque estava em todo lugar. Há dois anos, apareceu na minha frente em Paraty, durante a Flip, e se apresentou. Rapaz simpático, falante, acabou entrando para o grupo que estava lá reunido - os autores da Benvirá, Luis Felipe Pondé, o mexicano Enrique Krauze, a romancista argentina Pola Oloixarac, a "musa' do evento. Conviveu com os autores na intimidade, nos jantares que promovemos na casa de Benoir Gautier, um amigo querido, e conheceu por dentro o clima dos grandes eventos literários. Me pediu um conselho. E eu dei: "Forme-se e não largue seu emprego - por enquanto".

Lógico que a primeira coisa que Raphael fez, ao se ver um autor prestes a ser publicado, foi contrariar meu primeiro e único conselho: largou o emprego (na verdade, um estágio de Direito), com o pretexto de ir de novo à Flip, este ano. Talentoso, ousado, a ponto de ser meio abusado, lá estava ele de novo, no meio da massa de Paraty, com suas bermudas balançando ao redor dos cambitos de garoto. Teimoso, o "escritor".

No Rio de Janeiro, quando lancei um livro do hoje ministro da Defesa, Celso Amorim (Conversas com jovens diplomatas"), quem estava lá, na sessão de autógrafos? Raphael Montes. Queria ver o lançamento de perto, sentir, cheirar, estar com as pessoas que faziam tudo acontecer. E a conversa boa atravessou um jantar e foi parar alta madrugada na casa de seus pais, em Copacabana, onde ele nos apresentou a coleção completa das obras de Conan Doyle que é o orgulho da biblioteca em seu quarto. Depois foi abrir a adega de cachaças do pai - um colecionador do destilado, que felizmente dormia.

Raphael Montes não deixou de ser garoto. Enquanto Suicidas entrava na gráfica, ele estava na Disneylândia, fazendo poses ao lado do Mickey e do castelo da Cinderela, postados no Facebook. Ontem, em uma Saraiva do Rio de Janeiro, foi sua vez de estar sentado à mesa autografando seu romance. Estavam lá amigos, professores desde o jardim da infância, membros do Clube da Cachaça, colegas do karaokê, mestres de Direito e uma porção de gente que comprou o livro e, para sua surpresa, ele nem conhecia.

Ontem, afinal, Raphael Montes se tornou um escritor de verdade. Disse ele no Facebook que foi a melhor noite de sua vida. Espero que tenha muito disso pela frente. E que não largue seu novo emprego. Ainda.