terça-feira, 28 de maio de 2013

O legado de Civita


Em 1999, o financista aposentado Geraldo Forbes estava na mesa que lhe era diariamente reservada no restaurante Fasano, em São Paulo, quando entrou no salão o editor Roberto Civita. Conhecidos de longa data, Geraldo chamou Roberto à sua mesa. Cumprimentou-o e apontou, almoçando à sua frente, a filha Alexandra Forbes, que trabalhava, na época, em VIP. A revista, que fazia pouco deixara de ser um suplemento de Exame, então andava explorando aspectos mais bizarros do sexo para chamar a atenção. Geraldo não gostava nada daquilo, embora Alexandra fizesse, na publicação, somente a função de crítica gastronômica. “Roberto, quero te apresentar minha filha Alexandra, que trabalha numa de suas revistas, a VIP” , disse ele. “E quero também te dizer uma coisa: eu tenho vergonha de dizer que ela trabalha na VIP!” Roberto não se fez de rogado. Abriu seu sorriso de sempre e, com o sotaque levemente americano que o caracterizava, disse, simplesmente: “Se você tem vergonha de dizer que ela trabalha nessa revista, imagine então eu, que sou o dono dessa revista!”

Panache é uma maneira elegante e espirituosa de sair de situações difíceis ou delicadas. Ela define o homem, porque vem não somente da educação como de uma atitude perante o mundo. É um refinamento do verdadeiro cavalheiro, ao qual poucos chegam. Este pode até passar por apuros, mas não deixa de encarar a vida com certa leveza. É digno e, na vida prática, creio que funciona melhor. Roberto Civita tinha panache. Aparecia nas diversas situações que tinha de enfrentar, muitas como editor, especialmente em Veja. Não fosse isso, provavelmente teria muitas vezes deixado de lado suas convicções. Roberto sustentava corajosamente pontos de vista, mesmo quando pareciam ser os mais quixotescos, como se não fosse nada. “Os leitores que gostam compram”, disse certa vez, ao discorrer sobre a necessidade do editor de mostrar claramente o seu ponto de vista nas capas de Veja. “Os que não gostam, passam para ler outra coisa.”

Esse mesmo espírito aparecia nas decisões empresariais. Quando a Abril passava por uma séria crise financeira, em meados dos anos 1990, os consultores contratados pelo próprio Roberto diziam que era preciso cortar gastos, começando pelo overhead – os executivos e jornalistas que pertenciam à cúpula da empresa. Numa reunião, onde estes se encontravam todos presentes, ao chegar ao assunto dos cortes na diretoria, Roberto se levantou da mesa. “Eu vou embora, e vocês resolvem aí quem é que vai sair”, disse ele. “Eu simplesmente não consigo me livrar dos meus idiotas de estimação.” E saiu mesmo, deixando uns olhando para os outros, em silenciosa perplexidade.

Um dos que se tornaram ex-executivos da Abril, o jornalista Antonio Machado, lhe mandou um e-mail quando a Abril vendeu para a Folha da Manhã sua participação no UOL por um bom dinheiro, em 2001. Antonio lembrava que Roberto era descrente dos negócios da internet, e que ele, Antonio, levara adiante a primeira incursão da empresa no mundo virtual (o "Brasil Online, BOL), de forma que naquele momento podia colher o resultado. “A minha participação nessa venda eu deixo a você como doação”, escreveu Antonio. Roberto lhe enviou uma resposta, dando-lhe toda razão, reconhecendo o fato de Antonio ter insistido com ele para levar adiante o portal na internet. Assinava, no final, “Roberto”. Embaixo, um PS: “E muito obrigado pela sua doação!”

Roberto Civita faleceu no dia 26 de maio último. Assim como Ruy Mesquita, de O Estado de S. Paulo, falecido pouco antes, deixa no ar a sensação de que uma certa era da imprensa vai indo embora junto com seus ícones. Porém, Roberto deixa um legado importante para a imprensa, além do conjunto de seus negócios, que se espalham pelo meio do livro, da revista, da TV e dos veículos digitais. É algo mais impalpável, porém mais duradouro: o respeito à verdade, a coragem, o compromisso com o Brasil e com o leitor, que é o brasileiro. Deixa um modelo de imprensa exemplar e também de comportamento, que me lembra que mesmo para mover montanhas é bom ter um sorriso no rosto e algumas palavras gentis.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Escritos com o tempo

Certa vez, há muito tempo, visitei o escritor Luis Fernando Veríssimo em sua casa no bairro de Petrópolis, em Porto Alegre. A conversa, em si, foi muito desinteressante; embora seja muito produtivo e divertido quando escreve, Veríssimo é pessoalmente um sujeito lacônico - o encontro não durou mais que quinze minutos, por falta de assunto. Entrar na casa dele, porém, foi algo fascinante. Eu tinha a sensação de que a conhecia - e, aos poucos, entendi que a conhecia mesmo.

