quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Como começa um escritor


Agora, como autor, e também como editor, vejo todos aqueles que ingressam com seus originais no Prêmio Benvirá de Literatura, muitos deles com o mesmo sonho dos meus 17 anos, quando vivia fascinado com as histórias de meu avô materno, que eu achava dignas de um romance, e alimentava a ideia de viver de escrever. Fico satisfeito de poder, com o incentivo do prêmio, ajudar a dar uma oportunidade a gente como eu de realizar esse sonho, encontrar talvez uma profissão e, sobretudo, tendo sucesso financeiro ou não, ser feliz fazendo algo pessoalmente tão importante.

Muita gente que tem me encontrado pede um conselho. Nenhum escritor dá conselhos a outro, e editores também não o fazem, porque o jeito em que se começa nesse negócio é tão individual quanto cada ser humano. É difícil encontrar alguém que te ajude de fato ou te aponte um bom caminho. Eu mesmo estou nisso meio por obra do acaso, algo tão difícil quanto ganhar um prêmio literário.

Pensando bem, minto: eu tive alguém que me ajudou, ou que eu poderia chamar de professor, embora tenha mais me desencaminhado que encaminhado para alguma coisa. Falo de Walter George Durst, dramaturgo celebrizado por suas adaptações para TV de grandes romances brasileiros, como Grande Sertão: Veredas, e a primeira versão de Gabriela, Cravo e Canela, com Sônia Braga no papel principal - um grande sucesso na época.

Durst era pai de um colega de classe, Marcelo Durst, com quem eu cursava por coincidência duas faculdades, a de Comunicação e a de Ciências Sociais, ambas na USP. Eu era um estudante duro e não perdia oportunidade de filar a bóia na casa de Durst, pai, não apenas para escapar do bandejão desestimulante do Crusp, o restaurante da Universidade, como para conviver com aquele homem que admiravelmente vivia somente de escrever.

Aos meus olhos ele levava não a vida que pediu a Deus, mas a vida que Deus pediu. Tinha uma bela casa numa rua arborizada, na vizinhança da USP, e trabalhava numa edícula recheada de livros e pôsteres de filmes brasileiros, alguns deles estrelados por sua mulher, Barbara Fazio, na época já uma senhora, ser deixar de ser bela. Vivendo entre livros, e cheio de tempo livre para amadurecer as ideias, Durst só tinha um compromisso, que era sagrado. Ia semanalmente à feira livre, não para fazer compras, mas escutar. Queria saber o que o povo estava falando, o que gostava, sentir a temperatura do que sabia ser seu público.

Naquela época, Durst era o único escritor de novelas da TV Globo que morava em São Paulo, e começou a formar um grupo de jovens autores, início de um núcleo de dramaturgia na cidade, que trabalharia para a TV Globo sob seu comando. Vínhamos conversando bastante sobre a arte de escrever, naqueles momentos após o almoço, em que o mundo parecia parar para o café. Eu me sentava com ele em sua sala de trabalho, onde havia um par de poltronas pequenas, e ali extraía dele tudo o que queria saber.

Formado na escola do cinema, Durst tinha em mente que o fundamento de qualquer obra de ficção era a criação de um conflito, essência não apenas da novela como de todo trabalho literário. Essa tensão era para ele o gerador de interesse contínuo, e não apenas momentâneo, na obra ficcional, de modo a fazer com que o espectador (ou o leitor, no caso do romance) permanecesse entretido até o desenlace.

Foi o único profissional das letras que me deu algum alento - e também conselhos. "Esse é um mercado muito pequeno, isto é, para pouca gente", dizia ele. "Mas, se você for bem, ficará rico". Naquela época, eu começara já a trabalhar como jornalista na revista Veja, onde ganhava um salário bastante razoável para alguém com pouco mais de vinte anos. E completou. "Vou te convidar para participar do núcleo de roteiristas, mas não largue seu emprego. Ainda."

