terça-feira, 16 de junho de 2009

O valor dos romances


Milton Hatoum no Autores e Ideias

Diante da platéia no auditório envidraçado onde uma vez por mês acontece o Autores e Ideias, entrevista com a participação do público que conduzo da Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim, o romancista Milton Hatoum não perdeu sua fleuma aristocrática. O manauara de 57 anos, com dois prêmios Jabuti na bagagem, é uma estrela do romance brasileiro há já uma década. Nesse período, acostumou-se a platéias, como me contara pouco antes, no café da livraria, em uma conversa preliminar.


O Autores e Ideias tem a finalidade de dar destaque para quem tem algo importante a dizer no Brasil hoje – e Hatoum é uma dessas pessoas. Notabilizado por seus romances, pouca gente ainda conhece sua vida, o trabalho por trás de sua obra e suas idéias, algumas delas apenas permeadas em seus livros. Como os poemas que ele gosta de disfarçar dentro de sua prosa. “O romancista é um poeta frustrado”, diz.


A literatura de Hatoum é colorida pelas memórias de descendente de libanês no universo da antiga Manaus em seus tempos provincianos. A isso, ele agrega um pouco das lendas indígenas, mitologia que empresta um certo toque mágico ao cotidiano, como no mais recente de seus romances, Orfãos do Eldorado, escrito originalmente para uma editora inglesa dentro de uma coleção dedicadas a mitos.


Os romances de Hatoum parecem monotemáticos, talvez fruto de uma obsessão. Seu desfecho às vezes pode ser previsível e a trama pouco engenhosa ou truncada, como em Cinzas do Norte, em que a fluidez da leitura é interrompida pelas memórias do Tio Ran, um personagem também recorrente em sua obra. Hatoum enfrenta bem a crítica. Acredita que cada leitor vê suas qualidades e defeitos de uma maneira muito particular – o que desagrada a uns, agrada a outros. E tem um trunfo inquestionável. Muito mais que na trama, é na maneira como ele escreve que reside seu magnetismo. “O que mais atrai num romance é a linguagem”, acredita.


Hatoum trabalha numa edícula, nos fundos do gabinete de um dentista. O barulho da broca diante de bocas abertas lhe dá a certeza aliviadora de que há gente no mundo em pior situação que a do romancista quando escreve. “Escrever não me faz sofrer”, disse ele. “Dá trabalho, nos leva ao limite, mas é o que eu sempre quis fazer na vida. Eu sofro, isto sim, quando vejo uma criança pedindo dinheiro no sinal de trânsito.”


Ex-professor de literatura em Manaus, que morou quatro anos na França e chegou a ter a “pretensão” de escrever em francês, Hatoum é um crítico da vida contemporânea, sobretudo das grandes urbes que se transformaram em imensas zonas de pobreza. A começar pela sua cidade natal, hoje bastante diferente da Manaus de sua infância e que agora existe somente na sua literatura. Hatoum alinha-se entre os céticos, desanimado com os rumos da “selvageria” da qual para ele não escapam sequer os países europeus, mas não deixa de fazer o seu papel. “Para mim, o mais importante nos livros são os valores que neles expressamos”, afirma.


Hatoum ganhou um prêmio Jabuti logo em seu romance de estréia, Relato de Um Certo Oriente, que no entanto vendeu “apenas 3.000 exemplares” – número que, no Brasil, já faz qualquer romance ser considerado um sucesso, embora tal cifra possa ser considerada uma vergonha num país com 200 milhões de habitantes, com mais de 150 milhões de leitores potenciais. Teve melhor resultado com seu segundo romance, Dois Irmãos, que além de premiado caiu no gosto dos professores de literatura nas universidades e nos “círculos de pessoas que gostam de ficção”, combinação à qual ele atribui sua independência financeira como profissional da literatura, com mais de 200.000 livros vendidos.


Órfãos do Eldorado é um romance curto, “quase uma novela”, que contém todos os elementos de sua prosa – incluindo uma trama que sempre leva a uma teia um tanto inexplicável de amores e relações dramatizadas pela consanguinidade. “A família não é um tema proposital em minha obra, ela está em toda a literatura”, afirma. Hatoum por vezes parece a negação de si mesmo. Afirma que em determinada passagem de determinado romance emocionou-se porque fora inspirada na vida de seu pai. Em outro momento, diz que nenhum de seus personagens tem relação com sua família ou mesmos pessoas reais.