Trata-se da mesma casa onde morou seu pai, Erico, que o filho deixara exatamente como estava, e é descrita num livro de memórias que já foi publicado com dois títulos diferentes: Solo de Clarineta, ou O Homem no Espelho. Lá, Erico vai falando de como cada livro lhe permitia comprar algo para a casa. Cada peça da mobília representava um livro; quando olhava para o sofá, a cômoda, os tapetes, ia vendo... Clarissa, Olhai os Lírios do Campo...

Os objetos contam também uma história, ainda mais aqueles que nos permitem escrever os livros, e com os livros refletir sobre a vida - além, claro, de pagar as contas. Estou mudando de casa, e na mudança me dei conta de que guardei a maioria das máquinas de escrever com que trabalhei. Vou colocando as peças lado a lado, agora em cima de uma nova estante, e vejo um filme; cada uma vai contando a história de algum livro que escrevi e de um tempo que vivi. A cada máquina, um livro; a cada livro, um pedaço de memória, da minha vida e de uma época. São também um retrato da extraordinária evolução do próprio próprio instrumento da escrita, desde a velha máquina de escrever ao laptop contemporâneo. Minha sensação é de que a vida vai virando história. O tempo é vertiginoso; que esforço enorme de trabalho em meio a tantas mudanças!

Tiro a poeira que recobre a capa da Olivetti-Underwood Studio 44, a primeira máquina em que escrevi. Lembro da sensação de trabalhar nela, do orgulho; sonhava com ela desde menino, quando entrava no escritório de meu pai, enfumaçado por horas por seu cachimbo recheado do fumo achocolatado que incensava o lugar. Eu navegava entre as brumas até encontrá-lo, guiado apenas pelo tacleteclaque familiar que vinha da mesa onde ele trabalhava. Meu pai escrevia, sozinho, na sua neblina; essa lembrança me acompanhou quando comecei a transcrever na sua Studio, aos 17 anos de idade, as gravações das histórias que meu avô contava, e que, mais tarde, eu transformaria em meu primeiro romance, Filho da Terra.



Desenhada por um arquiteto, o italiano Marcello Nizzoli, com o engenheiro Giuseppe Beccio, a Studio 44 era fabricada em Barcelona, na Espanha. Tinha qualidades incomparáveis; era uma máquina de design harmonioso, com linhas que carregam a personalidade dos anos 1960, a última década realmente classuda da História; era pesada o suficiente para se manter firme na mesa, com teclas que pareciam impulsionadas por algo além dos dedos: um conjunto com o equilíbrio perfeito para se escrever.

Como lembrança, guardo ainda algumas páginas originais de Filhos da Terra, um livro que levaria sete anos para ser concluído. Comecei a escrevê-lo ainda na casa de meu pai, na mesma máquina que ele usava. Eu o terminaria em outras máquinas, quando já morava sozinho, mas compraria para mim, já numa loja de antiguidades, uma Olivetti igual.

Mesmo no tempo da máquina de escrever, eu já gostava da ideia de pode escrever em qualquer lugar. Admirava por isso Jack London, que dizia que o escritor é o único trabalhador a levar o "escritório embaixo do chapéu". Na verdade, aonde ele ia, seguia atrás seu fiel criado, o japonês Nakato, carregando a máquina de escrever do patrão. Sem poder me dar a esse luxo, antes de chegar ao lap top, ainda experimentei a Olivetti Lettera 82, cópia da Hermes Baby, com o mesmo design, menor e mais leve que a Studio: foi a primeira máquina de escrever realmente portátil.

O que parecia uma vantagem, porém, era o seu maior defeito; suas teclas não tinham força para bater no papel e o carro era tão leve que o conjunto pulava sobre na mesa, dificultando o trabalho. Foi lançada em 1983, e tentei fazer nela alguns trechos de Filhos da Terra, mas não rendia muito; assim, voltei à velha Studio 44, onde escreveria a segunda versão do texto, já convertido de mera transcrição das fitas de meu avô em um verdadeiro romance.