O primeiro trabalho do núcleo paulista de dramaturgia da TV Globo foi uma série para as cinco da tarde - episódios de uma hora, que deveriam ter começo, meio e fim. Eram voltados para um público de mais idade, que segundo pesquisas era a maior audiência do horário. Durst pediu então a cada um uma sinopse, que mais tarde seria desenvolvida para se transformar em episódio. Cada autor entraria regularmente com um episódio inteiramente seu, numa sistema de rodízio.

Por aqueles dias, eu havia recebido na redação de Veja, dentro de um envelope meio sujo, uma longa carta de um executivo que soava em desespero. Narrava suas desventuras desde um acidente: batera o carro no veículo de um casal de velhinhos, que o ameaçara de processo e depois passara a chantageá-lo. Numa sequência kafkiana, o missivista dizia que tinha perdido em sequência o seu emprego, o dinheiro e, ao cabo, a mulher. Eu não via nenhuma reportagem a fazer com aquela história, mas achei-a de primeira mão para produzir o meu primeiro episódio da Série Brasileira.

Entreguei a sinopse a Durst, que a remeteu para avaliação da Globo no Rio de Janeiro. Chamou-me em sua casa para dar o retorno. "Olha, eles adoraram a história", disse ele. "Mas pediram para você tirar essa persona sacana dos velhinhos. Como o público é idoso, eles acham que isso pode indispor o telespectador com a série."

Protestei, claro. Se os velhinhos da história fossem bonzinhos, ela perderia completamente a graça, que estava justamente aí.

Por coincidência, naquela mesma semana, devido a uma série de mudanças nos quadros de Veja, recebi a notícia de que seria promovido a editor de assuntos nacionais da revista. Era um cargo importante, sobretudo para alguém tão jovem, e chave para a publicação. Eu cuidaria de editar todas as reportagens de alcance nacional, sobretudo da política, numa época em que o Brasil estava em plena ebulição, saindo de uma pesada crise econômica e entrando na reta para a primeira eleição presidencial em 30 anos, depois de uma angustiante e longa transição da ditadura militar.

Pensei no conselho de Durst ("não largue seu emprego"), e na frustração de, na TV, não poder escrever a história como eu desejava, mas moldado pela opinião dos executivos e seus charts do Ibope. De certa forma, mesmo tão jovem, eu partilhava da velha escola de Durst, que se valia muito mais de seus ouvidos, sua "pesquisa qualitativa" na feira de rua, de onde também vem a matéria bruta ficcional - a experiência humana, o contato pessoal, a emoção. Liguei para ele, agradeci, expliquei que com aquele convite de trabalho não poderia me dividir mais com o núcleo de dramaturgia e que tinha feito a minha opção pelo emprego.

Ele entendeu - e foi a última vez que falei com Walter George Durst, falecido há alguns anos. Muitas vezes pensei se deveria ter me arrependido dessa decisão, se não teria sido mais feliz (ou ficado rico) escrevendo para a TV. Mas a verdade é que, por muito tempo, não pensei mais em escrever ficção de qualquer espécie, dedicado como estava ao jornalismo. E voltaria a escrever ficção, novamente, por mero acaso - ou melhor, por uma indicação de outro dramaturgo, que, como nas melhores novelas, viria a ser o autor da segunda versão para a TV de Gabriela, Cravo e Canela.

Depois de Veja, trabalhei como editor de VIP, na época então um suplemento de Exame, onde dei emprego a certo dramaturgo que, depois de algumas tentativas não muito bem sucedidas, decidira voltar ao jornalismo para ganhar a vida até poder se recolocar na profissão com a qual sempre sonhara. Walcyr Carrasco, que já trabalhara em Veja, aceitou um modesto cargo de editor assistente, e escrevia reportagens de comportamento, o que ele fazia muito bem, devido à sua sensibilidade para abordar as pessoas e captar nuances - uma qualidade do jornalista que tem talento literário.