É possível que, como muitos escritores, nem ele saiba ao certo de onde vem sua literatura – a motivação em geral está em razões ocultas que nem o exercício psicanalítico da escrita consegue por vezes desvendar. Isso explica também o processo tortuoso de escrever vários livros ao mesmo tempo (“ao menos um deles acaba dando certo”, explica). Hatoum joga fora boa parte do escreve, num esforço de garimpagem, e já atrasou o lançamento de dois livros por mais de dez meses para atender recomendações dos editores, que sempre “melhoraram” o que ele faz. “Sou flexível, aceito sugestões, essa é uma de minhas qualidades”, explica.


Quando jovem, Hatoum morava na mesma pensão do cantor e compositor Arrigo Barnabé – ele vindo do Amazonas, Barnabé do Paraná. Trocavam confidências, dizendo um ao outro o que desejariam ser no futuro: um escritor, o outro músico. Hatoum publicou seu primeiro romance aos 47 anos, prova de como é difícil ingressar no ramo – e de como a maturidade pode fazer bem à literatura. Barnabé teve seus tempos de sucesso junto ao público universitário nos anos 1980, que fizeram dele um autor cult.


Ninguém sabe ao certo o que leva à concretização dos nossos sonhos – mesmo quando eles já estão realizados. “Confesso que não sei extamente o que deu tão certo nos meus livros”, diz Hatoum. Ele é mais uma prova de que a literatura não serve como busca pelo sucesso ou por dinheiro, seja no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. É muito mais a realização de uma promessa de fidelidade àquillo que desejamos fazer de nossa vida, desde a juventude. E de que, às vezes, isso também pode ser coroado com algo mais.

sábado, 13 de junho de 2009

Uma vida que não acaba



Fui assistir “Viver sem Tempos Mortos”, monólogo de Fernanda Montenegro, montado sobre textos de Simone de Beauvoir, expoente do existencialismo e ícone da revolução do comportamento dos anos 1960. Um espetáculo forte, graças à interpretação de Fernanda, com os cabelos presos, a roupa presbiteriana e as mãos torturadas que reproduzem muito bem o estilo da célebre filósofa francesa. Com a energia contida e sóbria de sua personagem, sentada numa cadeira negra num cenário negro, Fernanda tira qualquer distração e destaca o poder de suas palavras.

Fernanda nos faz lembrar as idéias de Simone, cujo conteúdo filosófico não invalida certa beleza poética e uma dureza pragmática. (“O homem não é nada, até fazer de si mesmo alguma coisa”). Por meio de Fernanda, vemos Simone narrar a própria vida, seus amores, seus dilemas e convicções. Há muito sobre seu relacionamento com Sartre, um amor para o qual foi atraída pela inteligência daquele pensador “baixinho e feio”, mas que exercia sobre ela magnetismo irresistível graças “às palavras”, com as quais preparava até mesmo o sexo, e algo para ela essencial: ele a tratava como igual.

Por trás da vida de Simone, há essa preocupação essenciale obsessiva. Inteligência brilhante, ela assustava os homens e julgava que jamais teria um relacionamento comum para os padrões da época, nos quais a mulher tinha de se submeter à vontade masculina. Adepta do amor livre, mesmo quando desfrutava de outros homens sentia-se à vontade apenas no relacionamento com Sartre, cuja mente era tão privilegiada que podia dispensar a competição.

Mesmo quando viviam um casamento “aberto”, ou mais tarde, quando deixaram de ter relações sexuais, eles mantiveram uma cumplicidade rara, que durou pelo tempo de suas vidas, importante a ponto de fazer Simone, na noite da morte de Sartre, dormir com seu cadáver, gangrenado e coberto de escaras. Estiveram, assim, juntos por uma última noite, no leito de morte de Sartre, antes que seu corpo fosse levado por uma multidão ao cemitério.