Passei então a uma Olivetti Praxis 20, animado com a ideia das máquinas elétricas, que pareciam um grande avanço sobre as mecânicas; as teclas eram mais suaves e acreditei que com isso escreveria mais rápido. Escaldado pelo meu primeiro romance, que anunciara um autor caudaloso, ueria algo que tornasse menos cansativas as horas e dias e semanas a fio de trabalho. Era uma máquina pesada como uma bigorna, e na realidade não representava real avanço sobre a velha e charmosa Studio 44, que recuperou novamente seu lugar.



A era que precedeu o computador foi bastante experimental; comprei, ainda, uma invenção de pouca duração, que hoje pode ser considerada uma raridade de museu: uma Panasonic Thermalwriter KX-W50TH, máquina que escrevia com raios de calor. Apresentava até 15 caracteres na tela de LCD, que podiam ser corrigidos antes de passarem para o papel. Imprimia o texto em papel sensível à luz, como o do fax. Logo se relevou inviável, porque o papel de fax era caro, e incômodo: vinha enrolado e se prestava, no máximo, a escrever bilhetes. Abandonei-a rapidamente, deixando-a quase sem uso; hoje é uma espécie de mosca branca da coleção.



Terminei de fato Filhos da Terra já na era do computador; um desktop montado no Brasil com peças importadas e marca balão que se tornou velharia pouco tempo depois de ser montado. E depois, numa Toshiba 1.000, o Fusca dos primeiros laptops. Quase não tinha memória interna; na tela negra funcionava o antigo sistema DOS, pré-história das telas contemporâneas com sistema Windows. Ele se desvalorizaria tão rápido e tanto que um amigo, ao colocá-lo à venda pela seção de classificados de um jornal, receberia em troca, como a melhor oferta, uma gaiola de passarinho. O meu deve ter ido para o lixo, desfalcando assim o meu acervo de uma peça fundamental.

Meu livro seguinte de ficção, A Quinta Estação, de 2003, foi escrito num já "ultramoderno" Canon Innova Boook 10C. Tinha um processador Intel de 33 MHZ, 170 Mega no HD, 4 Mega de RAM e, espetacular para a época, tela colorida. Além de ser pequeno e prático, apresentava uma grande novidade - foi o primeiro a ter Mouse embutivo no teclado, uma bolinha do tamanho da unha. Quase não possuía memória interna - ela ficava num disco externo. Seria o precursor do Compaq aonde eu escreveria o Sonho Brasileiro e terminaria gloriosamente Amor e Tempestade.



As máquinas de escrever possuem um estranho poder. É como se tivessem um pouco de vida própria; nos conectamos a elas, como um amigo ou parceiro que escreve junto com a gente; é como se lhe devessemos algum crédito pela obra concluída. Lembro das horas em que escrevia no Compaq, em pé, no quarto do apartamento onde morava em Nova York; eu tinha fortes dores nas costas, depois de meses de trabalho, e já não podia me sentar; fiquei tanto tempo olhando para aquela máquina que provavelmente é a coisa para a qual mais olhei na vida; só podia me enamorar. Não consigo achá-lo, como acontece com um amor perdido, e ele me faz falta.

Claro que a mágica da escrita se realiza dentro da nossa cabeça; é confortador, porém, pensar que há uma máquina capaz de nos ajudar. Hoje escrevo meu próximo livro num laptop Toshiba, que comprei há cerca de 6 anos, quando ainda morava nos Estados Unidos; trata-se de uma evolução miraculosa do Toshibinha que valia uma gaiola de passarinho, embora eu saiba que já padece de uma certa caduquice tecnológica. É bom trabalhar numa máquina com a qual temos familiaridade, como uma calça velha e sapatos confortáveis. Cato milho, como se dizia antigamente, quer dizer, escrevo com apenas quatro dedos; sou escritor, e não datilógrafo. A máquina, porém, favorece o trabalho; é relativamente pesada para um computador portátil, e suave ao teclar. A máquina de escrever ganhou infinitas outras funções com a tecnologia, mas para mim o que importa ali é o milagre básico, que ainda se realiza todos os dias, quando sentamos, eu e ela, na solidão que só nós conhecemos tão bem.