Walcyr escrevera alguns livros infantis e, quando sua editora, Maristela Petrilli, lhe pediu indicação de um autor, apontou meu nome. Levei uma hora para escrever Liberdade para todos, uma obra que, ao longo de uma década, seria adotada em muitas escolas e venderia mais de 150 mil exemplares. Era um livro singelo, mas que me despertou a vontade novamente de escrever ficção, e me ajudou a lembrar do que realmente os livros eram feitos - não de inteligência, mas de matéria emocional. E que o trabalho do ficcionista é ajudar os outros a trilhar caminhos, apresentando a si mesmo e suas experiências como uma espécie de laboratório.

Retomei o projeto de escrever o livro inspirado nas histórias de meu avô, que nunca foram além de uma transcrição de velhas fitas que eu guardava já como lembrança. Vinte anos depois, o romance finalmente tomou forma, diariamente, entre as cinco e as 9 da manhã, quando eu saía para o trabalho.

Naquela época, a mesma editora que lançara meu livro infantil incursionava na ficção adulta e me pediu os originais. tempos depois, voltou a resposta. A editora preferira me enviar o longo texto do parecerista, em que ele me chamava de "o Dostoiévski brasileiro", e acrescentava que, se vivesse no mundo contemporâneo, Dostoiévski teria seus livros recusado nas editoras, porque eram muito grandes. Por fim, recomendava que eu cortasse o texto pela metade, para que pudesse ser publicado com fins comerciais.

Aquilo, para mim, era um não - eu preferia procurar outra editora. E foi o que fiz. Junto com um livro do editor de moda Fernando de Barros, que eu ajudara como colaborador a se tornar um best seller (fazendo com ele "Elegância,", um guia de moda masculina), ofereci meu manuscrito à Siciliano. O editor, Pedro Paulo Sena Madureira, olhou-o como todo os editores - com um certo ceticismo, ou desdém. Porém, me conhecia como jornalista, e se viu obrigado a pelo menos ler algumas páginas.

Tempos depois, Pedro Paulo me anunciou que o livro seria publicado. Lera mais do que algumas páginas - bebera tudo. "Realmente o livro é grande", disse ele. "Mas o que é o seu defeito, é também sua qualidade." Surpreendentemente, o livro de Fernando de Barros venderia menos do que a editora esperava. E meu romance, do qual não se esperava nada, foi para a segunda tiragem e mais tarde para uma segunda edição. Logo eu publicaria na Siciliano meu segundo romance, O Homem Que Falava com Deus, que teria sua primeira reimpressão ainda antes da noite de autógrafos. Eu começara, dessa forma, uma carreira paralela, como sugerira Durst - até me sentir confiante o suficiente para deixar, enfim, meus empregos e viver, como vivi oito anos, apenas de escrever livros.

Hoje, Walcyr Carrasco desfruta o sucesso da segunda minissérie Gabriela. Por indicação dele, novamente, mudei-me há alguns anos para a Objetiva, quando a Siciliano foi tragada por dificuldades financeiras, junto com sua rede de livrarias. Certa vez, Walcyr me disse que era meu amigo porque sabia que eu não tinha inveja dele - algo raro entre intelectuais das letras. De fato. Eu não trocaria sequer um dos meus livros por todas as novelas de Walcyr, mesmo que não ganhasse dinheiro algum com eles.

Não é que eu desgoste das novelas de Walcyr, pelo contrário. Ele é um mestre no que faz. Só que eu, revendo minha trajetória desde as conversas com Durst, sei mais do que nunca que meu negócio é o livro. Não há maior recompensa do que escrever a sua própria história, aquilo que você quer, olhando para a rua, e não os charts dos executivos. Funciona. Descobri, como Durst, que fazendo isso a gente obtém a maior das recompensas, que é saber que a gente escreve sempre tem ressonância. Há gente que gosta, que compra, e ainda agradece por isso. O que faz de mim, dessa forma, entre todos, o mais grato.









quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Prêmio Benvirá: como se tornar um escritor de verdade


Raphael Montes é um moleque de sorte.