Simone se tornou mais conhecida por livros como o “Segundo Sexo”, obras que marcaram o feminismo e o período de emancipação da mulher, assim como pelo seu relacionamento com Sartre. Tal qual ele, que lutou na segunda grande guerra, foi ativista da resistência francesa e tinha uma influência política importante na França e mesmo fora dela, ela era uma intelectual de ação. Sua filosofia se caracterizava por ser mais que o simples pensamento: era uma afirmação de que as idéias só têm importância quando se transformam em prática – aí, têm capacidade de mudar o mundo.

Engajada na vida e na política, num tempo em que as mulheres apenas adquiriam o direito ao voto, Simone dizia que sua a emancipação política do “segundo sexo” não se dava apenas pela participação nas urnas, mas em todas as áreas da vida – no igual direito ao trabalho, à participação nos sindicatos e em todas as formas de vida social.

Simone fazia da filosofia a sua vida, intelectual de seu tempo, participativa e ao mesmo tempo sensível. Como Sartre, era uma ensaísta lúcida e ousada, mas utilizava também a literatura como meio de expressão para suas idéias filosóficas, o que melhorava ambas as coisas – a filosofia e a ficção.

Além de Os Mandarins, original pelo estilo – é na verdade um grande diálogo -, Simone deveria ser lembrada por outro romance que, a meu ver, é sua melhor obra. Pérola da ficção existencialista, ao lado de O Estrangeiro, de Camus, e A Idade da Razão, de Sartre, o romance Todos Os Homens São Mortais conta a história de uma moça que conhece, como hóspede no mesmo hotel onde se encontra, um homem imortal. Ali, ele lhe conta sua longa, aventuresca e intrigante história. Sequiosa de vida, a moça pede ao Imortal que ele ao menos se lembre dela para sempre – uma maneira de fazê-la também não morrer.

São tantos os anos e pessoas que com ele cruzaram em sua interminável existência, porém, que nem mesmo a lembrança é possível. Épocas, datas, nomes, tudo vai perdendo importância. Para o Imortal, a vida segue como uma sequência dolorosa de perdas de entes queridos, que ao longo do tempo vai se transformando numa sucessão tediosa de rostos, numa repetição das mesmas coisas. Em vez de um privilégio invejável por qualquer ser humano, a imortalidade se transforma numa verdadeira maldição.

Simone diz em Todos os Homens São Mortais que a morte dá sentido à vida. Não fosse finita, a vida se perderia. Com seu Imortal, ela ilustra com clareza não apenas a importância da morte, como o fato de que vida e morte são a mesma coisa: dois lados da mesma moeda. Vivemos com a morte, mas com a morte podemos também viver. E ao morrer, ato final, Simone também fez de sua vida e sua obra algo ainda vivo nos dias de hoje.

O que é ser homem


Lições em verso para um adolescente

Tenho um rapazinho de treze anos em casa a quem eu tento dar bons exemplos e alguma educação. É meio inútil, sobretudo hoje em dia, em que tanto o exemplo quanto a educação parecem não ter grande efeito, ou um efeito ainda menor do que quando eu mesmo era adolescente. Mas eu sou teimoso.


Como todo adolescente, este aqui anda numa fase meio preguiçosa, deixando para trás os deveres para ficar com a diversão. Tem argumento para tudo, sobretudo questionar decisões de adultos. O que lhe sobre de argúcia falta em responsabilidade, das coisas maiores às mais simples. Sabe a Teoria da Relatividade, mas precisa que lhe mandem entrar no banho (e sair do banho também).

Para fazer qualquer coisa, é preciso repetir, repetir, repetir. Dizem que lá no fundo, nós adultos somos escutados. Não é educação, é inculcação. Tenho ao menos a esperança de que o que digo hoje valha para ele daqui a vinte anos, quando chegar a idade da razão.

É paradoxal a adolescência. Justo no momento em que o adulto começa a se formar, ele se mete a rebelde. Quando mais precisa aprender, menos escuta os pais ou responsáveis. Acha que sabe e pode tudo sozinho. Quanto mais corre perigo – e hoje o mundo parece tão perigoso –, mais quer se arriscar, como uma forma de emancipação, o primeiro gosto da liberdade.

É uma fase complicada, que exige dos pais muito equilíbrio. E uma paciência de Jó.

Isso sempre foi assim, mas hoje é mais. Porque, fruto da sociedade contemporânea, que atingiu o ápice do conhecimento e do individualismo, o adolescente hoje tem mais informação, mas tem menos valores; tem mais certezas, e menos sabedoria; mais autoconfiança, e menos respeito; mais interesses, e menos causas; mais objetivos, e menos ideais.

Antes que seja tarde, tenho tentado explicar o que vem a ser um homem, conceito meio perdido nestas circunstâncias, mas que eu procuro resgatar. O que é ser homem, afinal? Não se trata apenas de um ser do sexo masculino, resumido a um detalhe anatômico. Ser homem implica uma noção geral de caráter e comportamento que idealizamos desde crianças, quando queremos crescer e sermos alguma coisa da qual poderemos nos orgulhar.

Dizer o que é ser homem pode parecer simples, mas é a coisa mais difícil do mundo. Primeiro, porque parte desse código implica que homens de verdade não gostam muito de falar do assunto. Um homem não se pergunta a toda hora o que é ser homem; ele é um homem, e ponto. O que distingue o homem não é a quantidade de cabelos no peito, músculos e testosterona. É uma certa atitude perante a vida.

Um homem lida de um jeito diferente com os problemas e o medo. Tem que ter uma certa coragem desprendida. Uma maneira de rir da dificuldade – e da da facilidade também. Uma maneira de lidar com as mulheres – e de amá-las. Uma maneira de comportar-se. De pensar.


Um homem é uma junção de detalhes, dos quais tento me lembrar. E, quando tento me lembrar, recordo a melhor fonte para isto. Está tudo, ou quase tudo, num velho poema de Rudyard Kipling, o romancista britânico que se tornou mais conhecido como o autor do Livro das Selvas, origem do desenho animado Mowgli, O Menino Lobo.

Pois Kipling, um clássico da literatura juvenil, também era poeta – e escreveu em forma de poema a melhor definição do que é ser homem que eu já vi. E a versão para o português feita pelo nosso Guilherme de Almeida, quase uma recriação dos versos originais, na minha opinião ficou ainda melhor que no inglês.

Chama-se “If”. Ou, em português, “Se”.

“SE”

Se és capaz de manter a tua calma quando
todo o mundo ao redor já a perdeu e te culpa;
de crer em ti, quando estão todos duvidando
e para estes, no entanto, achar uma desculpa;
se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso;

se és capaz de pensar -- sem que a isso só te atires;
de sonhar -- sem fazer dos sonhos teus senhores;
se, encontrando a derrota e o triunfo, conseguires
tratar da mesma forma a esses impostores;
se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
em armadilhas as verdades que disseste,
e as coisas por que deste a vida estraçalhadas
e refazê-las com o bem pouco que te reste;

se és capaz de arriscar numa única parada
tudo quanto ganhaste em toda tua vida,
e perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida;
de forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar, seja o que for, que neles ainda existe;
e a persistir assim enquanto exaustos, contudo
resta a vontade em ti, que ainda ordena: persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
e, entre reis, não perder a naturalidade;
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes;
se a todos podes ser de alguma utilidade;
e se é capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho:

Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
e -- o que é muito mais --, és um homem, meu filho.

Se você tem um menino em casa, a caminho de ser homem, dê-lhe isto. Não servirá para nada, ao menos por enquanto. Mas se um dia, quando talvez ele tiver seus próprios filhos, e encontrar o velho poema entre seus guardados, junto com uma bola velha de futebol, um boné do seu clube preferido e um videogame cuja carcaça ficou de recordação, ele lembrará do dia em que ganhou isto.

E entenderá.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O homem que queria saber tudo


Entre em uma sala de aula de uma faculdade de jornalismo, pergunte aos estudantes: quem já ouviu falar em Getúlio Bittencourt? E eles ficarão quietos.


O jornalista é como a notícia que ele publica: no dia seguinte, é página virada. Mas eu vou dizer alguma coisa sobre Getúlio Bittencourt, que eu conheci há mais de vinte anos, na redação da Gazeta Mercantil.