Há dois anos, quando abrimos o primeiro Prêmio Benvirá de Literatura, e recebemos 1932 inscrições, achamos um texto que chamava a atenção por duas razões. A primeira: era um livro policial denso, consistente, que mergulhava no universo da juventude carioca, do tipo que entretém e faz pensar, uma combinação excelente para uma obra de ficção. Selecionado entre os dez finalistas, recebeu elogios de todos os jurados, especialmente do crítico e jornalista Nelson de Oliveira. "Normalmente não gosto muito de policial, ainda mais para prêmio", disse ele, na época. "Mas gostei muito deste - eu o consideraria."

A segunda coisa que chamou a atenção foi a quilometragem do autor: Raphael, que mentia a idade, tinha apenas 19 anos. Começara a escrever Suicidas três anos antes, com somente 16.

Suicidas não ganhou, e Raphael achou que estava fora do baralho. Entregou os originais para uma pequena editora. Tinha já um contrato assinado. Quando recebeu um telefonema meu, interessado em publicar o livro pela Saraiva, selo Benvirá, mudou de ideia na hora. Conversou com o editor, desfez o contrato. "Ele entendeu", me contou, depois.

Por alguns meses, enquanto preparávamos os originais de Suicidas, eu costumava brincar na Editora que ele se tornara o autor não publicado mais famoso do Brasil. Estudante de Direito, a um semestre de completar o curso, no Facebook e aonde ia, Raphael se autointitulava "escritor". E se enfiava em cursos, seminários, até na imprensa. Foi entrevistado como "autor" pelo jornal O Globo, durante a Bienal do Rio. Foi convidado para dividir mesa de debates literários com autores de renome, já publicados por grandes editoras. Um prodígio da vontade.

Raphael deu sorte, mas também porque estava em todo lugar. Há dois anos, apareceu na minha frente em Paraty, durante a Flip, e se apresentou. Rapaz simpático, falante, acabou entrando para o grupo que estava lá reunido - os autores da Benvirá, Luis Felipe Pondé, o mexicano Enrique Krauze, a romancista argentina Pola Oloixarac, a "musa' do evento. Conviveu com os autores na intimidade, nos jantares que promovemos na casa de Benoir Gautier, um amigo querido, e conheceu por dentro o clima dos grandes eventos literários. Me pediu um conselho. E eu dei: "Forme-se e não largue seu emprego - por enquanto".

Lógico que a primeira coisa que Raphael fez, ao se ver um autor prestes a ser publicado, foi contrariar meu primeiro e único conselho: largou o emprego (na verdade, um estágio de Direito), com o pretexto de ir de novo à Flip, este ano. Talentoso, ousado, a ponto de ser meio abusado, lá estava ele de novo, no meio da massa de Paraty, com suas bermudas balançando ao redor dos cambitos de garoto. Teimoso, o "escritor".

No Rio de Janeiro, quando lancei um livro do hoje ministro da Defesa, Celso Amorim (Conversas com jovens diplomatas"), quem estava lá, na sessão de autógrafos? Raphael Montes. Queria ver o lançamento de perto, sentir, cheirar, estar com as pessoas que faziam tudo acontecer. E a conversa boa atravessou um jantar e foi parar alta madrugada na casa de seus pais, em Copacabana, onde ele nos apresentou a coleção completa das obras de Conan Doyle que é o orgulho da biblioteca em seu quarto. Depois foi abrir a adega de cachaças do pai - um colecionador do destilado, que felizmente dormia.

Raphael Montes não deixou de ser garoto. Enquanto Suicidas entrava na gráfica, ele estava na Disneylândia, fazendo poses ao lado do Mickey e do castelo da Cinderela, postados no Facebook. Ontem, em uma Saraiva do Rio de Janeiro, foi sua vez de estar sentado à mesa autografando seu romance. Estavam lá amigos, professores desde o jardim da infância, membros do Clube da Cachaça, colegas do karaokê, mestres de Direito e uma porção de gente que comprou o livro e, para sua surpresa, ele nem conhecia.

Ontem, afinal, Raphael Montes se tornou um escritor de verdade. Disse ele no Facebook que foi a melhor noite de sua vida. Espero que tenha muito disso pela frente. E que não largue seu novo emprego. Ainda.