Getúlio pousara na Gazeta como uma estrela do jornalismo. Ganhara ainda mais prestígio com um prêmio Esso que lhe fora conferido por uma entrevista com o presidente João Figueiredo, homem avesso à imprensa, de cujas idéias ele fizera um impressionante retrato, celebrizado pela declaração do general-presidente de que ele preferia aos homens o cheiro dos cavalos.

O que pouca gente sabe é que Getúlio tinha sido protocolarmente proibido de gravar a conversa. Dono de uma memória prodigiosa, transcrevera a longa entrevista de cabeça. E, das páginas inteiras de jornal que rendera o encontro, nenhuma palavra foi contestada.

Nascido pária, Getúlio era autodidata. Vivia aprendendo e gastava a maior parte do ganhava com livros, de maneira obsessiva, até perdulária. Baixinho, de voz fina, com cabelinho pixaim, era uma figura que poucos levariam a sério à primeira vista, o que o ajudava a prestar atenção em tudo, principalmente em conversas alheias, sem ser notado. Em circunstâncias que reuniam muitos jornalistas em busca de notícias, estava sempre longe das aglomerações, conversando com uma fonte ao pé do ouvido. Era esse o seu estilo.

Uma atitude definia bem seu jornalismo. Quando um entrevistado lhe perguntava o que ele queria saber, respondia, simplesmente: “tudo”. Era um concorrente difícil, sobretudo para mim, repórter principiante, que na época da Gazeta apenas começava a disputar com ele diariamente o espaço da primeira página do jornal.

Getúlio não foi apenas jornalista, mas uma figura ambivalente, que como muitos outros repórteres políticos acabou sendo envolvida pelo mundo do poder. Aproximou-se do ex-presidente José Sarney, graças não apenas à sua inteligência e qualidades profissionais como pelo interesse comum nos mistérios infensos à Razão.
Cerebral, Getúlio estudava astrologia como um pequeno cientista, o que para ele não era uma contradição. Chegou a escrever um livro, No Azul do Céu Profundo, em que expunha mapas astrológicos de políticos célebres e estabelecia relações entre o zodíaco e a política. A empresa por meio da qual recebia seus rendimentos chamava-se "Júpiter", elemento do sistema solar ao qual associava o sucesso financeiro que ele, gastador compulsivo, jamais alcançou.

Como a crença muitas vezes é que move a realidade, a astrologia de Getúlio realizou proezas bem concretas. Por suas previsões, transmitidas a Tancredo Neves pelo deputado Thales Ramalho, teria sido modificado o horário de funcionamento do colégio eleitoral que elegeu o primeiro presidente civil do Brasil depois da ditadura militar, em janeiro de 1985.

Levado ao Planalto, Getúlio foi um jornalista que salvou um jornal. Por sua influência astrológico-corporativa no governo, saiu um empréstimo do Banco do Brasil à Gazeta Mercantil, então em dificuldades financeiras, que lhe valeria anos de sobrevivência - e um lugar para Getúlio como correspondente do jornal nos Estados Unidos, onde ficou por uma década, depois de encerrada a gestão Sarney, como se faz com um benfeitor que merece uma boa embaixada.

A vida é cruel quando atinge as pessoas onde está seu dom. Tira as mãos de um pianista, como fez com o hoje maestro João Carlos Martins, ou a voz de um locutor, como aconteceu com Osmar Santos. A vida parece feita para testar o ser humano no seu máximo. E deu a Getúlio um tumor no cérebro, que nele não era apenas o escritório, um local de trabalho, como um centro de recolhimento, um mundo próprio, muitas vezes tortuoso e obscuro, onde se pode dizer que funcionava também seu coração.

Faleceu Getúlio Bittencourt, com apenas 57 anos. Uma página do jornalismo brasileiro foi virada. Amanhã, serão outras as notícias do jornal. Mas fica alguma coisa para a história, que registra uma perda importante, sobretudo pela falta de alguém que sabia muito bem contá-la.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Pensar é perigoso


Reflexos na vida cotidiana desse hábito revolucionário


Quando eu levantava algumas dúvidas sobre a vida e questionava nosso relacionamento, minha primeira mulher olhava para mim, com seus olhos cinzentos, e dizia, com uma ponta de desdém: “Você pensa demais”.


Levei algum tempo para entender o que ela queria dizer. Só hoje percebo melhor o alcance e as consequências do fato de que minha vida é pensar. Pensar, mas não apenas pensar: pensar para a ação.

Por pensar demais, deixei para trás uma porção de simplificações – a começar pelas da minha ex-mulher. Hoje entendo que por trás da crítica ao intelectual, interpretado como um mero e inútil criador de caso, havia algo mais. Melhor do que eu, minha ex-mulher intuía algo bem concreto. Pensar é perigoso. No fundo, creio é que ela tinha medo disso.

Pensar é perigoso porque o indivíduo que pensa se abre a possibilidades. Analisa, compara, estuda mudanças, novos caminhos. E é mais perigoso ainda quando quem pensa levar a sério o resultado do seu pensamento, transformando idéias e sentimentos em atitudes muito práticas.


Quem pensa - e age em função dessa força inquietante - é uma perturbação para quem precisa de segurança, sobretudo aqueles que dependem ou estão ligados a nós de forma permanente, como supostamente deve ser o casamento. Pensar é um hábito revolucionário. É o princípio das revoluções, das políticas às mais pessoais.

Um romancista é um pensador, um indivíduo sempre nômade, que analisa e explora possibilidades. Na pele de seus personagens, fala coisas diferentes do que diria na vida normal, passa por outras experiências e testa suas consequências num empirismo imaginário.

Não se trata apenas de fantasia. A ficção é invenção, mas a emoção colocada nos personagens é real, assim como os problemas da vida que os envolvem. Como um ator que se transforma em assassino, estuprador, vigarista, ou travesti, o romancista vive diversas vidas e procura encontrar o que há dentro dele algo que torne verossímil a sua criação.

Essa experiência pode ser perturbadora, não apenas para quem cria, como para aqueles à sua volta. A maioria das pessoas não quer ver destruído o mundo organizado a duras penas no qual elas se sentem mais seguras, confortáveis e por vezes mais felizes. A idéia de que é melhor não saber para nao ter que mudar é um padrão de muita gente.

Para os mais conservadores, a sensação é de que nunca se conhece realmente o indivíduo que pensa. Porque quem pensa pode sempre mudar, quebrar regras, subverter os padrões. Não se sabe exatamente em que mundo ele está ou a que tipo de ação suas divagações podem levar. O pensador é uma encarnação de variáveis.

Pensar – isto é, admitir mudanças – não significa que faremos coisas contra o bom senso, que mudaremos mesmo, ou que estaremos em mudança permanente. Mas pensar, em si, é uma forma de trair, pela simples aceitação das alternativas.

Existe uma diferença entre pensar e fazer, ou pensar e ser. Não há nada melhor do que pensar e não mudar, o que seria uma escolha mais consciente pela estabilidade, mas a natureza do pensador assusta, assim como onde seu pensamento pode parar.

Um exemplo. Há pessoas que leram meus romances e já me disseram coisas do tipo: “Como você pôde pensar naquilo, é tão cruel!” Como se alguém capaz de pensar em uma situação onde a crueldade se manifesta de maneira chocante faça parte de quem a criou.

Romancistas tiram da realidade a maior parte das coisas que não conhecem, não sentem ou não lhe pertencem, como um empréstimo. Eles não são seus personagens, elementos construídos para fazer sentido em si mesmos. Porém, a partir do momento em que aquilo foi recriado dentro de um livro, passou também a pertencer ao seu criador. E a simples ligação da criatura com seu criador, o fato de um ter saído do outro, já é suficiente para assustar outras pessoas.

A mente inquisitiva não pode ser vista apenas como uma ameaça que carregamos ao entes queridos e pessoas próximas. A mudança é também o que nos faz melhorar, criar coisas boas e atrair para as pessoas de que gostamos algo melhor – inclusive de nós mesmos.

Por trás das boas mudanças do mundo, desde as revoluções libertárias aos grandes engenhos, há uma história do pensamento e de pensadores que utilizaram sua inquietação permanente para fazer o mundo melhor. Isso funciona também no microcosmo onde vivemos. Um pensador procura, antes de tudo, se tornar um ser humano melhor. E isso faz com que todos os que estão à sua volta, de uma forma ou outra, acabem por se beneficiar.


Quem não aceita o pensamento escamoteia o fato de que a vida é mutante. E, na tentativa conservadora ou amedrontada de congelar no tempo, renuncia à vida.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Levantados do chão


Recomeços, de Lina de Albuquerque (Versar/Saraiva, 159 pág.)

Muita gente compra livros de auto-ajuda em busca de soluções fáceis para problemas pessoais. Se na era atual tudo é feito para tornar a vida mais fácil, da pizza delivery à lipoaspiração como forma de emagrecer sem exercício ou dieta, por quê não o livro?


Ocorre que a vida muitas vezes não é fácil; não há respostas iguais para pessoas diferentes, lições que sempre funcionam, saídas simples e indolores. O que mais ensina é a experiência humana: histórias verdadeiras, que tratam de problemas de todos nós, e se tornam inspiradoras, pois as respostas que ali encontramos são resultado da vida real em toda a sua complexidade.


É nesse segmento que se insere o recém-lançado Recomeços, coletânea de depoimentos recolhidos pela jornalista Lina de Albuquerque (Versar/Saraiva, 159 pág.). São relatos de 26 pessoas - algumas conhecidas, outras não – que tiveram de recomeçar a vida de certa forma. Na realidade, pode-se dizer que são 27 relatos, já que a própria Lina é um caso confesso, em função de uma tragédia pessoal: perdeu sua família num acidente de carro, no qual morreram seu pai, mãe e único irmão, além de um amigo da família.

Há recomeços provocados por tragédias, e outros não tão trágicos, porém importantes. Em todos os casos, o que há em comum é a sensação de que sair do fundo do poço ou levantar a poeira não depende exatamente da gravidade do que aconteceu ou do que está em volta, mas da capacidade individual de reação.

Uma pessoa pode sair de um drama pessoal destruída para sempre, assim como pode usar o que aconteceu como o próprio alimento para levantar-se. Nesse ponto, Recomeços é muito ilustrativo. Mostra de onde vem a energia vital, a fonte do espírito de luta que nos faz ter uma vontade de viver ainda maior, mesmo depois de grandes decepções, derrotas ou catástrofes.

As histórias são díspares: há melhores, há piores. Entre as piores, está a da apresentadora de TV e política Soninha Francine, que revela ter sido rejeitada pelas próprias filhas como mãe e afirma tê-las recuperado, porém sem contar de que jeito. Há histórias excelentes, mas já muito conhecidas, como a do pianista João Carlos Martins, que se tornou maestro e recuperou sua vida na música, depois da série de acidentes que, beirando a maldição, lhe tiraram boa parte do movimento das mãos.

As melhores histórias de Recomeços estão talvez onde menos se podia esperar. É tocante o depoimento da ex-chacrete Rita Cadillac, que revela no livro sua passagem pela prostituição, a incursão psicologicamente funesta pelo cinema pornô e por fim, já na maturidade, a recuperação da dignidade e do amor-próprio, ainda que temperados com uma dose um tanto dolorida de autoironia – como o desejo de ser sepultada de bruços, para ser reconhecida também na entrada do Paraíso graças à parte da anatomia que lhe deu fama.

Há também a história pungente de amor de dona Lily Marinho, que teve um casamento feliz na terceira idade com Roberto Marinho. Secreto apaixonado por Lily, o “doutor Roberto” esperou que ela enviuvasse de um grande amigo décadas a fio para declarar o seu amor. Lily narra as delícias de ter um grande amor, sobretudo numa fase da vida em que para muitos nada disso parece possível. E conta como lida com a perda na sua segunda e inestimável viuvez.


Prepare-se para emoções – e para pensar nos seus próprios desafios, fracassos e derrocadas, pois as comparações são inevitáveis. Mas é bom lembrar que, enquanto há vida, existe uma saída para tudo – basta dar o primeiro passo.

HAL e o Airbus


O perigo que a tecnologia representa para nossa segurança


Ninguém sabe ainda o que aconteceu com o Airbus A330-200 da Air France, com 228 pessoas a bordo, que desapareceu no meio do Oceano Atlântico, no trajeto do Rio de Janeiro para Paris. Os especialistas ainda tentam entender como um avião moderno, projetado para suportar condições as mais extremas pode simplesmente ter desaparecido.


O que se sabe é que o avião transmitiu diversos sinais automáticos de que estava enfrentando problemas com seus sistemas elétricos e pressurização da cabine, embora não como mensagens de emergência. Isso leva a uma preocupação bem própria destes nossos tempos. Ainda que o acidente com o Airbus não tenha qualquer relação com uma pane técnica, faz pensar no perigo que a tecnologia representa hoje para nossa segurança.


Hans Weber, presidente da Tecop, uma consultoria aeronáutica de San Diego, levantou em entrevista no New York Times um problema gerado pelos aviões informatizados, dos quais o Airbus representa a última geração. Weber já trabalhou na análise de dois casos ocorridos em Airbus da companhia aérea australiana Qantas, no ano passado, que perderam altitude violentamente, embora sem consequências trágicas.


O Airbus A330 é um avião altamente digitalizado. No lugar do antigo manche, é controlado por um joy stick semelhante aos de videogame. Seu sistema de comando é chamado de "fly-by-wire", isto é, no lugar do antigo sistema mecânico e hidráulico, ele muda a direção e inclinação da aronave por sinais eletrônicos, enviados nos cabos ligados aos motores instalados nas asas.


Como o controle do Airbus é quase todo automatizado, ele reduz muito a margem de manobra do piloto, que depende inteiramente do sistema eletrônico para operá-lo. E, quando o sistema eletrônico falha, o piloto pode se tornar também um mero um passageiro. Todo mundo que tem um computador em casa sabe que computadores dão pau. O Airbus é um computador que voa. E, nesse caso, o “pau” pode significar o fim.


O sistema fly-by-wire não apenas conduz o avião como é programado para agir por conta própria em caso de pane. Em alguns deles, o piloto não pode simplesmente cancelar esse mecanismo de proteção – no caso, por exemplo, do computador estar lendo errado informações em uma situação de emergência.
Na prática, piloto e passageiros se tornam reféns de um verdadeiro HAL, o computador que no filme 2001, Uma Odisséia no Espaço, passa a controlar a nave e, quando tentam desligá-lo, começa a assassinar seus ocupantes – o clássico de ficção científica de Stanley Kubrick que vai se tornando cada vez menos ficção.


Há sinais de que o Airbus já sofreu algumas vezes com o que os especialistas têm chamado de “autoengano”. No acidente com o aparelho da TAM em Congonhas, o manche estava na posição de desaceleração, mas as imagens mostravam a turbina direita acelerando cada vez mais, num episódio que, a meu ver, ainda não foi totalmente esclarecido. Semana passada, outro Airbus da TAM mergulhou durante uma turbulência, ferindo passageiros e tripulantes.

Nos dois vôos da Qantas analisados pela Tecop, de acordo com o New York Times, os sensores inerciais do avião enviaram informações incorretas aos computadores de vôo, o que fez com que estes tomassem medidas de emergência para corrigir problemas inexistentes. Por conta disso, mergulharam sem nenhuma razão. Fatores climáticos, como uma determinada combinação de correntes de vento durante uma turbulência, podem dar margem ao “autoengano” dos computadores, segundo Weber.

É difícil ligar o acidente da Airbus a esses fatores, e talvez nunca se saiba exatamente o que aconteceu, mas os casos anteriores já são motivo suficiente para despertar cuidados. Ainda que esse tipo de investigação possa representar uma ameaça a um projeto de engenharia do qual depende a própria sobrevivência da companhia francesa.


Acima de tudo, está a segurança. À sensação de vazio sempre deixada pela morte absurda de tanta gente que literalmente parece ter desaparecido no ar e à tristeza das famílias que vai se tornando cada vez mais frequente, sucede-se o medo de todos aqueles que hoje ainda precisam embarcar.